A arquitetura é a arte de compor e de realizar todos os edifícios públicos e privados.
A arquitetura é entre todas as artes aquela cujas realizações são as mais caras; já custa muito levantar os edifícios privados menos importantes; custa muito mais ainda erigir edifícios públicos, ainda que tenham sido concebidos tanto uns como os outros com a maior prudência, e se em sua composição não se seguiram outras guias que o preconceito, o capricho ou a rotina, os gastos ocasionados se convertem em incalculáveis.
O palácio de Versalhes, edifício em que é possível encontrar inumeráveis aposentos e, por outro lado, nenhuma entrada, milhares de colunas e nenhuma colunata, uma extensão imensa sem grandiosidade, uma riqueza extrema sem magnificência, é um exemplo patente desta verdade.
A respeito do gasto ocasionado por este edifício vejamos o que disse Mirabeau na página 33 de sua decima nona carta a seus comitentes: «o Marechal de Belle-Isle se deteve apavorado quando chegou a contar até mil e duzentos milhões em gastos feitos para Versalhes, e não ousou sondar até o fundo deste abismo».
Contudo, a Arquitetura, esta arte cujo emprego é tão custoso, é ao mesmo tempo aquela cujo uso é mais constante e mais geral; em todos os lugares e em todas as épocas se construíram um grande número de moradas privadas para os indivíduos e de edifícios públicos para as diferentes sociedades que cobriram a terra, e apesar da multiplicidade destes edifícios, apesar dos milhares de exemplos, mais ou menos preocupantes, como esse que acabamos de dar, exemplos que bastariam para nos enfastiarmos da Arquitetura, cada dia vejo levantar novos monumentos desta arte; é preciso então que seja muito necessário para a espécie humana e inclusive que seja para ela uma fonte de muito doces prazeres.
Efetivamente, a Arquitetura é entre todas as artes a que proporciona ao homem as vantagens mais imediatas, maiores e mais numerosas; o homem deve a ela sua conservação; a sociedade, sua existência; todas as artes, seu nascimento e seu desenvolvimento; sem ela a espécie humana, confrontada com todos os rigores da natureza, ocupada unicamente em se defender da necessidade, dos perigos e da dor, longe de chegar a desfrutar de todas as vantagens da sociedade, possivelmente haveria desaparecido quase por completo da superfície do globo.
Há que se assombrar, depois disto, do uso prodigioso que se faz desta arte? Se algo fosse capaz de nos causar assombro em relação à Arquitetura, não seria sobretudo a indiferença contra uma arte cujos resultados são tão importantes? Não seria negligência da nossa parte não começar a nos instruirmos sobre os primeiros princípios de uma arte, que em vista das vantagens imensas que nos proporciona e dos terríveis inconvenientes que pode acarretar a ignorância ou a falsa aplicação de seus princípios, merece tanto ser estudada? É efetivamente através de um estudo profundo que o artista conseguirá evitar seus inconvenientes e multiplicar suas vantagens.
Sendo a arquitetura de um interesse tão grande, tão geral, seria então necessário que esta arte fosse por todos conhecida, mas posto que não é, pelo menos é imprescindível que os que têm que exercê-la tenham dela um perfeito conhecimento.
Os arquitetos não são os únicos que têm que construir edifícios; os engenheiros de qualquer classe, os oficiais de artilharia, etc., experimentam frequentemente esta obrigação; se poderia inclusive argumentar que, atualmente, os engenheiros têm mais oportunidades de realizar obras que os arquitetos propriamente ditos. Na verdade, estes, no curso de sua vida, geralmente não têm que construir mais que casas particulares, enquanto que os primeiros, além do mesmo tipo de edifício que possam ser requisitados a ele, igualmente, nas regiões longínquas, onde os arquitetos são muito escassos, se encontram, por sua condição, chamados a levantar hospitais, prisões, quartéis, arsenais, armazéns, pontes, portos, faróis, enfim, uma profusão de edifícios de máxima importância; assim, os conhecimentos e as aptidões em arquitetura são a eles pelo menos tão necessárias quanto aos arquitetos de profissão.
