Publicamos a seguir uma entrevista realizada por Talita Bedinelli, do jornal El País, com Raquel Rolnik, onde a arquiteta fala do novo Plano Diretor de São Paulo. A entrevista foi originalmente publicada no dia 3 de julho na página do El País. A seguir compartilhamos o texto retirado do Blog da Raquel Rolnik.
O novo Plano Diretor, aprovado pela Câmara na última segunda-feira, fará São Paulo passar por um grande período de transição que deve culminar na construção de uma cidade com prédios menos isolados e com uma maior interação entre os espaços públicos e privados. A opinião é da arquiteta Raquel Rolnik, uma das principais urbanistas do país, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e ex-relatora da ONU para o Direito à Moradia Adequada.
Para ela, uma reforma urbana é extremamente necessária no país, que tem cidades “excludentes, feitas para poucos e voltadas apenas para o mercado”.
Leia a entrevista a seguir.
Pergunta. Como vê o novo Plano Diretor?
Resposta. Ele tem basicamente duas grandes inovações. A primeira é a forma como trata o adensamento e os potenciais construtivos. Há uma estruturação em torno do transporte coletivo em massa. Antes, a distribuição desse potencial parecia milho jogado no mapa, não tinha lógica. O modelo de verticalização que predominou desde 1972, quando houve a primeira lei de zoneamento, muda para melhor. O padrão histórico de verticalização estimula a construção de apartamentos grandes e com muitas garagens. Os edifícios ficam isolados dentro do terreno, com seus próprios clubes, piscinas, espaços zen, esse monte de coisa. O resultado disso é que historicamente esse adensamento não aumentou a população onde houve a verticalização. Só aumentou o número de carros porque estimulou a construção de garagens. E desestimulou a relação entre o espaço público e o privado. Esse novo plano impede [nos eixos próximos ao transporte coletivo] a construção desses apartamentos gigantes, só permite uma garagem, incentiva o uso misto, com comércio no térreo, e o uso ativo da fachada, com menos muros nos edifícios. Haverá mais gente, menos carros e mais mistura de usos.
A segunda grande inovação é a força da política fundiária desse plano. Desde 2002 já temos as ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), mas agora elas não só foram ampliadas como foram aperfeiçoadas. Há ainda a cota de solidariedade que aumenta a possibilidade de acesso à terra para a produção de moradia social. O problema para as moradias é a questão da terra, porque para construir tem financiamento. Mas isso na negociação dentro da Câmara municipal foi extremamente enfraquecido, porque o plano inicial era que se construísse a moradia da cota no próprio terreno ou em um terreno próximo. Agora as construtoras vão poder pagar para não ter pobre no seu terreno, o que acaba boicotando o mecanismo.
P. Argumenta-se que isso encarecerá os empreendimentos imobiliários. Assim como o aumento da outorga onerosa [valor pago a mais pelas construtoras para construir prédios maiores do que o permitido pela lei]. O que você acha?
R. Isso é uma bobagem sem tamanho. A construtora oferece ao proprietário do terreno onde vai construir o empreendimento um valor calculado com base no quanto ela pode ganhar com os apartamentos que vai vender. Portanto, [descontados o valor da outorga e da cota], serão os proprietários do terreno que vão ganhar menos, não os compradores dos apartamentos. Os compradores vão pagar o preço de mercado. É um argumento falacioso.
P. O plano tem questões muito polêmicas, limita as garagens…
R. Por mim, ele teria que ter garagem zero nos eixos de transporte coletivo. Se o adensamento maior é para a área de transporte coletivo de massa, é para as pessoas usarem o transporte coletivo de massa. Mas com esse novo plano, as garagens agora contarão para o cálculo da outorga onerosa. As construtoras podem pagar mais outorga para fazer mais garagem. Hoje isso não acontece. As garagens não entram no cálculo. A gente costuma dizer que em São Paulo existe uma cidade e meia. Há meia cidade nos subsolos, formada só por garagens.
P. Sim, mas são pontos polêmicos… Como conseguir tirar o plano do papel?
R. Todo Plano Diretor é um processo. Aos poucos essas possibilidades se transformam em coisas concretas. E São Paulo já vive uma mudança de cultura urbanística. A política pública é que está tentando acompanhar. Hoje, existem mais pessoas na classe média se deslocando por bicicletas, por transporte coletivo, há um uso mais intenso dos espaços públicos. Isso está acontecendo.
P. É possível no futuro termos uma sociedade menos dependente do carro?
R. Não vamos ver isso nos próximos cinco anos, mas nos próximos dez anos. Mesmo porque os empreendimentos imobiliários que serão construídos agora já estão protocolados e serão feitos com a ordem anterior. Muito do que vai ser construído agora já está aprovado. Então, tem um tempo, anos, para que isso saia do papel. Teremos um grande período de transição. E tem muita coisa que ainda tem que ser definida na lei de zoneamento. O plano também tem pontos cegos, que precisam de muita discussão.
