O problema que apresenta a arquitetura da primeira metade do século XX, é a escassa sensibilidade social sobre o valor cultural urbano, tanto das manifestações do ecletismo como das obras do Movimento Moderno. A arquitetura acadêmica foi a maior vítima dos apetites especulativos. Primeiro pela sua presença nas áreas centrais das cidades, que seriam utilizadas para os novos prédios de escritórios do Central District. Segundo, porque os prédios de apartamentos, originalmente de luxo, foram se degradando com a saída dos moradores em procura dos bairros suburbanos. Mas também a arquitetura do Movimento Moderno, por enquanto protegida pelo DOCOMOMO, não teve maior sorte. Se no caso do ecletismo, a euforia decorativa identificava a qualidade do edifício; no caso dos despojados prédios modernistas foi sempre difícil demonstrar a empresários e políticos a significação cultural dos principais exemplos, tanto do Art Déco, como do Racionalismo.
Com as campanhas nacionais e internacionais em salvaguarda da arquitetura do século XX, nas décadas recentes surgiu uma maior consciência da necessidade de preservar a memória histórica urbana, identificada com o valor dos prédios icônicos, assim como também com barros ou conjuntos habitacionais coerentes e representativos das formas de habitar de uma determinada época ou camada social. Mas a necessidade de refuncionalizar os edifícios para novos usos e funções, em muitos casos produziu mudanças formais e espaciais, externas e internas, que mudaram as imagens originais e a significação cultural, identificada com a linguagem da época em que foram construídos. Um tema característico deste processo foi a transformação de prédios industriais em centros comerciais; os cinemas Art Déco em igrejas evangélicas, as casas individuais em lojas. O caso que apresentamos do MAM de Reidy demonstra a contradição existente entre o desejo de resgatar o projeto original do arquiteto, que culmina com a construção do teatro que não se concluiu na época da realização do museu; e a inserção de novas funções e atividades sociais que não se correspondem com a proposta do arquiteto, nem com os objetivos culturais do museu, iniciativas que desvalorizam a qualidade estética da arquitetura (Figura 1).
A história do museu
O museu foi fundado em 3 de maio de 1948 por sugestão de Nelson Rockfeller, que convenceu Raimundo Ottoni de Castro Maya e parte da elite econômica e política da então capital federal sobre a importância de uma instituição cultural do gênero. As duas primeiras sedes foram temporárias: o último piso do banco Boavista (do barão de Saavedra, em prédio na Avenida Rio Branco) e parte dos pilotis do Ministério da Educação e Saúde. Ambas foram desenhadas por Niemeyer que, preferido de Capanema, por pouco não foi designado para desenhar a sede beira-mar. A segunda diretoria eleita, tendo a frente Niomar Muniz Sodré e Carmen Portinho, tornou o museu mais dinâmico. A fim de construir sede-própria, em novembro de 1952 o museu ganhou um terreno de 40 mil metros quadrados da prefeitura em área a ser aterrada no Flamengo com o desmonte do morro Santo Antônio. O lugar privilegiado é uma espécie de transição entre o centro e o Aterro do Flamengo (também desenhado por Reidy, mas executado pela corajosa Lota de Macedo Soares).