Para obter êxito rápido e seguro no estudo de qualquer arte é indispensável conhecer primeiro a natureza dessa arte; saber por que uma pessoa se dedica a ela e como em geral uma pessoa deve se dedicar a ela, em outros termos, assegurar-se do fim ao qual se propõe, assim como dos meios que se devem empregar para chegar a ele.
Não será difícil descobrir o objetivo da arquitetura. De acordo com o vimos acima, é evidente que ela não tem mais que a utilidade pública e privada, a conservação, a felicidade dos indivíduos, das famílias e da sociedade.
Os meios que deve empregar para alcançar um objetivo tão interessante e tão nobre serão muito mais difíceis de reconhecer; a arquitetura é feita para o homem e pelo homem, esses meios podem ser encontrados somente à sua maneira; algumas observações bem simples serão suficientes para descobri-los.
Por menos que observemos a marcha e o desenvolvimento da Inteligência e da sensibilidade, reconheceremos que em todas as épocas e em todos os lugares todos os pensamentos do homem e todas suas ações têm por origem estes dois princípios: o amor ao bem estar e a aversão a qualquer tipo de pena. É por isso que os homens, sejam os que quando isolados construíram moradias particulares, sejam os que quando reunidos em sociedade levantaram edifícios públicos, tiveram que procurar: 1º tirar dos edifícios que construíam o maior proveito e, consequentemente, fazê-los da maneira mais conveniente para o sua destinação; 2º antes de tudo construi-los da maneira menos penosa, e em seguida na menos dispendiosa, caso o dinheiro tenha se tornado o valor do trabalho.
Assim, conveniência e economia são os meios que deve naturalmente empregar a arquitetura e as fontes das quais deve extrair seus princípios, os únicos que podem nos guiar no estudo e no exercício dessa arte.
Em principio, para que um edifício seja conveniente é preciso que seja sólido, salubre e cômodo.
Ele será sólido se os materiais empregados são de boa qualidade e estão distribuídos com inteligência; se o edifício descansa sobre boas fundações; se seus principais suportes estão em número suficiente, postos perpendicularmente para ter mais força, e dispostos equidistantemente a fim de que cada um deles sustente uma porção igual de carga; por último, se existe entre todas suas partes tanto horizontal como verticalmente a união mais íntima.
Ele será salubre se está colocado num lugar sadio, se sua superfície ou pavimento estão elevados por cima do solo e protegidos da umidade; se as paredes que preenchem o intervalo entre os suportes que compõem o esqueleto protegem do calor e do frio a parte interior; se estas paredes estão perfuradas com aberturas capazes de deixar penetrar o ar e a luz; se todas as aberturas feitas nas paredes interiores correspondem a aberturas exteriores, a fim de facilitar ao ar o meio de renovar-se; se uma coberta o abriga da chuva e do sol, de maneira que sua borda se prolongue além das paredes afastando as águas; e se se encontra exposto ao sol, ao sul nos países frios, ou ao norte nos países quentes.
Finalmente, ele será cômodo se o número e o tamanho de todas suas partes, se sua forma, sua situação e sua disposição estão na mais exata relação com sua destinação.
Eis o que compete à conveniência, e a seguir o que concerne à economia.
Dada uma determinada área, se observa que quando está encerrada pelos quatro lados de um quadrado exige um contorno menor que quando está encerrada pelos de um paralelogramo, e menos ainda quando está encerrada pela circunferência de um círculo; que em questão de simetria, de regularidade e de simplicidade, a forma do quadrado, superior à do paralelogramo, é inferior à do círculo, pelo qual tendemos a concluir que um edifício será tão menos dispendioso quanto mais simétrico, mais regular e mais simples for. Não é necessário acrescentar que se a economia prescreve a maior simplicidade em todas as coisas necessárias, proscreve por completo tudo aquilo que é inútil.
Tais são os princípios gerais que, por todas as parte e em todos os tempos, em se tratando de erguer edifícios, tiveram que guiar os homens racionais; e tais são efetivamente os princípios segundo os quais os edifícios antigos mais ampla e justamente admirados têm sido concebidos, como se pode convencer a seguir.
