MODOS DE OPERAR
Embora numa conversa de 1995 Miralles manifestasse suas dúvidas sobre a possibilidade de “estabelecer claramente umas regras de operação que sejam válidas em qualquer situação...”, sim falava em modos de operação, embora em um sentido ‘débil’, já que: “Não creio que se possa estar à frente do seu trabalho, levando-o, senão que de alguma maneira o próprio trabalho vai dirigindo as coisas através de pequenos desvios”. E com respeito a seu processo ou linha de trabalho explicava: “..., eu diria que não se trata tanto de uma linha, mas de um feixe. Um projeto consiste em saber atar múltiplas linhas, múltiplas ramificações que se abrem em distintas direções”.[1]
Uma aproximação não visual, senão construtiva
Miralles afirma: “Eu não opero com critérios visuais senão construtivos”. E: “Gosto de aceitar as qualidades gravitacionais dos materiais reais e da construção real. Desse modo não é o olho o que guia o desenho, senão que se trata em muito maior medida de como esses tipos de materiais construtivos complexos se põem juntos. Prefiro pospor a qualidade acabada do produto até o final.” Essa recusa dos critérios visuais como definidores da obra “deriva em outras atitudes, em outros mecanismos, que são sistematicamente evitados, por exemplo, a utilização da perspectiva como aquilo que dá forma às coisas...”.[2]
Diálogo mais que imposição de uma ideia
Frente ao projeto como aplicação de uma ideia prévia, Miralles propõe um processo dialogante: “Eu trocaria a palavra ideia pela palavra diálogo, conversa mais que ideia”. Trata-se de estabelecer um diálogo aberto com o que existe, ver com que relacionar os dados do lugar, buscar conteúdos comuns que ponham de acordo umas coisas com outras. “A ideia se põe detrás, nunca adiante...”. Além disso, como já apontava antes: “Me sinto partícipe da tradição que valora o fazer, o fabricar, como a origem do pensamento. Eu me sinto muito mais próximo a essa forma de operar que à tradição que busca a ideia abstrata como origem da atividade construtiva”. Por isso: “Todo projeto deveria poder ser contado sem partir de uma ideia específica, gosto muito desse conceito e há algo que desde muito tempo tenho vontade de fazer: exercitar-me em desenvolver coisas quase sem pensa-las. Me interessa muito o fato de que as decisões, as eleições que fazes no teu trabalho, sucedam gradualmente sem havê-las decidido já no começo”. As pranchas deverão ser entendidas então “como anotações, de algum modo incompletas,... sem forçar uma coerência fictícia com uma ideia de conjunto imposta”.[3]
O olhar distraído e o processo de projeto
O modo de operar de Miralles não segue um processo univocamente determinado. O arquiteto reivindica o valor de um olhar distraído como ferramenta projetual: “Meu modo de trabalhar está muito ligado à ideia de curiosiar ou de se distrair. Uma vez fixado o problema, o passo seguinte é quase se esquecer da finalidade do que estava fazendo, quase como para se distrair: logo voltará a fixar outra vez o problema, porém há uma parte de distração, de comportamento errático onde os saltos são fundamentais,...”. Assim: “A construção e os planos podem ser olhados do mesmo modo que se passa a vista distraída por uma página escrita” (Cemitério de Igualada). Trata-se de refazer todo o projeto cada vez, de inventar ao mesmo tempo que repetir o projeto. “Avança-se por sucessivos começos. Uma e outra vez, como se cada um fosse o definitivo...”. E: “Esse olhar distraído, que pensa outra coisa, responde ao desejo do que projeta de possuir todas as formas delineadas simultaneamente desde todos os ângulos”.[4]
Repetição e leis de coerência interna
Perguntado sobre como definiria os traços fundamentais de seu estilo, Miralles afirma que o que entende por estilo não é a reiteração de gestos formais, “senão que é algo que provém de uma forma de operar. Os gestos que determinam minha obra nascem de uma série de interesses específicos, independentemente do resultado espacial que adquirem. É uma espécie de repetição sistemática de certos atos, que dão coerência às coisas”. Ele e seus colaboradores repetiam numerosas vezes um mesmo desenho, “uma repetição dirigida a encontrar a estrutura precisa das condições físicas do lugar,...”. E agrega: “O trabalho da repetição é muito importante porque cada novo desenho efetua uma operação de esquecimento, e as leis que se vão gerando são de coerência interna”. Ao repetir reiteradamente um desenho, este vai se liberando da fidelidade ao lugar e ao programa dos que em princípio é um registro –seus condicionantes externos– e, consequentemente, vai definindo cada vez mais sua própria coerência interna. O mesmo Miralles põe um exemplo desse trabalho de repetição como meio para gerar uma obra artística, as dezoito etapas do retrato de James Lord por Giacometti.[5]
Deslocamentos e translações
