O arquiteto português ganhador do Pritzker em 1992 e do Leão de Ouro deste ano por sua trajetória, Álvaro Siza, concedeu uma interessante entrevista para o Arquiteto Omar Paris, de 30-60 cuaderno latinoamericano de arquitectura.
O lugar de encontro foi seu estúdio em Porto, Portugal. O edifício onde está seu escritório é uma mostra do que é sua arquitetura: austeridade, luz natural e o cuidado com os detalhes construtivos. O escritório estava praticamente vazio, mas era possível ver em cada posto de trabalho a energia de um lugar que está produzindo Arquitetura constantemente. As imagens que acompanham esta entrevista são as mesmos que o arquiteto dividiu com Omar Paris enquanto compartilhava gentilmente suas ideias.
O.P. Queríamos saber primeiro se um trabalho relacionado a um programa cultural possui um significado especial para você…
A.S. O programa cultural é muito interessante, bonito. Implica num empenho muito grande da cidade. Porque é um edifício que tem uma presença importante nela. E que possui, além desta variedade no programa, exigências muito claras em relação à luz natural e artificial, de aspectos de organização do museu, onde há distintas formas e opiniões. Eu tenho a minha e foi aceita.
Havia construído dois museus antes da Fundação Iberê Camargo. É um programa que trata da organização espacial e do tema da luz. Mas gosto de fazer um museu assim como uma casa. A questão é que se há interesse por parte de quem nos contrata. A maioria das vezes nos projetos de obras públicas, os políticos que estão quatro anos no poder querem construir e inaugurar de forma rápida.É uma luta alcançar algo de qualidade duma obra pública e neste caso foi muito boa.
Era um lugar belíssimo e muito complicado. Isso o fazia mais interessante ainda.”
O.P. Como teve início o projeto da Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre?
A.S. Foi um concurso, escolheram meu projeto e depois me deram ótimas condições de trabalho. Era um propósito da viúva de Iberê Camargo e que seus amigos apoiaram. Gerdau era amigo de Iberê.Ele possui uma empresa de aço e, portanto, havia dinheiro e vontade de fazer.
Um engenheiro que trabalha para Gerdau, o engenheiro Canal, foi uma pessoa fundamental na obra. Um engenheiro jovem que se interessa pela arquitetura e que organizou uma equipe de construção com os melhores de cada área. Viajava muito para cá para ver o projeto em todos os seus detalhes. E nós fomos muitas vezes a Porto Alegre.
Foi um prazer realizar este projeto. Uma congregação de esforços. Quando é assim ou nos saímos muito mal ou muito bem. Pois o normal é que cada projeto seja uma luta.
O.P. Qual foi o primeiro passo dado quando você foi encarregado projeto?
A.S. Primeiro, a dúvida normal de fazer um projeto onde os clientes não são conhecidos. Depois me insistiram muito, escreveram, mandaram fotos e vídeos do lugar. Então vi que eram pessoas empenhadas e sérias.
Era um lugar belíssimo e muito complicado. Isso o fazia mais interessante ainda. É difícil porque é estreito. A dificuldade do lugar é que era uma pedreira. É mais estreito numa ponta e está próximo da avenida e do rio. Coloquei do outro lado a parte do museu que exige maior dimensão e à medida que o edifício vai se estreitando adicionei outros corpos que vão acompanhando o terreno.
Eu queria deixar espaços com vegetação, que não gostaria de alterar. Com o desenvolvimento do projeto, um lado resultou muito ortogonal. E do outro é como que a forma transportasse a curva. Temos aí algumas salas, os acessos e um grande espaço em altura.
Um dos temas mais difíceis de decisão era o estacionamento. Era necessário um espaço de carga e descarga com caminhões grandes sem obstrução. Para obter boas condições, eu poderia utilizar apenas um nível subterrâneo, por causa do nível da água ( o Lago Guaíba está situado na frente do terreno). Mas necessitava colocar os arquivos ali, um pequeno auditório e um grande elevador.