Estes princípios, como se vê, são simples como a natureza; não são menos fecundos, como não tardaremos em ver.
No entanto, não é assim que se considera geralmente a arquitetura, a ideia que damos não é nada menos que aquela formada habitualmente.
Segundo a maior parte dos arquitetos, a arquitetura é menos a arte de fazer edifícios úteis que a de decorá-los. Seu objetivo principal é dar prazer aos olhos, e através dele provocar-nos sensações agradáveis, às quais, como nas outras artes, só podem chegar através da imitação. Deve-se tomar como modelo as formas das primeiras cabanas que os homens levantaram e as proporções do corpo humano. Ora, as ordens de arquitetura inventadas pelos gregos, imitadas pelos romanos, e adotadas pela maior parte das nações da Europa, são, segundo estes autores, uma imitação do corpo humano e da cabana, sendo, por conseguinte, a essência da arquitetura. Do que se deduz que a beleza das decorações formadas pelas ordens é tal que de maneira alguma se deve considerar a despesa que implica necessariamente a decoração.
Porém, posto que não se possa decorar sem dinheiro, e que quanto mais se decore mais se gasta, é lógico examinar se é verdade que a decoração arquitetônica, tal como os arquitetos a concebem, proporciona todo o prazer que nos promete, ou ao menos se este prazer compensa os gastos que ocasiona.
Porém, uma vez que não se pode decorar sem dinheiro, e quanto mais em decoração, mais em despesa, seria natural examinar se é verdade que a decoração arquitetônica, tal como os arquitetos a concebem, proporciona todo o prazer que promete, ou se pelo menos esse prazer compensa os custos que ela ocasiona. Para que a arquitetura pudesse dar prazer mediante a imitação, seria necessário que seguindo o exemplo de outras artes imitasse a natureza. Vejamos se a primeira cabana que o homem fez é um objeto natural, se o corpo pode servir de modelo às ordens; vejamos, por ultimo, se as ordens são uma imitação da cabana e do corpo humano.
«Leia aqui Ensaio sobre a Arquitetura, de Marc-Antoine Laugier»
As colunas, os entablamentos e os frontões, cuja reunião forma o que se chama uma ordem de arquitetura, são os componentes essenciais da arte, os que constituem sua beleza; e as paredes, as portas, as janelas, as abóbodas, as arcadas, assim como outros componentes acrescentados apenas pela necessidade, não são mais que licenças que se devem ao máximo tolerar; esta é a estranha conclusão que faz o autor que acabamos de citar.
Do conhecimento da cabana passemos ao das ordens.*
Comecemos pela ordem dórica, que os gregos, como dizem, fixaram em seis diâmetros, posto que o pé de um homem era a sexta parte de sua altura. Em primeiro lugar, o pé de um homem tem, não a sexta parte, mas a oitava parte da altura de seu corpo. Por outro lado, em todos os edifícios gregos a proporção das colunas dóricas varia infinitamente (ver parallèle, 63), e nesta variedade infinita, a relação exata de seis para um não se encontra sequer uma única vez. Se algum arquiteto grego se dispôs a atribuir essa proporção à ordem dórica, parece que os gregos não lhe deram nenhuma importância, caso contrário, ela seria encontrada em todos os seus edifícios, pelo menos nos que se levantaram no tempo de Péricles, edifícios que são tidos, com razão, como obras primas.
A mesma variedade se aprecia nas proporções das outras ordens que se afirma serem imitações do corpo da mulher e da donzela (ver parallèle, 64). Não é então verdade que o corpo humano tenha servido de modelo às ordens.
Porém, suponhamos que nos mesmos casos, a mesma ordem tenha sempre as mesmas proporções; que os gregos tenham seguido constantemente o sistema atribuído a eles e que o comprimento do pé seja a sexta parte da altura do corpo do homem: se deduz disto que as proporções das ordens sejam uma imitação das do corpo humano? Que comparação pode ser feita entre o corpo do homem, cuja largura varia a cada altura diferente, e uma espécie de cilindro cujo diâmetro é sempre o mesmo? Que semelhança pode haver entre estes dois objetos, ainda que se suponha uma mesma base, uma mesma altura? É então evidente que as proporções do corpo humano não serviram nem puderam servir de modelo a estas ordens.