Essas repetições geram deslocamentos. Miralles afirma: “Não entender jamais os projetos como peças terminadas. Por isso me interessam cada vez mais os deslocamentos como técnica. No fundo é uma técnica para romper com a mímesis como base fundamental de operação da arquitetura clássica”, e põe o exemplo dos desenhos de García Lorca: “Dedos que são peixes; que são folhas, que são lágrimas, que são nuvens, que são chuva... Transparência de transformações que acompanham o pensamento. Modificar as coisas para servi-las num prato...” (Sede do Círculo de Leitores) ou “é uma silhueta que... devido ao jogo de transparências começa a jogar com os perfis naturais das montanhas, e com a água do rio... Peixes ou pássaros” (Pavilhão de Meditação em Unazuki). Mediante esses ‘deslocamentos’ geram-se formas que aludem a múltiplos referentes, formas carregadas de significados diversos. Os deslocamentos semânticos, as formas polissêmicas têm uma importante presença na arquitetura de Miralles. Por outra parte, o arquiteto fala também da translação entre distintos projetos, não já dos significados, senão das próprias formas: “translação de informação desde uns projetos a outros,... os projetos nunca se terminam, senão que entram em fases sucessivas... quiçá se reencarnem em outros projetos que fazemos...”; “...ir levando as coisas de um lugar a outro, e isso curiosamente faz com que exista mais continuidade em meu trabalho. Nesse sentido, o despacho está baseado na continuidade, e creio que aí é onde está a investigação e não curiosamente em fazer coisas novas cada vez”.[6]
Trabalhar desde as plantas, não desde as seções
À diferença de outras arquiteturas baseadas em uma concepção espacial, a de Miralles é gerada em princípio como trabalho em planta e por superposição de plantas: “Eu creio que uma das coisas que mais caracterizam minha forma de trabalhar é que nunca tenho uma ideia a priori do espaço que estou intentando construir; eu sempre trabalho desde as plantas, nunca desde as seções ou desde configurações tridimensionais. Desde aqueles primeiros registros, vou traçando plantas em distintos níveis, que são as que ao final virão a construir automaticamente as seções. A forma tridimensional produz-se só ao final do processo, nunca antes da produção dessas seções horizontais”. O arquiteto contrapõe esse modo de trabalhar com o que caracterizava a arquitetura clássica: “Esse modo de trabalhar é mais abstrato, mais conceitual que o de trabalhar em seção: uma seção tem um caráter arcaico, de perfilado das coisas, como se ainda estivéssemos trabalhando com as ordens clássicas, a base, o capitel...”. Ademais, considera o plano como algo que proporciona a informação necessária para determinar a forma, não como uma representação: “...não são planos representativos, senão documentos informativos”. Essa afirmação pode ser entendida de novo como uma vontade implícita de se demarcar a mímesis clássica.[7]
O espaço como labirinto
Em vários escritos e entrevistas, Miralles se refere ao caráter labiríntico dos espaços de seus edifícios. Assim: “(No Cemitério de Igualada), escadas, pedras, esquinas ao longo do caminho lhe dão o caráter de um labirinto”. E: “Estou muito pouco habituado a trabalhar com arquiteturas de contêiner, me interessam muito pouco. Por exemplo, no projeto do Parlamento Escocês é muito importante onde estão as coisas, que o público esteja justo abaixo da sala de debates, que para passar de um lugar a outro cruzem por certas salas, situações que lhe dão um caráter labiríntico. Encontras que em vez de espaço como fluidez trabalha com espaço como labirinto”. Num projeto urbano como o do Novo Centro no Porto de Bremerhaven, Miralles fala de “encontrar a ordem labiríntica do velho porto” e de que o projeto se apoia “sobre a característica topográfica labiríntica do lugar”. Também se refere a uma forma labiríntica ao explicar o projeto de Ampliação do Cemitério de San Michele de Isola, em Veneza. [8]
O projeto como série de variantes
Miralles fala de um modo de trabalhar “que necessita da presença simultânea do máximo número de dados para se definir... e dessa nuvem ao redor das coisas que permite situá-las”. Nesse sentido, não entende o projeto como resultado de um contexto e de uns condicionantes determinados e fixos, senão de uma série de situações cambiantes ao longo do tempo: “É um tema que encontramos sempre em nosso trabalho: o de iniciar um projeto, não a partir de um problema concreto, senão através de uma série de variantes, descobrir o passado como uma série de variantes... Chemnitz, Leipzig, (Palácio de Esportes)...”. O projeto trata de absorver a complexidade de uma situação e de avançar mediante uma sucessão de variantes: “Cada projeto sempre se cruza com uma série de condições concretas, o específico de cada situação. No entanto, projetar é um trabalho contínuo. Nos projetos, essas condições concretas se transformam em constrições... Sempre temos apresentado nossos trabalhos, não como a única e melhor solução, senão como uma das muitas variantes que, no entanto, buscam uma complexidade parecida ao real. Buscam e aceitam as constrições existentes, mas não uma ou duas, senão cem, todas, diria eu”. E: “Quando a arquitetura está construída, o uso que lhe dão os cidadãos supõe, muitas vezes, novas variações, e essas variações seguem sendo uma viagem que mantém viva a arquitetura”.[9]
INTERAÇÃO COM O LUGAR
O lugar é para Miralles um fator fundamental nessa busca de uma complexidade acorde com o real. Por isso defende o uso de estratégias encaminhadas a sacar à luz as qualidades que permanecem latentes no lugar. E, por isso, o desenho pormenorizado e insistente dos traços do lugar é uma atividade primordial no trabalho projetual do arquiteto.