A construção se destaca como uma obra mestra da arquitetura moderna brasileira, onde demonstra extrema maturidade intelectual, plástica e construtiva do arquiteto. O “rigor” está presente em todas as etapas do projeto, desde o seu conceito até a sua execução. A obra é pioneira, por exemplo, ao explorar e evidenciar a técnica do concreto que gera a forma do bloco principal do Museu, estruturando-o e revestindo-o ao mesmo tempo. A matéria aparente agrega valor à qualidade da execução e tal preocupação com a “excelência técnica da construção é indício de que, além da racionalidade do projeto, Reidy valoriza a qualidade de execução” (KAMITA, 1999). O uso do concreto aparente, assim como esse “brutalismo” no tratamento dos planos apresenta, num primeiro olhar, influências do pensamento de Le Corbusier (Figura 2). Entretanto, cabe ressaltar o amadurecimento de Reidy sobre os estudos do arquiteto franco-suíço ao observar também os detalhes de acabamento. Se comparados aos sulcos na superfície do concreto dos pilotis da Unité d’Habitation de Marseille, evidencia-se a clara distinção na decisão da técnica construtiva (Figura 3). Tal intenção na propriedade material e no conhecimento da técnica, agregada à solução estrutural do volume de exposições, é mais uma evidência da maturidade do arquiteto. A coluna em “V” de Reidy, que “invejou” Le Corbusier na sua última visita ao Rio em 1962, apóia no braço interno a laje do primeiro piso e no externo a cobertura que, por sua vez, sustenta o segundo piso através de tirantes.
O motivo deste esforço estrutural é deixar a paisagem fluir pela construção. Um dos motes da arquitetura moderna foi criar espaços livres, sem fronteiras à vista. Esta é a origem dos pilotis, de ambientes contínuos, do uso (às vezes, até excessivo) do vidro, rampas e circulações generosas. A intenção destes elementos era criar o espaço ideal de um homem novo, da era da máquina, do mundo moderno. Em função da democracia e liberdade, eles buscavam diluir a noção entre os espaços público e privado. No desenho do MAM, desde os primeiros esboços do arquiteto, fica clara esta intenção (Figura 4).
Numa seqüência de três croquis explicativos, quase um diagrama, ele demonstra a clara intenção do edifício não influir na “belíssima paisagem“. Para isso, ele criou poucos pontos de apoios e conservou “livre grande parte do pavimento térreo“. O desenho é ilustrado com o pavilhão de exposições, disposto no sentido leste-oeste do terreno, o volume mais significativo dos três que compõe o museu. Situados em extremidades opostas, os outros dois volumes são o bloco-escola e o teatro.
Deve-se à Carmen Portinho, que construiu o museu como uma missão, a correlação entre projeto e obra. Não lhe faltaram esforços e dedicação. A crítica Ana Luiza Nobre descreveu que os pormenores do MAM determinavam, por exemplo, que “no bloco escola o eixo da esquadria coincidisse com o da junto dos tijolos, o do mármore no piso com o do pilar. Nos sanitários, a locação das tomadas e interruptores devia coincidir com o centro de cada azulejo”.
Tal preocupação afirma mais uma vez a racionalidade do projeto integrada às decisões de projeto e composição, sendo assim uma “garantia contra o arbitrário” (Le Corbusier 1921). As escolhas por determinadas composições formais podem ser entendidas como intenção do arquiteto moderno em atribuir harmonia ao “Cosmos” através da aplicação de um rigor matemático de proporcionalidade, a fim de dotar a obra de um sentido superior de ordem. Estudos sobre análises gráficas realizadas nas fachadas e plantas do Museu confirmam a presença de um sistema de proporcionalidade que conferisse uma relação numéricogeométrica entre as partes e o todo da obra, oferecendo importante contribuição para a hipótese que busca explicar o alto grau de coerência plástica existentes nas obras de arquitetos modernos brasileiros1. (Figuras 5 e 6).
Contudo, Reidy só conheceu o bloco-escola, inaugurado em janeiro de 1958 por Juscelino Kubitschek. Em 1968, gozando de uma plena maturidade intelectual, ele veio a falecer precocemente. Dez dias antes de sua morte, Marcel Gautherot registrou as últimas imagens do arquiteto. No ensaio de mais de uma dezena de fotos, Reidy aparece circulando pelo museu-escola com Lota. Quatro anos mais tarde o pavilhão de exposições foi aberto. Em 1978, o Museu foi vítima de um incêndio que fez desaparecer parte do acervo e uma valiosa exposição do pintor uruguaio Torres García. Após uma restauração mal sucedida, foi reaberto em 1982. Em 1999, passou por outra restauração. Mas o teatro “ficou para trás”. Carmen Portinho faleceu em 2001, aos 98 anos. Por sorte, não teve o desgosto de ver o teatro inaugurado em dezembro do ano passado.