Se as proporções das ordens não puderam ser imitadas das do corpo humano, as formas dessas mesmas ordens não o foram, muito menos, das da cabana. As colunas eram ou base com capitéis ou pelo menos capitéis, pois não se admitiria nunca como tal uma coluna que não fosse absolutamente um cilindro. Ora, não se vê nada disso tudo nos troncos das árvores ou nos pilares que sustentam a cabana. Em vão se dirá que, além disso, sobre os pilares se puseram tábuas ou pranchas para alargar a parte superior e torná-lo mais capaz de suportar o entablamento, dado que, com o mesmo comprimento, uma peça de madeira composta de fibras longitudinais é menos propensa a romper que um pedaço de pedra composto de pequenos grãos agregados uns aos outros. Se um desses objetos tivesse que servir de modelo ao outro seria mais natural acreditar que as pranchas de madeira foram imitadas dos capitéis de pedra, que acreditar que estes últimos tenham sido imitados daqueles.
O entablamento não imita mais perfeitamente as partes superiores da cabana como as colunas não imitam os apoios. Num edifício quadrado, se se colocam mútulos ou modilhões, que se supõe representarem as extremidades das peças inclinadas da cobertura dessa cabana, se colocam em todo o perímetro; seria inclusive ridículo agir de outra maneira. No entanto, na cabana não se veem mais que em dois lados; ocorrendo o mesmo com os tríglifos. Por outro lado, na cabana, a extremidade das vigas ou vigotas, das quais os tríglifos, se supõe, são uma imitação, é lisa, e os tríglifos são acanalados: inclusive o seu nome não se deve mais que aos dois canais e aos dois semicanais que se notam. Se então os arquitetos que inventaram as ordens procuraram imitar a cabana, a imitaram certamente muito mal. Mas parece, pelo o que disse Vitrúvio em mais de uma ocasião, que os gregos, longe de se sujeitar a imitar essa cabana, tiveram o empenho, pelo contrário, de disfarçar as partes de seus edifícios que poderiam se parecer muito com as partes da cabana.*
Nos entablamentos das ordens jônica e coríntia, os gregos foram muito mais longe; fizeram desaparecer totalmente todos os vestígios da cabana (ver Parallèle, p. 65 e 66), e no entanto, por uma contradição muito singular, são estas últimas ordens as que os partidários da cabana contemplam como as mais belas.
É então evidente que as ordens gregas nunca foram imitações da cabana, e que, se houvessem sido, essa imitação não poderia ser mais imperfeita e consequentemente incapaz de produzir o efeito que se esperava.
Mas não é esse modelo ele próprio ainda mais imperfeito que a cópia? O que é uma cabana aberta a todos os ventos, que o homem levanta penosamente para se proteger, e que não o protege de nada? Pode essa cabana ser vista como um objeto natural? Não é evidente que ela não é mais que o produto informe dos primeiros ensaios da arte? Seria porque o instinto que guiou o homem nessa produção foi tão grosseiro que nem merece o nome de arte, seria por isso que se a considera como uma produção da natureza?
Ora, se a cabana não é jamais um objeto natural, se o corpo humano não pôde servir de modelo à arquitetura; se, inclusive na suposição do contrário, as ordens não são jamais uma imitação de um e de outro, teremos necessariamente que concluir que essas ordens não formam jamais a essência da arquitetura; que o prazer que se espera do seu emprego e da decoração resultante é nulo; que finalmente essa decoração mesma não é mais que uma quimera, e a despesa a que conduz, uma loucura.
Do que se deduz que, se o fim principal da arquitetura era dar prazer, seria necessário ou que imitasse melhor ou que buscasse outros modelos ou que usasse outros meios distintos de imitação.