Registro gráfico dos dados do lugar
Como já assinalou Alejandro Zaera em uma conversa mantida com Enric Miralles em 1995, a análise e registro gráfico dos dados ou condições do lugar estão na origem do processo de trabalho de Miralles, que afirma: “Eu creio que se trabalha desde o registro, mais que impondo, já está comprovando desde o princípio”. Esse trabalho de registro gráfico supõe identificar inscrições, marcas ou traços, independentemente de que tenham um significado explícito ou não: “Às vezes as marcas tem um significado, alguém as sabe interpretar, as entende. Mas muito amiúde tu tens que parar como desconhecido, aceitar a marca porque está aí, porque a encontraste, como sucede quando encontras algumas inscrições numa rocha. Interessa-me esse trabalho de ir aceitando os resultados que vão aparecendo”.[10]
Lugar, desenho, edifício
Mas o traço sobre o papel não é um mero registro passivo dos dados de um lugar, já que: “O traço adquire a qualidade de uma ação que é capaz de desenvolver sua presença”. E: “O traço segue uns veios que ele mesmo inventa... Esse primeiro traço, que ainda não é nenhuma incisão, é equivalente a todo o projeto. Essa ligeira marca nos conta como se é capaz de voltar sobre si mesmo, ao mesmo tempo que seguir as diretrizes de um lugar.” Em efeito, o lugar não esgota a vida de um projeto: “Um lugar te dá muitíssimos dados sobre um projeto, mas conforme vai avançando em teu trabalho há outras coisas que o vão definindo. Os projetos tem uma qualidade: tendem a se independizar e a não se esgotar num lugar concreto...” Daí que os desenhos de Miralles sejam tão importantes, porque ao mesmo tempo em que registram esses dados do lugar vão desenvolvendo uma série de regras próprias que lhes conferem autonomia, tanto com respeito a esse lugar como com respeito aos edifícios que surgem deles: “Têm certa independência, um conjunto de regras. Os edifícios são então interpretações”.[11]
A condição periférica: lugar e tempo
Numa conversa, Miralles manifestava: “Até agora os temas nos que tenho trabalhado têm sido, também por decisão minha, muito coerentes; quase sempre em lugares periféricos onde o assentamento urbano é algo que é preciso propor...”. Esse fato de trabalhar na periferia permite ao arquiteto refletir sobre a natureza desses lugares e sobre o modo de atuar nos mesmos, o que implica uma eleição projetual, pois “o fato de estar trabalhando na periferia te permite decidir de que lado da linha te põe, se refazes a cidade ou se estás mais interessado em dar forma a esse limite de um modo mais abstrato”, uma questão fundamental na arquitetura contemporânea, como sucede na obra de Rem Koolhaas/OMA, entre outros arquitetos. O enfoque dado à questão da periferia converte-se nesses arquitetos –e de um modo próprio em Miralles– em uma filosofia de projeto, que é trasladável a atuações no interior da cidade, e inclusive no centro histórico. Enric Miralles o expressava de uma maneira muito lúcida na mesma conversa: “Quando começas a trabalhar num centro histórico sentes que não é o lugar que é periférico, mas o tempo”.[12]
Superposição de momentos e o lugar como ruína
Para trabalhar “não só com a realidade física do momento, senão com a realidade física de tudo o que também tem estado ali, que foi construindo o lugar... necessitas ter uma espécie de documento onde esteja condensado o tempo nesse lugar”. Nesse sentido, o lugar é contemplado não só em sua situação atual, senão também como acumulação de estados cambiantes ao longo do tempo, que o projetista revelará como o faz o arqueólogo ao escavar um assentamento, ainda que não com a intenção de reconstruir o passado senão com a de dar forma ao presente. Miralles refere-se à “capacidade de produzir documentos que façam explícita a superposição dos distintos momentos de um lugar, aproveitando as ruínas deste” (Parque em Mollet del Vallés) ou imaginando o edifício no que se vai intervir como uma ruína: “Tantas vezes representei a destruição de um edifício para encontrar qual era sua forma, ou para fazer aparecer qual havia sido seu processo de formação, seu fazer-se. E ocorria que em qualquer dos estados de deformação e ruína, a construção conservava suas melhores qualidades... Daí nasce o interesse pelas fundações, pelas impressões que os edifícios deixam no tempo, por uma noção da forma na que o recordo é parte principal” (Palácio de Esportes de Huesca). Essa ‘escavação’ deve ser feita em ocasiões até chegar aos estratos mais profundos, às impressões ou marcas que possam ser rastreadas no lugar: “Como se para trabalhar nesses lugares, onde a construção da cidade só chegou através da brutalidade de uma normativa instrumental, fosse preciso ir muito atrás, ali onde os projetos não são mais que marcas sobre um lugar” (Igreja e centro eclesiástico em Roma).[13]