O teatro que acompanhava o museu na proposta original, do ponto de vista formal, é a peça mais expressiva do conjunto. O memorial do projeto, escrito por ele em 1953 afirma: “na extremidade leste do conjunto ficará situado o teatro, com mil lugares. O palco terá uma largura disponível de 50 metros, 20 de profundidade e 20 de altura livre até o urdimento. A construção cênica baseia-se num sistema de carros movimentados eletronicamente, que se deslocarão para os espaços laterais e de fundo do palco. A boca de cena terá 7,5 metros de altura e 12 metros de largura, podendo chegar a 16 metros em caso de abertura total para a realização de concertos sinfônicos”. Ou seja, era um teatro de grandes dimensões para realização cênica, com capacidade para atender também apresentações musicais. Até hoje, existem apenas dois teatros na cidade com capacidade maior: o Municipal (2365 lugares) e o João Caetano (1220 lugares), ambos mais anteriores ao projeto de Reidy. A estrutura física imaginada para o MAM há mais de 50 anos viria a contribuir de forma significativa o cenário cultural carioca. Que outro museu no mundo possui um teatro desta dimensão? O Masp, para ficar com um exemplo nacional, possui somente dois pequenos auditórios. No projeto de Reidy, o foyer era dividido em dois níveis: um no térreo e outro no piso superior, em cota que coincidia com a parte mais alta da platéia. O foyer superior gozava de um grande terraço cujo piso é a laje que protege a entrada e liga o museu ao teatro. Parte do público ocuparia ainda um balcão acima do segundo foyer. No subsolo, com metade da área ocupada, estariam fosso da orquestra, camarins e duas salas de ensaio com 450 metros quadrados cada.
Pela qualidade do desenho de Reidy, agregado ao seu rigor na execução, o conjunto do museu é protegido pelo tombo federal desde 1965. Qualquer modificação mínima tem que ser aprovado por diversos órgãos públicos. Quando há tombamento em mais de um âmbito (federal, estadual ou municipal), se não houver disputas políticas, tenta-se acompanhar a resolução da esfera superior. Ou seja, se um imóvel, por exemplo, é tombado pelo município e estado, todas as solicitações referentes são analisada primeiro pelo órgão estadual e sua decisão é acompanhada pelo municipal. O MAM é protegido pelas três esferas – ou seja, é quase “blindado”, para evitar significativas alterações. Desafortunadamente elas aconteceram principalmente no teatro. Com antecedência, já tinham mudado diversas funções localizadas por Reidy nos espaços do volume anexo ao bloco do museu, como por exemplo o restaurante previsto no primeiro andar, local hoje utilizado para as festas de casamento, que também requerem no terraço espaços cobertos com estruturas metálicas leves e panos de telas, aléias a forma do conjunto arquitetônico (Figura 7). Nota-se que algumas pequenas reformas realizadas recentemente já não exigiam grande rigor na sua técnica-construtiva, resultando num verdadeiro desrespeito ao patrimônio.
A inserção do teatro
Com o apoio da Prefeitura do Rio de Janeiro, a empresa celular Vivo e uma construtora de São Paulo – Company –, e a anuência da direção do MAM, foram disponibilizados os recursos para a construção do teatro, mas não com a função prevista por Reidy. Teve então uma mudança de uso. Os empresários que levaram a frente a iniciativa queriam uma casa de show que pudesse alternar, dependendo do gênero, de 2500 lugares sentados (em configuração de mesas) à 4 mil espectadores de pé (ou seja, em pista). Outra diferença: seria necessária cozinha industrial para servir pratos quentes para até quatro mil pessoas. Em outras palavras, era um programa completamente diferente daquele originalmente imaginado por Reidy (Figuras 8 e 9).