Mas será verdade que o principal fim da arquitetura seja dar prazer, e que a decoração seja o objeto principal de que se deva ocupar? Na passagem de Laugier, que citamos logo acima, se vê que, apesar de suas estranhas prevenções, esse autor não pôde evitar reconhecer que é apenas à necessidade que esta arte deve sua origem, e que não tem outro fim que a utilidade pública e privada. E como ele poderia ter se ofuscado sobre isso, mesmo supondo que o homem que levantou essa cabana, que foi o modelo da arquitetura, teria sido capaz de conceber a ideia de decoração? A ideia de suas necessidades e dos meios apropriados para satisfazê-las não deveria se oferecer primeiro a seu espírito e inclusive banir qualquer outra ideia? É racional crer que estando isolado, tendo que se defender da intempérie das estações e do furor de animais ferozes, para proporcionar uma infinidade de vantagens das que até então estava privado, o homem, ao levantar um abrigo, teria sonhado somente em fazer um objeto apropriado a distrair seus olhos? É mais fácil crer que os homens reunidos em sociedade, tendo uma infinidade de ideias novas, e consequentemente uma infinidade de novas necessidades a satisfazer, tenham feito da decoração o objeto principal da arquitetura?
Alguns autores, que apoiaram e desenvolveram o sistema da cabana com todo engenho imaginável, dirão que até aqui não se tratou mais que de construção, que nesse contexto a arquitetura não era mais que um ofício, e que não mereceu o nome de arte até o momento em que os povos, chegados ao seu mais alto grau de opulência e de luxo, buscaram dar um atrativo aos edifícios que erguiam. Porém nós perguntamos a esses mesmos autores: Foi quando os romanos alcançaram seu mais alto grau de opulência e luxo, e cobriram de molduras, de entablamentos, etc., seus edifícios, que fizeram sua melhor arquitetura? Sendo os gregos bem menos opulentos, não é sua arquitetura, na qual esses objetos são tão escassos, preferível à arquitetura romana? Esses mesmos autores estão de acordo; dirão até que é a única que merece o nome de arquitetura. Pois bem! Essa arquitetura que eles admiram, e que merece ser geralmente admirada, não teve jamais como fim dar prazer, nem como objeto a decoração. Na verdade, se aprecia o cuidado, a pureza na execução, mas não é isso essencial para a solidez? Em alguns edifícios se observam alguns ornamentos escultóricos, mas os outros, em sua maior parte, estão totalmente privados disso, e não são por isso menos estimados. Não é evidente que esses ornamentos não são jamais essenciais à arquitetura? Mesmo aqueles que são empregados quando se crê que têm que ser empregados, não anunciam claramente que estão longe de pretender dar prazer pela beleza intrínseca de suas proporções e de suas formas? E se entre as últimas se percebem algumas que não surgem diretamente da necessidade, não provam as diferenças que se encontram em cada edifício que os gregos não concediam nenhuma importância à decoração arquitetônica?
Seja consultando a razão, seja examinando os monumentos , é evidente que dar prazer não pôde ser jamais o fim da arquitetura, nem a decoração arquitetônica ser seu objeto. A utilidade pública e privada, a felicidade e a conservação dos indivíduos e da sociedade, tais são, como vimos desde o principio, o fim da arquitetura.
Porém, ainda se poderia dizer que, posto que existem edifícios que se admiram ou se desprezam com razão, existem então belezas e defeitos na arquitetura: ela então terá que buscar as primeiras e evitar os últimos, podendo então dar prazer; e ainda que este não seja seu fim principal, deverá pelo menos tratar de unir o útil ao agradável.
Estamos longe de pensar que a arquitetura não pode dar prazer; pelo contrário, afirmamos que é impossível que não agrade quando é tratada segundo seus verdadeiros princípios. Não uniu a natureza o prazer à satisfação de nossas necessidades, e não são nossos prazeres mais vivos simplesmente a satisfação de nossas necessidades mais imperiosas? Ora, uma arte como a arquitetura, uma arte que satisfaz imediatamente um grande número de nossas necessidades, que nos põe ao alcance satisfazer facilmente todas as demais, que nos defende das intempéries das estações, que nos faz desfrutar de todos os dons da natureza e de todas as vantagens da sociedade, uma arte, enfim, à qual todas as demais artes devem sua existência, poderia deixar de nos dar prazer?