A necessidade da destruição
Miralles afirma: “O trabalho nos espaços públicos” me permitiram “ver como na convivência entre arquitetura, projeto e sociedade, a necessidade de destruição é fundamental”. E: “A arquitetura tem tempo, mas tempo relativo, flutuante... Não se trata de entender o tempo como duração. A necessidade de destruição que pesa sobre algumas obras construídas forma parte dessa relação com o tempo. Há espaços públicos, zonas verdes que para construir uma cidade, por exemplo, deixaram de existir, se transformaram. A destruição é uma aceleração do tempo, e o construir, em realidade, também é. A solução para se relacionar com o tempo não é fazer coisas indestrutíveis”.[14]
Um tratamento igualitário
Ao contar com essa superposição de momentos “o truque sempre é o mesmo: tentar que tenha a mesma importância o traço de um monastério e o traço de um momento em que tudo estivesse destruído, ou o de um caminho que passasse pelo meio dali, como se todas essas coisas pudessem ter a mesma importância”. Trata-se de “uma técnica muito elementar que eu gosto muito, que é a de tratar tudo igual: considerar da mesma maneira a colocação de uma árvore e a de um programa específico, ou a de uma construção...”. Assim, “(no Cemitério de Igualada) cada ponto ao longo do caminho tem seu próprio significado, todos têm a mesma importância, não há hierarquia”. Miralles utiliza em outra ocasião um símile muito claro para explicar esse tratamento igualitário de tudo o que subjaz num lugar, ao dizer que é “como se buscando nos bolsos de um velho abrigo fossem se depositando as coisas encontradas sobre uma superfície limpa”. Como resultado dessa acumulação de dados e ações –tratados de um modo igualitário– nos planos de Enric Miralles, estes aparecem com um aspecto de uniformidade característico.[15]
Redefinição do lugar
Assim como as obras de Land Art não são uma mera representação da paisagem em que se inserem, senão que levam a cabo uma redefinição do mesmo, as obras de Miralles atuam igualmente redefinindo seu lugar de implantação: redefinir suas formas, redefinir sua topografia, redefinir suas dimensões,... e, em geral, redefinir as condições ou qualidades de um lugar. Assim: “A tarefa mais importante desse projeto é a de redefinir as condições do lugar antes de decidir construir... Pus-me a trabalhar tentando pensar num edifício que implicaria uma paisagem que não existia ali... uma paisagem ideal...” (Parque em Mollet del Vallés). Por outra parte, a condição periférica em relação ao tempo e a superposição de estratos históricos só identificáveis de maneira aproximada potencializam o projeto como redefinição do lugar: “O tempo converte-se em periférico quando começas a trabalhar com edifícios de outro século: são os limites do atual. Aqui o que sucede é que os estratos de tempo são os que tu não podes identificar com precisão, e é preciso voltar a redefini-los”.[16]
Construir a topografia, construir paisagens
Construir ou reconstruir a topografia é uma operação fundamental do projeto, algo imprescindível que antecede à construção propriamente dita. Essa construção da topografia é necessária para fazer possível a edificação: “Aquilo que às vezes fizemos com a topografia, ou com outras coisas, preparar as condições necessárias para que algo possa mais ou menos funcionar”. Porém o próprio edifício pode se converter por si mesmo numa topografia, numa paisagem: “Esta é talvez a parte mais interessante, quando o construído se converte verdadeiramente em topografia, é o momento em que o edifício se converte em paisagem,...”. Por exemplo, em um caso concreto entre os muitos em que Miralles fala de construir ou reconstruir uma topografia: “Queremos mesclar o novo estádio (quase uma topografia) com as ruas que o rodeiam... Esse sistema de coberta livre que conecta o estádio com a cidade... é uma espécie de topografia (que junto com a terraplenagem constitui a paisagem de acesso)” (Palácio de Esportes de Chemnitz). E um projeto de sua primeira etapa, a Escola Lar de Morella, só pode ser entendida como resposta à paisagem topográfica: “Seguir o ritmo da montanha, fragmentada por mil muretas, todos elas repletas de luzes e sombras. É um projeto feito ao ar livre, no lugar,... O projeto são esses espaços intermediários frente à paisagem e protegidos pela edificação...”.[17]
PROTAGONISMO DA LINHA
Talvez o selo mais distintivo do trabalho projetual de Miralles seja o protagonismo que adquire a linha como elemento ativo na geração do projeto. Isto o situa numa brilhante tradição própria das vanguardas de arte e da arquitetura modernas desde finais do século XIX e ao longo do XX.