P. Como quais?
R. O filé mignon de estruturação da cidade, que é essa área com mais terrenos vazios e subutilizados, que é o eixo Tietê, Pinheiros, Jacu Pêssego. O destino dessa área ainda não está definido no plano. Elas estão abertas para operações urbanas a serem implantadas por meio de parcerias público-privadas, vão depender de planos urbanísticos específicos. Há um risco nisso. Esses trechos, que ficaram conhecidos como a macroárea de estruturação metropolitana, que correspondem às várzeas dos rios, às orlas ferroviárias, não têm eixo [de estruturação entorno do transporte], não têm ZEIS, nada disso. São áreas sujeitas a planos urbanísticos que vão ter que ser aprovados na Câmara, abertos à concessão urbanística, como se tentou na Nova Luz, que buscava conceder a área toda para a iniciativa imobiliária. Pensar em um plano com uma parceria público-privada tem como pressuposto a rentabilidade da operação, e isso dificilmente vai acolher usos não rentáveis ou pouco rentáveis, como habitações sociais, espaços públicos, áreas para pequenos comércios. Esse é o grande perigo. Essa é a fragilidade desse plano. Vai depender do posicionamento da sociedade civil.
P. O que levou a Nova Luz a não dar certo?
R. O projeto está travado. O que é muito negativo para a área. A região merece uma reforma urbanística urgente, mas os termos propostos eram totalmente equivocados e acabou sendo bloqueado pela cidade civil. A ideia era pegar um pedaço inteiro da cidade, o bairro da Santa Efigênia, o mais antigo de São Paulo, que ainda tem o parcelamento do solo, o desenho dos lotes, do século 18, que tem um polo de eletroeletrônicos vivo, que tem moradores, chegar para uma empresa e falar: ‘Toma, pega, com todo mundo que está dentro. Pode derrubar tudo, construir torres’. Dando ao setor privado o poder de desapropriação. A área já tem uma capacidade urbanística, então reforma as calçadas, apoia quem está lá para reformar e investir nos imóveis, expande as atividades que já estão acontecendo. É simples.
P. Há uma crítica ao Plano Diretor de que essas regiões mais centrais concentram poucas habitações populares…
R. Existem muitas ZEIS no centro. Mas todas, contempladas no último Plano Diretor, deixaram de virar [habitação popular]. É imenso o bloqueio que existe para se fazer uma política mais includente. Os bloqueios que existem para viabilizar os projetos de habitação no centro são enormes. Existe uma enorme máquina administrativa voltada para o paradigma de que o lugar do pobre é na periferia.
Além disso, temos problemas de registro dos imóveis. E o dos bombeiros. As escadas nesses imóveis antigos têm 1,5 metro e hoje a legislação diz que tem que ter três metros. Os bombeiros não aprovam as reformas. Tem toda uma legislação que dificulta. Para fazer, tem que ter uma intervenção que é quase uma gincana. Só com a pressão dos movimentos, ocupando esses locais, é que se consegue alguma coisa.
P. A pressão dos movimentos, como o MTST, também teve um papel importante na aprovação do plano…
R. Os movimentos pautaram a questão da política fundiária. Impediram que ela fosse ignorada e pressionaram para que a votação ocorresse. A coisa mais fácil de se fazer quando não se quer aprovar uma coisa é obstruir a votação, fazer uma manobra política para que não se vote. A pressão dos movimentos foi muito importante.
P. O MTST tem tido um papel político importante…
R. Sim. Mas o MTST não é o único novo movimento social do Brasil. Existem os movimentos que nasceram nos anos 70, 80, que se constituíram em federações, aumentaram seus espaços institucionais e perderam a capacidade política. Mas existem os movimentos que emergem a partir de 2005 e 2006, não só em São Paulo, não só o MTST, que têm menos presença no mundo institucional, menos relação direta com o mundo partidário. A primeira geração [dos movimentos dos anos 70, 80] tem muito diálogo com os partidos como o PT, o PCdoB, que também surgiram naquele período. Essas de hoje têm mais autonomia e estão pautando a política.
Estamos vivendo no Brasil a emergência de novos movimentos que buscam discutir o direito de ocupação da cidade. Temos, por exemplo, o Ocupe Estelita, no Recife, a luta pelo Parque Augusta, em São Paulo, o próprio Movimento Passe Livre (MPL), que é também um movimento pelo direito à cidade.
P. E qual o motivo desse surgimento?
R. É uma reação a essa cidade excludente, feita para poucos, voltada apenas para o mercado. Esses movimentos são o fruto de um novo patamar. Temos um novo país, onde os setores populares também se transformaram, exigindo o que não foi feito com essa transformação do país nos últimos anos. Apesar das mudanças, a reforma urbana não aconteceu porque os interesses que dominam a política urbana estão absolutamente envolvidos na política.
P. E como resolver isso? Com financiamento público de campanha?
R. A reforma política é um tema essencial. Mas a reforma do Estado que precisamos vai além do financiamento público. Os interesses imobiliários, de empreiteiras, estão encravados dentro do Estado, não só na representação política, dentro da estrutura do próprio Estado. Não fizemos uma reforma de Estado no Brasil no campo da política urbana. Hoje, a política urbana é muito semelhante ao Estado da época da ditadura.