ArchDaily Brasil: Qual a importância desta Bienal?
Ligia Nobre: Essa Bienal é uma realização do IAB e vem do desejo de um grupo jovem de arquitetos que percebeu que era importante uma mudança de conceito e formato para a Bienal. Eles começaram a se reunir no ano passado, junto com esta nova gestão, que tem o José Armênio Brito Cruz à frente. E eles escolheram, então, o Guilherme Wisnik para ser o curador, que me chamou em outubro do ano passado para fazer a curadoria junto com ele, assim como com a Ana Luiza Nobre. Nosso percurso é muito diferente. Eu sou formada em Arquitetura, mas trabalhei muito mais com projetos de curadoria de arte e arquitetura, plataformas mais experimentais no Brasil e em outros países, como a Exo Experimental ou a ETH StudioBasel, dentre outros. Somos da mesma geração, e sempre tivemos esse interesse comum entre arte e arquitetura, e já tínhamos colaborado uma vez, em um seminário no Itaú Cultural.
Eu tinha participado da Bienal anterior, fazendo a co-curadoria com a Maria Augusta Bueno, o Ole Bouman e Jorn Konjin do projeto dos países baixos Unsolicited Architecture. Fizemos a exposição e uma série de três workshops e já trouxemos esta questão de qual o papel do arquiteto e as dificuldades de uma plataforma como a Bienal. Então me senti desafiada, e entendendo que vivemos um momento de transformações aceleradas em São Paulo e no Brasil, tanto local como internacionalmente, e que a Bienal exerce a potência de ser uma caixa de ressonância para fomentar o debate e abrir para novos imaginários. Formou-se um grupo de pesquisa heterogêneo, com muitos jovens, comprometido com o projeto. E essa triangulação entre eu, a Ana Luiza e o Guilherme operou muito bem. São posturas diferentes que se somam muito. E a presença essencial da Ana Helena Curti (e equipe da arte 3) que é a produtora executiva. Para mim, ela é como uma produtora de cinema nos anos 40, sabe? Que é visionário, que propõe, não só responde a demandas, mas cria junto. Foi um processo árduo, difícil, ao mesmo tempo prazeroso.
AD: Desde quando vocês estão trabalhando?
LN: O grupo inicial se reuniu desde o primeiro semestre de 2012. Em outubro, o Guilherme me fez o convite. Eu estava às vésperas de viajar para Istambul para apresentação do projeto sobre mobilidade urbana para a Audi, com o escritório Urban Think Tank da qual fui curadora local em São Paulo envolvendo seis metrópoles do mundo. , Participei do New Museum Idea City:Istanbul. e fiz vários contatos por lá. Na volta, começamos a trabalhar, a formatar o projeto, estruturar, e também escrever para a Lei Rouanet. Era outro Brasil, outro momento, mas a questão da rede já estava colocada desde o princípio e fomos articulando melhor.
AD: Então a questão da rede e a ideia de espalhar a Bienal pela cidade foram parte das primeiras ideias?
LN: Foi uma das primeiras ideias. Quando eu entrei o título já estava dado Cidade: modos de fazer, modos de usar, e já existia essa ideia da rede, de espalhar a Bienal pela cidade. O que articulamos de maneira mais forte foi assumir o transporte público como fio condutor. Conversávamos muito sobre quais eram os assuntos e o que estava em jogo. Infraestrutura, espaço público e mobilidade são grandes pautas atuais. Ao mesmo tempo, para nós, isso ressoava e voltava o tempo inteiro. E eu me lembro de conversarmos sobre essa ausência da esfera publica no Brasil, e como ela se configura ou se qualifica. Refletindo sobre aonde o espaço público opera hoje em uma cidade como São Paulo, vimos que não são nas praças: é no deslocamento ou no consumo. Parece que se reduziu a isso. Então pensamos: vamos trabalhar a mobilidade urbana, que é uma problemática fundamental no Brasil.
AD: A mobilidade urbana é seu tema recente?