Fazer visíveis as linhas do lugar
Enric Miralles situa-se com características próprias nessa tradição de mestres da linha dinâmica como geradora da forma. Com respeito ao lugar, há primeiro que descobrir as linhas que ele contém e fazê-las visíveis. Em certa ocasião afirmava: “Em cada lugar há linhas quase invisíveis, às vezes longuíssimas, que tu podes encontrar, às que se liga o projeto tratando de ocupar o espaço deixado livre”. E: “Esse traço que corresponde ao movimento que cremos descobrir no lugar. Aquele signo elementar que acompanha o ir de um lugar a outro... Fragmentos desses movimentos descrevem uma geometria ligada ao real: são envolventes de contornos reais”.[18]
As linhas de percurso como conformadoras do projeto
O projeto consiste em grande medida em desenhar um caminho ao observador: “Em Parets (Cobertas na praça maior de Parets del Vallés) umas cobertas acompanham de um modo aproximado o ato de caminhar... Desenham um caminho ao observador”. Mas os elementos lineares de percurso são fundamentalmente elementos formadores do projeto: “Encontrar no interior de um traço... Encontrar em sua pulsação os detalhes precisos de uma ideia. Percorrê-lo como um caminho... E se forma aquela geometria mais elementar, aquela que segue aos impulsos de alguém. Encontrar em seu interior aquilo que chamamos projeto... (de modo que) o mecanismo de construção é idêntico a seu desenho sobre papel...”. E: “Nesse sentido (as Cobertas de Parets del Vallés), como as rampas de Hostalets (Centro Social de Hostalets), não nos indicam um caminho que tenhamos que percorrer, senão que são quem dão forma ao projeto”.[19]
Uma linha não narrativa
A linha não tem para Miralles esse caráter narrativo que está habitualmente vinculado aos elementos de percurso numa paisagem, nem tampouco é entendida como uma trajetória única e inevitável: “Desenvolver o projeto tem sido afastar-nos dos aspectos narrativos que acompanham os caminhos nos jardins... Tem sido trabalhar no interior dos traços prévios: pararmos no movimento. Pararmos para pensar em outra coisa, multiplicar as bifurcações, os espaços intermediários, os lugares de escape...” (Cemitério de Igualada). E: “Usar esse lugar é fazê-lo desaparecer: como as folhas sobre o pavimento de madeira, ou a chuva, que arrasta as terras para o fundo da fenda...” (Cemitério de Igualada). [20]
Pentear fluxos
Nos edifícios que têm que dar forma a um fluxo de pessoas, Miralles entende o ato de agrupar as pessoas como algo similar ao ato de pentear-se: “Compreender a congregação de pessoas como uma criação da forma que tem muitas coincidências formais como a maneira em que a cabeça fica disposta em torno à cara... a liberdade do cabelo em movimento, até que adota sua forma final –muito formal–” (Palácio de Esportes de Chemnitz). E: “... esses desenhinhos com que começa Chemnitz, onde se faz uma analogia entre o movimento de pessoas e o penteado... E é que realmente é o mesmo que se pentear: a metade para cá, a metade para lá, e realmente assim tu organizas as pessoas... quando há um número tão grande de pessoas, as separas e as juntas como farias com qualquer fluido; as pessoas são o material de trabalho”. “Em Alicante, o público repete um mesmo movimento... Uma série de movimentos detidos ao redor de uma atividade esportiva” (Centro de Ginástica Rítmica e Esportiva em Alicante). “O mesmo público foi quem ajudou a dar forma ao edifício. De fato, a construção proposta envolve um dos possíveis movimentos de pessoas nesse lugar, já que o fato de sua própria agrupação é o acontecimento que se celebraria...” (Auditório de Copenhague). [21]
Borrar e desenhar limites