Então, no princípio pensei em colocar o estacionamento com uma entrada por cima, mas não era possível porque era uma zona residencial e os vizinhos não o aceitavam. Logo, a única saída que vi era a de colocá-los abaixo da pista que não é algo usual e como era gente com influência na cidade negociaram com a prefeitura. A rota é de sentido único, mas com muito tráfego. Então, tivemos a ideia de fazer a metade do estacionamento, para não interromper totalmente a pista. Fechamos e fizemos a outra metade.
O.P. Tenho uma pergunta que me parece difícil, pois é um tema polêmico sobre o edifício. Por que é “fechado” ao Lago?
A.S. Há pequenas janelas de onde é possível ver toda a cidade. O museu necessita de certa interiorização, porque necessita de paredes para a exposição, de um ambiente próprio e luz controlada, como um escritório. E porque se você olhar está obrigado a ver uma paisagem belíssima. A beleza também tem sua intimidade. Depois de dois meses você odeia a paisagem porque é como uma imposição. Quando você se move dentro do museu há enquadramentos onde é possível ver toda a cidade, todo o delta a partir das janelas aparentemente pequenas ou no átrio abaixo.
Então, resta o espaço para a mostra do Iberê Camargo, e também instalações de outros artistas. O museu hoje deve estar receptivo às surpresas.
O.P. Quais seriam as constantes de sua obra que se refletem no Iberê Camargo?
A.S. O tema da luz, o controle da luz, é muito próximo ao museu de Santiago e o de Porto. Porque são dois sistemas que fiz pela primeira vez em Santiago. É uma peça que possui vidro por onde a luz entra e inunda toda a parede e há também o ar condicionado invisível, sem grades. E a luz artificial vem dali, onde é possível controlá-la. Outro processo é o teto duplo acessível, que é muito tradicional em vidro, luz natural controlável e luz artificial.
Outro fator é que, para mim, as salas devem ser regulares e geométricas. Podem ter distintas dimensões, mas sempre são salas. Não gosto destes museus de espaços abertos onde é difícil montar as exposições.
Está, também, o grande espaço central com uma pequena entrada, mas que recebe toda essa luz. Tudo é luz controlada.
Uma coisa que odeio é esta mania de colocarem projetores, porque quando alguém entra, fica cego. Além disso, é ruim para as obras de arte. Deve haver uma luz muito baixa, controlada, se não as obras podem ser danificadas. Quando Picasso pintava um quadro, não utilizava refletores. Pintava de dia ou de noite com a iluminação normal. Então para mim, é ilegítimo isto de criar efeitos. Porque não é o que o artista fez. É um abuso. Agora, se fazes uma instalação dentro de uma sala escura, preta, é necessário fazer os estudos de luz.Uma exposição com luz do dia é maravilhosa. E logo este tema da segurança, as exigências que hoje existem. É indispensável encontrar formas que não invadam o espaço.
O.P. E quais seriam as variáveis?
A.S. Nós temos nossas idiossincrasias. E cada obra tem um passado de experiência por trás, onde resulta, como se pode trabalhar ali. É muito distinto se o país é artesanal ou industrializado. Como é o orçamento, se há muito ou pouco dinheiro. Há um passado do mesmo arquiteto, e de todos os arquitetos pela história.
Também há especificidades. Pelo programa, o momento histórico, o momento político, que estrutura o projeto, a disponibilidade de variedade de funcionamentos, o lugar.
O.P. Como trabalham aqui em seu escritório?
A.S. Somos 23. Normalmente há um que é o coordenador do projeto com uma equipe. Dou as instruções preliminares e há um colaborador que faz as maquetes do terreno e estuda detalhadamente o programa para ver os condicionamentos e eu sigo o trabalho mais livre. E o coordenador trabalha também conjuntamente com os engenheiros, que no meu caso estão aqui no mesmo edifício. Portanto, os engenheiros participam nas discussões sobre o projeto. Se a obra está longe, aí o computador ajuda.
O.P.: Na fundação Iberê Camargo chama muita atenção a maneira como estão resolvidos os encontros dos percursos em forma de cruz?
A.S.: São muito importante. Ainda que a qualidade da obra não seja apenas isso, mas perde muito sem o cuidado dos detalhes. Se não há rigor na busca de continuidade dos materiais, em suas uniões não se consegue. A qualidade está se perdendo muito por várias razões. Uma é porque cada vez mais estão retirando o arquiteto do controle da obra.