LN: Mobilidade foi meu tema de pesquisa no ano passado. Meu interesse sempre foi em dimensões da esfera pública, do coletivo. Meu mestrado no final dos anos 1990 foi sobre Diagramas e práticas diagramáticas. é um modus operandi de articular forças e configurar eventos e situações. Eu gosto muito de trabalhar nessas plataformas de agenciamento que geram novos imaginários, que pode ser um livro, uma exposição, uma combinação de formatos, com duração mais curta ou mais longa. Não é que a mobilidade seja minha especialização. Ela é uma questão chave e fui estudar. Para a Bienal foi fundamental percebermos a potência enorme existente, e era o caso de articular o que estava desarticulado. Foi essa grande costura, este grande bordado na articulação com as instituições e as pessoas. Conversamos muito, com interlocutores conhecidos, com pessoas que não conhecíamos e respeitamos, ou que pensam de maneiras diferentes, sempre testando e construindo. Nos reuníamos semanalmente, em que cada um trazia questões, projetos, e íamos dividindo grupos por interesse. Foi um processo muito orgânico e ao mesmo tempo intenso que foi definindo as diretrizes. Foi um projeto construído conjuntamente com a temática ampla dos “modos de fazer, modos de usar” e da experiência da cidade, sobre mobilidade urbana e espaço público. Algumas questões permaneceram e outras não, mas, se olharmos a primeira apresentação que montamos em janeiro, a Bienal está essencialmente lá. Inacreditável que conseguimos realizá-la!
AD: O que você acha que implica para o futuro das Bienais fazer com que ela se espalhe pela cidade? O que vai mudar com essa proposta de fazer a Bienal de Arquitetura estar na cidade?
LN: É difícil responder agora, acredito que teremos esta resposta depois. O desejável foi fazer essa Bienal em rede, em espaços públicos acessíveis que são usados pelas populações locais. Escolhemos trabalhar com essas diferentes instituições culturais, articuladas por transporte público de trilhos, que já têm públicos específicos, que talvez nunca visitassem uma exposição de arquitetura. A cidade é feita por todos e afeta a nossa vida cotidiana. Esta Bienal buscou ampliar e tornar compreensível questões complexas para um público amplo, dar visibilidade para experiências urbanas e novas ferramentas de fazer e usar as cidades. Quando se trabalha em rede e em espaços diferentes, tem-se a potencialidade de ampliar esse discurso para além do meio específico da “caixinha” profissional. O Centro Cultural São Paulo é incrível, por exemplo. Trabalhando lá direto vemos que de manhã ficam os mais velhos, lendo, jogando xadrez, depois o morador de rua, aí vem a garotada que dança, com vários grupos, além dos estudantes. O Centro Cultural São Paulo é muito usado e por uma população bastante heterogênea. É o lugar mais público para mim, junto ao SESC Pompéia. Importante fazermos uma avaliação desta X Bienal de Arquitetura de São Paulo, dos erros e acertos, por parte da equipe, além dos parceiros e públicos, para que se possa deixar um legado, que participe de fato da constituição de uma esfera pública no Brasil, e particularmente no âmbito de arquitetura e urbanismo, com maturidade e interesses coletivos.
AD: A Bienal envolve o tema da mobilidade e faz acontecer este tema através dela. O que você pensa dessa proposição? O que vê de proposta para o problema da mobilidade hoje em dia? Quais seriam as propostas para amenizar os problemas das cidades em relação aos deslocamentos, à acessibilidade, à mobilidade?
LN: É uma questão complexa e, sem dúvida, a mobilidade tem a ver com a acessibilidade –ou seja, com o acesso aos serviços e à fruição da cidade, e à terra como valor de troca–. As cidades brasileiras acabaram seguindo, uma combinação do modelo norte americano e europeu, com diretrizes de espraiamento e dos subúrbios, com aspectos sócio-econômicos marcados por alta desigualdade, e temos um desafio grande para inverter este curso histórico.
AD: E no Brasil isso se deu tanto para os ricos como para os pobres.