E outra analogia facial, a das sobrancelhas, “que sustentam o vazio da cavidade cranial e são as que de um modo gráfico nos conduzem nesse espaço... São formas que definem o interior de um modo paulatino, por sucessivas aproximações, como se tratasse de cancelar e insistir. São formas que, ainda contendo um interior, falam de ecos de paredes sucessivas... se preocupam por encerrar o fantasma que foge. Como se fossem elas o que resta de alguém ao desaparecer ante nós... Definir um lugar além daqueles limites que nos rodeiam, que sempre temos ante nossos olhos e que constantemente redefinimos”. Em concreto: “... os limites da construção são os que correspondem aos Distintos Envoltórios dos Distintos Estados de Movimento. O edifício envolvia –construía– as distintas formações de público. E, por sua vez, o edifício atuava a respeito desses movimentos: não só reproduzia a forma de Reunião, mas também poria em contado essa forma com a forma da cidade” (Auditório de Copenhague). E: “O primeiro gesto com o lápis tem sido um gesto circular, quase repetição do perímetro do solar,... O projeto final que apresentamos, depois de muitas variantes, volta a repetir esse movimento... Através das árvores, os atuais limites do sol, desenhados sobre o papel mas invisíveis na realidade, desaparecerão, deixando como autênticas geometrias naturais os percursos das pessoas” (Igreja e centro eclesiástico em Roma). Esse gesto de reiterar linhas vai definindo o projeto ao desdesenhar uns limites e desenhar outros. [22]
Selecionar linhas
Em um breve mas substancioso texto, Benedetta Tagliabue escreve: “Quando Javier Marsical me chamou para me dizer que queria publicar um livro com desenhos de Enric Miralles, me surpreendeu com umas reflexões que encontrei muito acertadas. Falou-me de como se surpreendia com a beleza desses desenhos, nos quais admirava especialmente sua capacidade de selecionar umas linhas. Desenhos são sempre uma seleção de linhas...”. Mas essa seleção de linhas tem umas características particulares no trabalho de Enric Miralles. O gesto que creio identificar melhor seu modo de operar é o de escavar, extrair, fazer aflorar linhas da implantação (linhas topográficas, curvas de nível, caminhos e cursos d’água, vestígios murários de edificações do passado, linhas de energia subjacentes ao lugar, etc) e, conjunta e simultaneamente, estender, dispersar, lançar sobre essa mesma implantação as linhas do novo programa (linhas de atividade, de movimento, de fluxo, etc). Essas linhas Miralles visualiza às vezes como pedaços de galhos ou juncos, ou como maços de talos e folhas (com o que de algum modo fecha o círculo com os artistas do Art Nouveau, embora de um modo distinto). Já num texto que se incluía junto ao seu primeiro projeto publicado, a Escola La Llauna, Miralles escrevia: “Nesses planos não existe preocupação pelo representar... É um trabalho de multiplicar uma mesma intuição. Deveria aparecer em todas suas formas possíveis... Em alinhar acrobaticamente, como num jogo, todos os feixes de linhas que seguem uma direção. Manter em papel todos os aspectos do projeto em que se trabalha”. Desse acúmulo de feixes de linhas e mediante uma cuidadosa e precisa –mas também em certa medida lúdica e fortuita– ação de selecionar surgem as linhas do projeto. Isso se pode afirmar de muitos de seus projetos, independentemente do âmbito e a escala de intervenção, desde esse primeiro projeto (Escola La Llauna), que foi construído num edifício existente, até um dos últimos, o Tribunal de Justiça de Salerno, no qual se trata de “regenerar um fragmento de cidade” e no qual –como mostram uns belos esquemas em cores– o rio, o passeio e o novo edifício formam um feixe de linhas que transcorrem em paralelo, ainda que também se entrelacem e em ocasiões se cruzem com diferentes alturas. [23]
INSTRUMENTOS DE COERÊNCIA
Enric Miralles explica em alguma ocasião que seus projetos podem partir de ações muito subjetivas porque a lógica da própria arquitetura, enquanto disciplina profissional, impõe um esforço de racionalização que “nos obriga ao contato com a realidade”. Assim, alguns dos aspectos mencionados do modo de trabalhar de Miralles poderiam em princípio dar a impressão de arbitrariedade ou falta de rigor: olhar distraído, curiosiar ou distrair-se, aleatoriedade ou azar. No entanto, o arquiteto faz em várias ocasiões menção ao êxito da coerência como objetivo de seu trabalho, ao mesmo tempo em que menciona quais são os elementos de coerência: “A definição estilística (da minha obra) estaria mais nos mecanismos de trabalho, em minha obsessão pela geometria e pela estrutura e pela construção como elementos de coerência do projeto,...”[24].