Não dá para negar que houve uma mudança de função – de teatro para casa de shows – que ao invés de ser complementar é, certamente, conflitante com as atividades do museu. O próprio estabelecimento nos últimos anos investiu em atrair um outro tipo de público, com eventos de moda, por exemplo. A diretoria alega também que a instituição que dirige não conta com receita do governo. Segundo relata o Presidente, quando iniciou sua gestão, havia dívida de 10 milhões e hoje foi eliminada com o teatro e o aluguel dos espaços do museu. Parte desta receita foi conseguida com criticados eventos – como, por exemplo, casamentos –, que consideram inevitáveis. Já o argumento dos empresarios paulistas é outro: “Quem no Brasil visita um museu?” Revitalizamos aquilo: na região, havia ponto de drogas, prostituição etc. Hoje está completamente diferente. E, segundo informaram, depois da inauguração triplicou a freqüência do museu. Isto acontece porque há uma parceria entre o MAM e a casa de shows: ao comprar um ingresso, o cliente ganha uma entrada para o museu.
Contudo, o problema da mudança de uso é outro. Um dos preceitos básicos da arquitetura moderna é que a forma segue a função. Assim, o teatro do MAM não tinha aquela forma por acaso: sua expressividade era fruto da riqueza de espaços que ele abrigaria. A leitura superficial da maquete já induz a compreensão do foyer, da platéia e da caixa do palco. Trocando em miúdos, a expressão volumétrica de Reidy para um teatro de mil lugares, naturalmente se tornou falsa com outro uso. Para clarear esta idéia basta se atear ao volume da caixa do palco: ela só teria aquela altura para abrigar os urdimentos. Na casa de show, aquele volume quase não tem função. Outra questão é a necessidade de cozinha e a quantidade de público, que naturalmente exigem acessos diferentes e rotas de fuga com outras dimensões, como as duas saídas laterais que não estavam previstas no projeto. Ficam as primeiras perguntas: se tivesse sido intenção a modificação de uso, não teria sido mais verdadeiro construir um volume diferente? Não se trata de manter a todo custo uma pureza “burra”? O que é melhor: um Reidy falso ou qualquer outra coisa verdadeira?.
Uma conseqüência da mudança de uso é como ela incide na relação entre interior e exterior. Para os modernos, em um projeto de arquitetura complexo e qualificado como o de Reidy pressupõe que há uma continuidade entre os conceitos internos e externos, que criam uma unidade no conjunto. Não se concebe o exterior como se fosse uma casca de ovo nem o interior como se fosse um cenário: há correlações entre eles que são, em última estância, complementares. Por outro lado, a transparência do vidro do foyer clama por uma unidade arquitetônica. Não dá para imaginar que dentro seja uma coisa e fora outra. A lógica do projeto concretizado foi aplicada como se o patrimônio tombado fosse o volume externo e os empresários que o construíram agiram como se estivesse fazendo uma reforma em um imóvel construído, com total liberdade de ação no interior, cujas intervenções tiveram efeitos negativos na forma externa (Figura 10).
Outra alteração foi verificada no volume do teatro. E o problema, de novo, nasce da mudança de uso, ou seja, no “bom” ajuste do novo e complexo programa no volumen previamente definido. A saída encontrada para resolver as exigências das novas funções foi ocupar intensamente o subsolo, mesmo com a dificuldade do lençol freático alto, colocando lá uma grande cozinha industrial. Mas, para cima não havia como mudar. Para ganhar espaço se decidiu que o caixilho do foyer avançasse 10 metros sob o espaço da marquise que estava vazia no projeto de Reidy. Das três linhas de pilares da marquise, com eixo estrutural alinhado ao do pavilhão, duas fileiras ficavam para fora do teatro e uma para dentro. Infelizmente, a proposta foi aceita e parte do desejo de liberdade de Reidy desapareceu nestes 500 metros quadrados que o novo foyer invadiu. A gravidade desta terceira intervenção é, não só retirar parte da intenção de liberdade sobre as marquises pretendidas por Reidy, mas como também abrir a porteira para outras modificações na volumetria externa – algumas, ilegais.