LN: Na escala em que estamos, fica evidente que a mobilidade vai se dar por uma combinação de modalidades diferentes (e que inventaremos novas, verticais, transversais), em condições mais densas e sem distinções claras entre o urbano e rural. Inclusive há um projeto incrível na Bienal, o Cities without Ground, na exposição Densidade no CCSP, que são perspectivas de Hong Kong, mostrando exatamente o espaço público em várias camadas. Hong Kong talvez seja o futuro exacerbado dessa questão, mas ela aponta para outros modos de conectar habitação, trabalho, serviços, lazer e novos usos. Do ponto de vista da política pública, no Museu da Casa Brasileira, discutimos por exemplo o projeto Casa Paulista, que é uma tentativa no centro histórico expandido de São Paulo, de estruturar novas configurações entre agentes privados e públicos, incluindo legislação, regulamentação da qualidade da arquitetura e dos espaços públicos comuns, e de programa. Implica também em jogos de forças e conflitos de interesses entre movimentos sociais, governos, setor privado e moradores na construção da cidade. São projetos urbanos em curso que apontam para perguntas relevantes como estamos construindo nossas cidades para quem?
AD: Você vê a cidade por um ponto de vista mais positivo, onde ela própria cria novas oportunidades de novas formas de fazer, de usar, como o tema da Bienal, ou acredita num ponto de vista mais pessimista, da necessidade de propostas que barrem os carros, por exemplo?
LN: Vivemos um momento muito interessante de inflexão, de redefinição de responsabilidades e posturas para conseguirmos construir condições novas. Irá depender das escolhas que nós (é claro que são vários atores) vamos tomar em relação a isso. Eu vejo ou a possibilidade de um colapso negativo ou um colapso positivo. Ou talvez sejam os dois. Se tivemos no pós Segunda Guerra o surgimento dos welfare states na Europa, hoje os papeis do estado, setor privado e sociedade civil estão se reconfigurando mundialmente. O cidadão não é só consumidor e usuário passivo, mas também é agente. Quais são as novas responsabilidades dos múltiplos atores?
AD: Você acha que as manifestações de junho e julho reforçaram ou mesmo criaram este momento?
LN: Eu acho que reforçaram. As manifestações trouxeram visibilidade às inquietações da população, de formas difusas e diversas. Como vamos desdobrá-las é uma questão. Um texto recente muito interessante do Pablo Ortellado sobre o Movimento Passe Livre trata sobre a questão do processo político e do resultado, e de como ali se inaugurou algo novo que não é só o falar, mas é conseguir, com agilidade, transformar alguma coisa de maneira concreta. No início dos anos 2000, tivemos o primeiro Fórum Social Mundial, além de coletivos de arte em São Paulo ligados aos movimentos sociais com questões similares. Recentemente, vemos em São Paulo e em outras cidades brasileiras, além das manifestações nas ruas, muitas iniciativas que fazem horta urbana, e transformam ruas, praças, muros, escadarias em espaços coletivos com qualidade. São iniciativas, que (re)significam os modos de agir e viver na cidade. É algo novo... As pessoas estão fazendo, articulando-se, propondo novas posturas e exigindo novas ferramentas por parte do poder público.
No SESC Pompéia, a plataforma Modos de Colaborar, justamente convidou experiências de grupos, universidades, coletivos, e escritórios de arquitetura que criaram situações para transformar o seu contexto e para novos imaginários. Temos o CRIT, de Mumbai, que cria narrativas semi-ficcionais para a nova cidade de Gurgaon (a 30 km de Nova Delhi), o NLÉ, que trabalha em Lagos e fez uma escola flutuante em Makoko, junto com a comunidade e com verba internacional. O Supersudaca que trabalha em rede, e realizou pesquisas sobre o Caribe e a China, e fenômenos urbanos na América Latina. O DESIS Lab / Parsons em Nova York, com direção de Eduardo Staszowski e Laura Penin, em parceria com a EISE –Escola de Design de Serviços em São Paulo– mapearam iniciativas positivas de comunidades criativas no bairro da Pompéia. E a rede “Como Virar Sua Cidade” reúne coletivos de São Paulo. Dá para fazer! Significa escolhermos projetos e práticas tangíveis e desejáveis. Ativadas em rede, essas ações compartilham experiências e fortalecem-se. São novos modos de agir –singulares ou colaborativos–, que não são necessariamente fáceis, que implicam conflitos de interesses, porém também geram cotidianos mais prazerosos e cidades melhores para todos.