Agora o colocam nessas equipes de obra contratadas por um proprietário que normalmente é completamente alheio ao tema da qualidade e é muito mais difícil porque há interferências. Se o proprietário da obra não está verdadeiramente interessado em possuir qualidade, será muito difícil encontrá-la.
O.P. Qual sua opinião sobre as publicações de arquitetura?
A.S.: A revista engana muito (risos). Você pode ver uma obra e quando a visita é muito diferente das fotos da revista. Porque a fotografia dificilmente consegue capturar a atmosfera verdadeira. A foto funciona assim. Com a obra de qualidade nunca há decepção quando você a conhece, pois a obra é mais que a foto.
Uma obra sonsa, débil, na foto você pode gostar muito. Quanto maior é a qualidade do fotógrafo, maior pode ser a surpresa. (risos)
Quando visitei pela primeira vez a Casa da Cascata foi sublime. Ou quando você vê uma obra de Barragán não é o mesmo que ver as fotos, é muito melhor.
O.P. Dos arquitetos da América Latina, há algum que você goste?
A.S. Muitos! Salmona eu gostava muito. Clorindo Testa, Niemeyer, Reidy… há vários ótimos. Os arquitetos da América Latina não são muito publicados. Não é fácil conhecê-los. América do Sul em geral está mal publicada. A maioria das revistas famosas europeias possui uma debilidade nisto.
L’architecture d’aujourd’hui na década de 50 publicou muito e depois deixou de fazê-lo. Deveriam se dedicar mais à América do Sul porque há coisas fantásticas e porque deste intercâmbio surgem coisas maravilhosas para os dois continentes. Quanto ganho Le Corbusier teve com sua presença na América do Sul! Houve uma verdadeira revolução em sua obra. Pode-se ver o entusiasmo nelas depois que ele passou por lá. Mas também quão importante foi a presença de Le Corbusier na América Latina. Este encontro é fundamental.
O.P: Você levou algo de seu encontro com a América do Sul?
A.S.: Na fundação Iberê Camargo se vê claramente que foi feito com grande entusiasmo o produto deste encontro com a extensão do território. Portugal é pequeno, e isso para mim teve um impacto enorme.
O.P. Tem algo para dizer aos recém-iniciados na arquitetura? Alguma dica?
A.S: A única dica é trabalhar e viajar. Aprender a ver. Viajar é a melhor aprendizagem que pode ser feita. Viajar, viajar e ver. É para todos um estímulo enorme. É como carregar as baterias. E depois trabalhar… É necessário lutar pelo reconhecimento do papel do arquiteto dentro de uma equipe. Hoje todos os trabalhos são em equipe. A tendência é que existam especialistas em engenharias, especialistas de não sei que coisa e o arquiteto é tratado como um especialista em arquitetura. Isto é uma coisa louca porque a especialidade do arquiteto é não ser especialista. Está em coordenar. É um espírito livre para olhar a todas as contradições que existem entre os distintos condicionamentos e construir um todo. A crise da arquitetura está num mundo que tende a considerar que tudo está fracionado… É um absurdo, nunca foi assim.
Hoje não há um Leonardo da Vinci ou um Michelangelo. Hoje há equipes onde para fazer bem, todos devem participar. Mas não é cada um em sua casa desenhando uma planta com seu computador e depois juntá-las. E isso é para mim a grande crise da arquitetura hoje, e também um problema cultural.
Alvaro Siza (1933) nasceu em Matosinhos, Portugal. É um dos cinco arquitetos mais reconhecidos do mundo. Recebeu importantes prêmios como Pritzker (1992) e a Medalha de Ouro do RIBA (2009). Criador de importantes edifícios que alojam programas culturais como o Centro Galego de Arte Contemporânea, em Santiago de Compostela, Espanha, e o Museu Serralves de Arte Contemporânea, em Porto, Portugal.
Colaboração:
Guillermo Mir, Sebastián Pereyra Macovaz, Ariana Vieira, Marco Rampulla
Fotografias:
Daniela Goulart1, Fábio Del Re2, Mathias Cramer3, Nivaldo V. Andrade4, Guillermo Mir5, Omar Paris6