O apelido Rainha da Sucata originou-se pela utilização, como revestimento, de chapas de aço SAC-41, cuja propriedade mais visível é sua oxidação controlada, ficando com aspecto de ferrugem no caso interpretada como sucata.
Ali, numa praça do início da construção de Belo Horizonte, com o Palácio do Governo, suas Secretarias em estilo eclético, um conjunto aparentemente harmônico e antigo, mas que com uma leitura mais atenta, consegue-se perceber várias construções e de várias épocas, como por exemplo a “Casa do Bispo” de Raffaello Berti, neoplasticista, com utilização de pó de pedra como revestimento da fachada, técnica e estilo utilizado em várias construções da capital nas décadas de 30/40; o Edifício Tancredo Neves, de Oscar Niemeyer (década de 50), de bela arquitetura mas incompatível com o porte da Praça; o Edifício Xodó, de Sylvio de Vasconcellos e o IPSEMG, de Raphael Hardy (50/60), este último, com uma preocupação real com a volumetria da Praça quando, da sua concepção, mantndo próximo à rua construção de altura pertinente com os edifícios existentes e afastando a torre, enfraquecendo sua presença na praça e, o anexo da Secretaria de Educação, década de 60 (Galileu Reis). Um pouco mais afastada, a Biblioteca Pública, (que Niemeyer renega pelas mudanças, mas que contém seus traços característicos), fecha esta arcada. Todas as décadas, menos a de 70, de alguma forma, ali estavam representada e, para a “Rainha” ficou a responsabilidade de contar a história dos anos 80, anos pluralistas, de grande efervescência e discursos cheio de adjetivos e substantivos.
Contamos esta história e as pessoas foram provocadas a perceberem e zelarem pelo seu momento atual. Discutiu-se novamente a arquitetura da cidade e, foi-se além do “gosto/não gosto”, imediatismo duvidoso e frágil, hoje já sem forças para polemizar.
Mas não foi uma inserção gratuita, apenas figurativa e provocativamente diferenciada. Ela é fruto de um estudo geral da Praça e seus edifícios (desenhos, fotos e maquetes) no que diz respeito à sua volumetria, elementos formais, massas e aberturas e possibilidades representativas dentro da história, critérios universais de inserção.
Vestiu-se, de forma escancarada, de materiais ligados à construção e à indústria mineira como as chapas metálicas enferrujadas que lhe sugeriram o apelido, e como dente de ouro completou a dentadura da Praça.
Por alguma razão, ou por ser tão “barroca”, seu nome está quase sempre ligado ao do Éolo. Virou capa de livro, virou tese estudantil, museu de mineralogia. Tentou-se fechar o anfiteatro, foi colocado o newtoniano gradil, sumiu o ar condicionado do burocrata, a flor do vaso da secretária foi trocada, nunca fizeram as grandes palmeiras metálicas localizadas junto às testadas (medo do Ibama e dos ecologistas, diziam). Constui-se uma tímida rampa paraplégica na entrada, o elevador nunca saiu do papel e os ótimos banheiros no andar semi-enterrado, públicos, nunca foram usados. Pois é, tudo começou com um convite da Secretaria de Esporte, Lazer e Turismo, da época, para se projetar ali dois banheiros públicos, neste terreno abandonado em plena Praça do Governo e onde tinha sido morta uma pobre menina de rua. O dois banheiros serviram de base para que propusessemos o centro de apoio turistico principalmente por causa da feira de artesanato e arte (hoje na Av. Afonso Pena) que ali funcionava e esta é a razão por este projeto não ter sido contratado através de concurso público, forma de licitação que defendo e que evita que a cidade seja construída apenas por um ou dois arquitetos aparentados..
- Articulações com a paisagem:
- - linguagem. Diz nosso professor de plantão CACÁ Brandão que o pós modernismo mineiro começou e terminou com a Rainha da Sucata. Já Krishan Kumar diz que o pós moderno aceita a “tradição do novo”, cumpre a grande promessa de uma cultura pluralista com suas muitas liberdades. É um movimento em essência , mistura eclética de qualquer tradição com a do passado imediato. É tanto uma continuação do modernismo quanto sua trancendência. Seus melhores trabalhos são, característicamente, de dupla codificação e irônicos, dando destaque à amplitude das tradições, porque tal heterogeneidade capta com a maior clareza possível nosso pluralismo.
- - partido (composição). Podemos dizer que o partido é literalmente resultante da forma do terreno, algo mais próximo das antigas arquiteturas do que do moderno que se apresentava quebrando esta linearidade ou continuação da volumetria do lugar. Por estar em um terreno isolado, apresenta 3 fachadas que, mesmo sendo resultado de um eixo simétrico, não é percebida de imediato pois uma das simétricas é secundária em relação a Praça e a Posterior tem forte presença na avenida lateral e por ser quase “fosca”, permite, em grande escala, os revestimentos cerâmicos e metálicos. Protege o prédio do sol da tarde.
- - escala. Respeita a escala principal da Praça formada pelos prédios ecléticos (da época da construção da cidade). A legislação da época (bem como a de hoje) não permitia construções no alinhamento e para que a Rainha pudesse completar esta escala prevista por nós, fomos ao legislador e conseguimos que a lei fosse modificada para este caso específico e nossa contrapartida foi reduzir o coeficiente (área possível) e trabalharmos dentro da volumetria e não da capacidade de produzir solo criado do terreno.
- Relações:
- - conservador/inovador. É conservador por abordar obviamente volumetria, elementos da arquitetura existente e de se pretender um edifício datado, representante de um periodo (80), mas inova quando acrescenta diferentes revestimento como o aço corten (hoje corriqueiro), ludicidade, cores constratantes (normamente consideradas cores de carnavais e casas pobres) e coloca em discussão a inserção do novo em espaços de preservação patrimonial e histórica.
- - continuidade/ruptura. Obvia continuidade urbana, principio fundamental da sua inserção volumétrica mas rompe com os princípios modernistas, incorpora discursos, recusa a invisibilidade, o mimetismo e propõe instigantemente perguntas.
- - monumento/tecido. Embora para alguns o “espalhafatoso” fosse fora do tom da conservadora capital mineira, a “Rainha” foi aos poucos se insinuando no espírito carregado de tradições daquele lugar que, apesar de ter se rendido aos modernistas (que se impuseram sem a menor preocupação constextualista), mostrou-se quase inabordável ao pós moderno (Helena Maria do Amaral Campos).
Embargado durante anos foi finalmente inaugurado em 1992.
Na porta de entrada, embaixo, existe uma placa: Arquitetos Éolo Maia e Silvio Henrique Podestá, ou algo assim.
Muito barroca!
Texto: Sylvio E. de Podestá