Uma das mais graves mudanças se refere à rampa lateral. Assim como no bloco escola, o terraço-jardim sob a marquise de entrada do teatro se conectava ao térreo através de uma rampa ao ar livre (Figura 11). Tanto a marquise quanto a rampa já estavam construídas, ou seja, eram tombadas em três esferas e não poderiam ser alteradas. Temendo por segurança, os empresários pediram a demolição desta rampa, argumentando que a rampa atrapalharia a saída de emergência, cuja legislação ficou, nos últimos 50 anos, mais rigorosa. O arquiteto responsável da obra argumentou que desenhou uma escada “ao sabor de Reidy” para substituir a rampa. Mas fica a pergunta: não dava para manter a rampa? Com tantos recursos eletrônicos de segurança, tal acesso poderia ser controlado com segurança. A rampa de Reidy está diretamente relacionada com sua arquitetura pois ela possui um “tempo“ diferente do de uma escada qualquer. Quando subimos uma rampa como aquela, ao lado de um jardim de Burle Marx, podemos apreciar a paisagem de forma calma e segura pois não fixamos os olhos pelo ritmo dos degraus. Por isso mesmo, a rampa torna maior a percepção de continuidade entre o térreo e a marquise. Lá de cima, todos que desejassem poderiam ter visões diferenciadas em direção ao jardim, ao pavilhão de exposições e ao centro da cidade. Para se ter idéia da importância que Reidy dava a ela, basta lembrar que existe um croqui esquemático onde ele exemplifica a disposição dos três blocos – e o traçado da rampa já está lá. Por outro lado, outros croquis iniciais, criados ainda com o pavilhão e o teatro com outra forma, a marquise entre eles já aparecia e, no lugar da rampa, há uma escada. Ou seja, Reidy, antes da rampa, levantou a hipótese de criar uma escada para aquele lugar mas descartou-a, decidindo pela outra opção. Não era um elemento insignificante. Para piorar, a escada que está lá não é a que foi aprovada. Trata-se de uma escada desengonçada, cercada de grades, que envergonharia um aluno do primeiro ano de arquitetura e que provavelmente foi resolvida na obra por algum iluminado. Junto à escada, foi feito ainda um “puxadinho“ no caixilho. “Não está de acordo com o projeto“, certamente diria o Reidy, com sua educação inglesa.
Existem outros elementos da volumetria que não correspondem ao projeto original, entre eles, a falta da abertura superior da fachada principal, a estação de energia (que poderia ser subterrânea, atrapalhando a visão do volume) e a bilheteria. Para vender ingressos, o arquiteto tinha pensado em um volume circular externo, junto ao caixilho de vidro. Como a área externa foi ocupada pelo foyer, foram criados outros volumes circulares, de concreto e tijolos, dentro do “espírito” do restante, junto à empena de concreto circular mais próxima ao pavilhão de exposições. Os tijolos de tais volumes, assim como os utilizados na parte posterior do palco, são diferentes dos especificados por Reidy. A argumentação para tal mudança deveria ser externada, entretanto houve uma ausência quanto a isso. O material poderia não mais existir (como alguns tipos de pedras) ou estaria proibido (como o amianto ou o jacarandá). Mas a troca, de tijolos maciços tipo refratários, para tijolos de revestimento comum, por rapidez e falta de rigor na execução – tudo o que o arquiteto não aprovaria –, demonstram total desrespeito com a obra. O teatro de Reidy foi construído com poucos tipos de materiais, todos aparentes. A lógica deste raciocínio é transmitir a idéia da “verdade construtiva”, como anteriormente foi explanado. Entretanto, o que se resultou foi uma imitação de tijolo apenas para decorar e revestir a parede. A troca de materiais externos por outros “genéricos“ é evidente na comparação entre o desenho cinqüentenário e o executado. Além dos tijolos, há diferença no tipo de vidro (agora escuros) do foyer e no concreto.