Sem dúvida que a grandeza, a magnificência, a variedade, o efeito e o caráter que se apreciam nos edifícios são tanto as belezas como as causas do prazer que experimentamos do seu aspecto. Porém, que necessidade temos de correr atrás de tudo isso? Se se dispõe um edifício de uma maneira conveniente ao uso a que se destina, não se diferenciará sensivelmente de outro destinado a outro uso? Não terá naturalmente um caráter, e mais ainda, um caráter próprio? Se as diversas partes desse edifício, destinadas a diversos usos, estão dispostas cada uma da devida maneira, não se diferenciarão necessariamente umas das outras? Não oferecerá esse edifício variedade? Esse mesmo edifício, se está disposto da maneira mais econômica, ou seja, a mais simples, não se parecerá o maior, o mais magnífico possível, já que a vista abraçará de uma vez o maior número de suas partes? Onde está então a necessidade de correr atrás de todas essas belezas parciais?
E mais ainda, isso, longe de ser necessário, é nocivo à própria decoração; efetivamente, se, por motivo de certas belezas de um edifício que os impressionou, decidam transferi-las a outro que não é suscetível, ou se essas mesmas belezas são encontradas nele naturalmente, desejem levá-las a um ponto mais alto do que a natureza do edifício permite, não é evidente que esse edifício terá um aspecto, uma fisionomia diferente da que deveria ter, que não terá mais seu caráter, que suas belezas naturais se debilitarão, se desvanecerão, e podem até se converter em defeitos repulsivos? A Vênus de Médici e o Hércules Farnese são figuras admiráveis; porém, se devido à cabeça de uma ser mais refinada ou ter mais caráter que a cabeça do outro, se colocasse a de Vênus sobre o corpo de Hércules, e vice-versa, não se converteriam essas obras mestras da arte em obras mestras do ridículo? E se devido às diferentes partes dessas estátuas serem admiráveis, o escultor, para aumentar a beleza do conjunto, houvesse aumentado o numero delas e houvesse dado a essas figuras quatro braços, quatro pernas, etc., não seriam elas, pelo contrário, produções monstruosas?
Com o que acaba de ser dito, não devemos então nos dedicar à que a arquitetura agrade, visto que se ocupando unicamente de cumprir seu verdadeiro fim, é impossível que não agrade, e que buscando dar prazer, esta pode se tornar ridícula; não devemos então tampouco buscar dar variedade, efeito, caráter aos edifícios, porque é impossível que não tenham todas essas qualidades ao mais alto grau ao que são suscetíveis quando se faz uso unicamente dos verdadeiros meios dessa arte, quando lhes é dado tudo o que é necessário, nada mais que o necessário, e quando aquilo que é necessário está disposto da maneira mais simples.
É então somente da disposição que deve se ocupar um arquiteto, mesmo aquele que tenha apego à decoração arquitetônica e que não busque mais que dar prazer, pois essa decoração não pode ser considerada bela, não pode causar um verdadeiro prazer, enquanto não resulte da disposição mais conveniente e mais econômica.
Assim, todo o talento do arquiteto se reduz a resolver estes dois problemas: 1º com uma dada soma, fazer o edifício o mais conveniente que seja possível, como no caso dos edifícios privados; 2º dada a incumbência de um edifício, fazer esse edifício com a menor despesa que se possa, como no caso dos edifícios públicos.
Vê-se por tudo o que precede, que na arquitetura a economia, longe de ser, como geralmente se acredita, um obstáculo à beleza, é pelo contrário a fonte mais fecunda.
* Nota do tradutor: por motivo da extensão do texto, foram retirados desta tradução seis parágrafos de citações a Vitrúvio sobre as ordens clássicas, e um parágrafo mais adiante sobre o tríglifo.
Referência:
Jean-Nicolas-Louis Durand, Nouveau Précis des Leçons d’Architecture, vol. 1, 1813, pp.3-21.
Primeira edição em português. © Tradução: Igor Fracalossi. Colaboração: Flora Paim.