Procedimentos geométricos
Miralles afirma: “A geometria é muito importante para mim, como instrumento de articulação com situações muito concretas, porque me permite esquecer, fazer as coisas menos reconhecíveis”. Em concreto, utiliza como instrumentos de coerência procedimentos geométricos básicos como é o da repetição. Em sintonia com os ensinamentos de Paul Klee, a linha é gerada em alguns dos seus mais importantes projetos pelo deslocamento –repetição– de pontos a várias escalas (Cemitério de Igualada, Arco e Flecha –competição–, etc). Também o Aulario da Universidade de Valência é gerado pela agrupação de pontos, num processo que inclui translações e reflexões e que se repete de forma quase exatamente igual a duas escalas –da carteira à classe e da classe ao conjunto–, de modo que podemos entende-lo como um exercício de auto semelhança fractal: “...cada sala deveria ser idêntica às outras, e idêntica ao espaço global ao que pertence”. O tema desse projeto é retomado na zona de classes da segunda fase do concurso para a Escola de Arquitetura de Veneza, um projeto em que uma repetição com variações cobra grande importância no nível das cobertas (claraboias). No Hospital Geriátrico de Palamós se definem faixas lineares de salas, com corredores e rampas de um lado e terraços do outro. Essas faixas dobram-se formando ‘vês’ mais ou menos abertos que logo se empilham uns sobre os outros de modo aparentemente fortuito, com o que se consegue “... estabelecer distintas paisagens horizontais superpostas”. A Escola Lar de Morella configura-se mediante uma geometria de planos que pousam no terreno, deslizam pela ladeira e se dobram sobre si mesmos para formar a coberta da parte destinada à residência. Nesses e outros projetos se põe em jogo um conjunto de elementos –pontos, linhas, planos– e uma série de ações geométrico-formais. [25]
Geometria e estrutura
Por outra parte, a repetição como instrumento de ordem, de coerência, está quase consubstancialmente vinculada em arquitetura à estrutura resistente, que tende a se organizar segundo vãos repetidos. A repetição paralela (Museu de Arte Moderna de Helsinki) ou convergente (Arco e Flecha –treinamento–) das vigas, treliças ou tesouras nas obras de Miralles proporciona um contraponto de ordem à liberdade formal da planta. O arquiteto se refere à “tarefa de tecer o material de trabalho através da geometria, identificando-a com o estrutura...”. No projeto da Biblioteca Nacional do Japão, “uma organização a modo do povoado define a biblioteca como uma série de casas e quartos”. De acordo com essa proposição, os apoios estruturais se situam nos vértices de uma malha romboidal deformada, para definir uma seriação de pavilhões na que geometria, espaço e estrutura coincidem. [26]
Dimensões e escala
Assim também, o arquiteto afirma: “O critério de coerência tento sempre encontra-lo na dimensão justa das coisas, que é o trabalho que seguramente me interessa mais” e fala de “responder à necessidade objetiva de relações dimensionais com um lugar” e da “precisão de uso que deu lugar a umas determinadas dimensões... (com as que) o lugar ficou marcado”. Já na memória daquele primeiro projeto de Escola La Llauna se dizia que a considerável dimensão em altura e em profundidade era a melhor qualidade da fábrica na qual se instala a escola. E, numa conversa publicada, assinalava: “Aquilo que é um plano, ou seja, que tem como referência a realidade construtiva e constritiva –que inclui a noção de medida, o sentido do particular, etc– já é arquitetura... e as dimensões, o traçado, o específico vão construindo a base de trabalho”. Numa ocasião anterior explicava: “(Em meus projetos) a forma não são definidas nas maquetes, são definidas muito mais no trabalho geométrico, e aí viria a relação com a escala. Eu sempre penso no tamanho real do edifício. Nunca usei conscientemente mecanismos de mudança de escala. Não me interessou, é uma limitação minha. Por exemplo, as mudanças de escala na obra de Gehry lhe dão uma enorme capacidade de existir; ao não saber que dimensão têm, existem como em outro mundo”. [27]
Densidade
É também importante para Miralles a avaliação da densidade de cada estrato ou nível do projeto: “O trabalho de superposição coerente (das plantas aos sucessivos níveis) é o que ao final dá sentido a uma obra. O registro físico necessário dos distintos níveis é também um problema de densidade do material com que trabalhas, é o momento em que começas a avaliar o material: a densidade do solo, a densidade do ar, a consciência de estar a três metros do solo ao a quinze...”. [28]
Sem pretender esgotar o mundo projetual de Enric Miralles, o exposto até aqui pode ser lido como um conjunto de coordenadas que ajudam a situar sua obra. Os modos de operar do arquiteto atuam em interação com o lugar, e aspectos como os contemplados nessa última parte contribuem a dar coerência ao projeto. O protagonismo da linha em muitos dos seus desenhos-projeto é um traço característico do seu fazer arquitetônico.
