Após alguns dias de manifestações por todo o Brasil, em meio a indignações difusas e protestos bastante heterogêneos, ninguém consegue compreender ao certo o que está acontecendo e muito menos cravar uma previsão para o que virá daqui pra frente. No entanto começa a ficar clara a crescente relevância da pauta da Mobilidade Urbana e a importância de discutir o tema não apenas pelo viés técnico, mas também pelo viés político. Em São Paulo, a principal pauta dos protestos veio do Movimento Passe Livre (MPL) que luta, a curto prazo, pela revogação ao aumento das passagens dos transportes públicos e, a longo prazo, pela tarifa zero. Esta ideia que há pouco tempo parecia uma utopia ou um exagero, hoje começa a ser discutida como uma possibilidade inovadora. O movimento propõe deixarmos de pensar o transporte público como um produto para transformá-lo em um direito básico. Transporte público gratuito e de qualidade traz avanços enormes para o direito à cidade, facilitando o acesso a todas as partes da cidade, contribuindo para torná-la menos segregada.
A questão que é preciso ressaltar, porém, é outro ponto da mobilidade que, aparentemente, não estava em pauta nas reivindicações e nem muito presente nas discussões, mas que está sempre embutida em qualquer protesto: rua cheia de gente é melhor que rua cheia de carro! Estar numa manifestação significa recuperar um espaço que normalmente é opressor ao pedestre que é a via dos carros. As imagens dos protestos são simbólicas também porque subvertem uma ordem: lugares que estamos acostumados a ver apenas como trânsito de automóveis tornam-se lugares de acontecimentos e encontro de pessoas. É a cidade como deveria ser. E se nossas ruas cheias de gente fossem a regra e não a exceção?
É claro que não estamos falando de grandes multidões concentradas no mesmo trecho, como nas imagens dos protestos, mas sim da rua sendo pensada prioritariamente para o trânsito cotidiano de pessoas. Em tempos em que tanto se fala de reforma política e do aprimoramento da democracia, essas mudanças devem ser acompanhadas de uma reforma urbana que permita a vida coletiva em espaços compartilhados, que só se dará efetivamente quando planejarmos nossas cidades tendo o pedestre como prioridade. Não podemos perder de vista que a mobilidade urbana é um instrumento crucial para que possamos democratizar a cidade.
É perceptível que uma grande parcela dessa juventude insatisfeita está apenas agora descobrindo a política e a rua. Esse momento deve ser bem aproveitado. Boa parte dessa geração (principalmente de classe média e alta) foi criada fora da rua, aprendendo desde cedo a temê-la, mas deixando de aprender sobre a vivência coletiva, sobre se relacionar com o diferente e estranho, sobre cidadania enfim. Resta-nos cobrar que os mesmos que gritaram “vem pra rua” permaneçam usando a rua, agora no dia-a-dia.
Reivindicar melhores calçadas é necessariamente reivindicar uma cidade melhor para todos. É claro que calçadas não dão conta de toda a necessidade de locomoção, por isso é necessário pensá-las em conjunto com um sistema de transporte público de qualidade e gratuito. No entanto, esses avanços devem ser acompanhados de medidas que restrinjam o espaço dos carros. Assumir as calçadas como prioridade de tal forma que o seu dimensionamento adequado seja atendido, mesmo que isso resulte em diminuição das vias para automóveis. Isso é outro fator que os protestos deixam claro: pra reconquistar as ruas, temos que incomodar quem detém o privilégio delas. Dinheiro e espaço público devem ser utilizados para o bem coletivo. Portanto, o poder público deve parar de tentar resolver engarrafamentos de carros e investir prioritariamente em transportes públicos e coletivos.
Daqui pra frente deverão ser anunciados diversos investimentos na área da Mobilidade Urbana e precisamos lutar para que esses investimentos sejam bem empregados. É importante lembrar que muitas obras de mobilidade estão servindo de desculpa para remoções arbitrárias por parte do Estado. Isso torna ainda mais relevante a discussão acerca da definição das prioridades. Hoje parece mais absurdo diminuir uma via de carros do que remover casas. Essa lógica tem que mudar.
Por fim, fica a vontade de que esses dias conturbados tragam também uma mudança em como usamos nossas cidades e que a rua volte a ser a protagonista das nossas relações sociais.