Algumas técnicas construtiva imaginadas por Reidy foram substituídas. A cobertura, por exemplo, não é estruturada em concreto armado, mas sim com treliças metálicas adotadas por serem mais baratas e mais rápidas de serem executadas. Para se ter uma idéia do que acharia Carmen sobre estes “detalhes”, basta lembrar a furiosa reação dela em relação à troca da cobertura do MAM, nos idos dos anos de 1980. Mesmo que isso só fosse visto do alto (dos prédios ou de alguma aeronave), ela ficou possessa. Outro ponto, este mais visível, diz respeito ao concreto aparente. Reidy fazia questão de marcar o concreto com texturas, resultados de um calculado desenho em régua de madeira das fôrmas. É muito fácil perceber esta solução nas colunas e nas empenas do pavilhão de exposições. Há uma caligrafia própria que procura desvendar o processo construtivo. Na casa de espetáculos, a construtora preferiu adotar um modelo mais moderno e mais rápido, chamado fôrmas deslizantes. Trata-se de uma fôrma de metal que após a concretagem é deslizada para cima, a fim de fazê-la nova. Será que se Reidy estivesse vivo iria aprovar o método mais econômico e ecológico? Pode ser, mas assim como na maneira tradicional, deve se tomar muito cuidado com esse procedimento, vibrando bem o concreto para que evite vazios e bolhas de ar dentro da fôrma. Se isso ocorrer, além de possíveis problemas estruturais (mais raros), compromete definitivamente o aspecto externo. Assim, se podemos ver a caligrafia de Reidy nas colunas do pavilhão de exposição, podemos também atestar a falta de qualidade da execução das duas empenas curvas das laterais do teatro (Figura 12). Depois da concretagem, a empena foi estucada para fechar os buracos. Por outro lado, para ser mais rápido, o volume ovalado da caixa de palco foi estruturado em metal e fechado com chapas cimentícias. O resultado? Ao invés de uma linha contínua, ficou evidente que o volume é formado por uma série de trechos de retas. Que comentário será que Le Corbusier faria agora?
Por último tampouco foram bem sucedidas as baias temporárias dos manobristas. E não é possível aceitar as grades que fecham a área de carga e descarga do teatro. Além das infelizes cercas, há ainda um arame farpado por cima, que, longe de um espaço cultural, mais nos aportaria a um cárcere (Figura 13). E o gesto de liberdade de Reidy? E a tecnologia? Não dá para imaginar que dentro dos 40 mil metros quadrados do terreno do MAM exista um “quintalzinho”, ainda mais se tratando de uma área nobre, o eixo de circulação de acesso ao museu e a casa de shows. Como se a área de serviço do teatro tivesse menor importância ou ficasse localizada em uma rua secundária em vez do espaço aberto e visível das circulações que vem do aeroporto.
Em conclusão, o processo de re-arquitetura do MAM, não obteve a síntese formal e espacial que foi prevista no projeto original. Não se manteve a pureza e a unidade que foi sempre uma característica da sua obra, além da qualidade mantida no proceso construtivo. Sem dúvida, na distância, o teatro completou a unidade do conjunto, mas na proximidade, foi traída a ilusão de Affonso E. Reidy.
por Roberto Segre, Fernando Serapião, Daniela Ortiz dos Santos e Thiago Leitão de Souza. Anais do 7° Seminário Docomomo Brasil, Porto Alegre, 2007.
- Os estudos fazem parte da pesquisa intitulada: “Os sistemas de proporcionalidade nas obras da arquitetura moderna brasileira: o caso de Affonso Eduardo Reidy” realizada por Daniela Ortiz dos Santos, juntamente com Fernanda Guimarães, quando bolsistas de Iniciação Científica, sob orientação da Prof. Dr. Beatriz Santos Oliveira, FAU-UFRJ. O trabalho apresentado na XXIV Jornada de Iniciação Científica recebeu o título de “Menção Honrosa”. ↩