Notas
[1] A Z, p.261; A Z, p.261; AZ, p.264.
[2] A Z, p.268; Studio Talk: Interview with 15 Architects, p.644; A Z, p.270.
[3] A Z, p.264; ver A Z, p.265; A Z, p.265; A Z, p.273; ‘Frammenti’. En EMBT 1997/2007. 10 anni di architettura Miralles Tagliabue, p.11; ‘Lugar y aprendizaje. Una entrevista con Enric Miralles’. Arquitectura Viva 28, pp.28-29.
[4] A Z, p.264; Memoria, p.50; ver ‘El interior de un bolsillo’, p.112; ‘Lugar’, p.30; ‘El interior de un bolsillo’, p.112.
[5] A Z, p.267; A Z, p.267; A Z, p.268; ‘Un retrato de Giacometti’, pp.382-385.
[6] A Z, p.265; Memoria, p.194; Memoria, p.326; A Z, p.266; ‘Enric Miralles. Cronotopías’. Metalocus 03, p.15.
[7] A Z, p.269; A Z, p.269; A Z, p.270.
[8] ‘Aus welcher Zeit ist dieser Ort?’. Topos 8, p.108; ‘Enric Miralles. Cronotopias’. Metalocus 03, p.20; Memoria, p.352; ver Studio Talk: Interview with 15 Architects, p. 648.
[9] ‘Lugar y aprendizaje. Una entrevista con Enric Miralles’. Arquitectura Viva 28, p.28; T y M M, p.21; Miralles Tagliabue: arquitecturas del tiempo, p.62.
[10] A Z, p.264; A Z, p.264.
[11] ‘Relieves (Manolo Hugué)’, p.155; ‘Relieves (Manolo Hugué)’, p.154; ‘Enric Miralles. Cronotopías’; Metalocus 03, p.16; Studio Talk: Interview with 15 Architects, p.666.
[12] A Z, p.261; A Z, p.262; A Z, p.262.
[13] T y M M, p.10; T y M M, p.10; Memoria, p.226; Memoria, p.338.
[14] T y M M, p.10; Miralles Tagliabue: arquitecturas del tiempo, p.62.
[15] T y M M, p.10; A Z, p.263; ‘Aus welcher Zeit ist dieser Ort?’. Topos 8, p.108; Enric Miralles. Obras y proyectos, p.220; ver ‘Lugar y aprendizaje’. Arquitectura Viva 28, p.28. [16] Memoria, p.195; A Z, p.262.
[17] T y M M, p.19; ‘Frammenti’, p.13; Memoria, pp.108-109; Memoria, p.156.
[18] ‘Frammenti’, p.11; ‘Caminar’, p.42.
[19] ‘Caminar’, p.42; Memoria, p.44; ‘Caminar’, p.42.
[20] ‘Caminar’, p.43; Memoria, p.50.
[21] Memoria, p.109; T y M M, p.12; ‘Cejas’, p.207; Memoria, p.332.
[22] ‘Cejas’, p.206; Memoria, p.332; Memoria, p.338.
[23] Benedetta Tagliabue Miralles. ‘Un mapa de deseos’. Arquitectura dibujada. El proyecto de Miralles/Tagliabue para Diagonal Mar. Salvat Editores, 2004 (2001), p.2; ‘Lugar’, p.30; Memoria, p.285.
[24] ‘La arquitectura como sentimiento [entrevista a Enric Miralles]’. Summa+ 30, pp.90-95; A Z, p.270.
[25] A Z, p.268; Memoria, p.290; Memoria, p.316.
[26] ‘Manchas’, p.276; Memoria, p.214.
[27] A Z, p.268; ‘Manchas’, p.276; T y M M, p.11; T y M M, p.21; ‘Enric Miralles. Cronotopías’. Metalocus 03, p.20.
[28] A Z, p.269.
Referência:
Juan Antonio Cortés, “Reflexiones sobre el proyecto”, em: El Croquis n. 144, pp.20-34.
Primeira edição em português. © Tradução: Igor Fracalossi. Colaboração: Audrey Migliani.