Este artigo, escrito por Julio Lamas, foi originalmente publicado na página Planeta Sustentável em agosto deste ano com o título “Afinal, o que será do Minhocão?".
Se você conhece São Paulo e já teve a oportunidade de passar pelo Elevado Costa e Silva, o infame Minhocão, certamente compreende que não se trata apenas de uma obra mal planejada, produto de um urbanismo ultrapassado que não deu atenção para a escala humana do cotidiano, para quem vive de fato nos bairros e caminha nas calçadas fora de um veículo motorizado particular. É também uma cicatriz que enfeia e marginaliza a face central da cidade.
Fazendo a ligação entre a Praça Roosevelt e a Avenida Francisco Matarazzo, o elevado se estende por 3,4 quilômetros pelos quais passam 70 mil carros de segunda à sábado, das seis e meia da manhã até nove e meia da noite, segundo a CET. Desde 1990, seu funcionamento é limitado por conta do barulho. Mas este é apenas um dos problemas causados pelo Minhocão para quem vive em seu entorno. Construído em cerca de 14 meses, por 43 anos seu legado está associado com a degradação visual, a poluição e um déficit de qualidade de vida cujo custo só pode ser medido subjetivamente.
Ironicamente, o Minhocão foi dado de presente para a cidade no seu aniversário de 417 anos pelo então prefeito Paulo Maluf, em 1971, como uma solução bastante contestada para o trânsito no eixo leste-oeste. Na época, nenhum dado técnico ou pesquisa foi feito para legitimar sua utilidade, mas no caminho dos carros ficou uma história de deterioração, cerca de três mil imóveis afetados pela desvalorização e a perda de alguns ícones de um período de ouro da cidade. A Praça Marechal Deodoro, antes um projeto urbanístico belo, perdeu seu tamanho e importância por conta do Minhocão. A Avenida São João, conhecida em um tempo passado, como a “Park Avenue” de São Paulo, e a Rua Amaral Gurgel, outra joia, também nunca mais foram as mesmas.
A boa notícia é que os dias do Minhocão estão contados. O Plano Diretor Estratégico (lei nº 16.050/14), sancionado pelo prefeito Fernando Haddad no final de julho, não vislumbra a data exata do aguardado óbito, mas prevê, em seu artigo 375, a criação de uma lei específica para a sua desativação progressiva para automóveis. Contudo, resta a pergunta: o que será dele uma vez que isso acontecer? A questão foi abordada nas gestões anteriores de Luiza Erundina, Marta Suplicy, José Serra e Gilberto Kassab sem chegar a qualquer conclusão válida desde então.
O RESGATE PELO PARQUE
Muitos querem simplesmente demoli-lo, mas outros, inspirados em projetos como a High Line de Nova York e o Bloomingdale Trail and Park de Chicago, pensam em aproveitar a estrutura do Minhocão para um parque elevado. É algo inédito em São Paulo, que tem uma demanda por mais espaços de lazer, mas também é um projeto ousado. O potencial de um parque para revitalizar a região tem sido um dos debates mais polêmicos desde a aprovação do plano.
“O Plano Diretor aponta para essa direção de mudar uma prática arraigada de valorização do espaço do automóvel. E a questão do Minhocão precisa ser tratada também nessa perspectiva do bairro que foi mais afetado por essa forma de planejar, que é o caso do bairro de Santa Cecília”, conta Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e vereador relator do novo Plano Diretor. Para ele, a ideia de criar um ambiente de lazer bem planejado é atraente quando sem pensa em termos de compensação por todos o impactos negativos já gerados pela obra. “O Minhocão já está sendo ressignificado pelo seu uso quando aos domingos o espaço é aberto para ciclistas e outras atividades de lazer e cultura, como o graffiti. Além disso, a estrutura mostra potencial para assimilar eventos e festivais como o Festival do Baixo Centro e o Carnaval. São Paulo tem uma carência de espaços de lazer”, explica o arquiteto, que junto a outros seis vereadores já apresentou para votação um projeto de lei para desativar completamente a obra em quatro anos, prevendo a construção de um parque na estrutura no final do processo.
“Fazer um parque faz sentido, porque ali já temos a Praça Roosevelt com a qual o Minhocão pode se juntar. Essa integração se daria em um miolo que não está virado para nada, as laterais de prédio e áreas não ocupadas poderiam se abrir para o parque. Sem dúvida haverá uma valorização, já que as fachadas cegas dos prédios poderiam agora virar para um parque ou uma praça. Essas conexões, sem dúvida nenhuma, trariam um ganho para a qualidade de vida”, afirma Bonduki.
Como ele, o também arquiteto Márcio Kogan, representante da Associação Parque Minhocão, acredita que o parque é uma ideia mais razoável e inclusiva frente à possibilidade de um demolição demorada que poderia trazer ainda mais transtorno para quem vive próximo. “Como ligação o elevado não mostra tanta importância, a discussão é o nível de agressividade que a obra traz às pessoas que moram na região. Demolir seria ainda mais agressivo. O Minhocão já é um divisor social de águas, quando paramos para ver que de um lado temos bairros como Higienópolis e Água Branca e, caminhando mais um pouco na sua direção, do outro lado temos Campos Elíseos e Santa Cecília, onde tudo piora repentinamente. Jamais deixariam uma obra dessa no Jardim Europa”, conta Kogan.
“Um parque linear de mais de três quilômetros é uma ideia divertida e seria um marco no urbanismo paulistano. Hoje temos vários exemplos de cidades que desativaram os seus elevados. E não apenas a High Line de Nova York, mas também em Chicago, Boston, Paris e Seul. Mas não se trata apenas de plantar grama em cima do Minhocão, é preciso reurbanizar também o que está em baixo, no nível da rua. O parque é uma solução mista, melhoraria a qualidade de vida, mas também traria uma influência positiva para o centro expandido da cidade nos diversos pontos onde há cruzamentos”, defende Kogan.
O RESGATE PELA DEMOLIÇÃO
De um ponto de vista funcional para a mobilidade urbana, o professor da FAU-USP Lúcio Gomes Machado concorda que o Minhocão não apresenta serventia para a cidade, mas não acredita que um parque na estrutura seria a melhor opção para revitalizar as áreas afetadas. “Quando o Minhocão foi construído a Marginal sequer estava completa, então parecia óbvio fazer a ligação pela Francisco Matarazzo até a Radial Leste passando no meio da cidade. Hoje não faz sentido manter, pois ali não passa ônibus por cima e tem uma capacidade pequena para carros por conta da baixa velocidade”, explica ele em defesa da demolição. “A região onde o Minhocão está é diferente da região da High Line, uma linha de ferrovia desativada que tangenciava a cidade em uma zona industrial. O projeto nova-iorquino atendeu uma demanda conforme a cidade se expandia em serviços e habitação de alta renda. É uma escala diferente da que você vê em relação à Avenida São João”, conta.
Machado aponta que uma eventual demolição traria o mesmo efeito de revalorização dos imóveis. “O Minhocão não se integra plenamente com as áreas de maior interesse urbanístico como a Praça Marechal Deodoro, que poderia voltar a sua antiga grandeza. Há prédios ali de Rino Levi, Franz Heep e Samuel Roder, criadores renomados, que são marcos da arquitetura Art Déco e poderiam ser revitalizados também”, explica. “A demolição traria uma nova vida até 200 metros de cada lado prejudicado pelo Minhocão, regiões decadentes que tornariam a ter valor e mais adensamento em um local bem servido de transporte e comércio. Além disso, por ser uma estrutura pré-fabricada apenas montada ali, seria uma demolição barata, que poderia render uma reciclagem nobre de materiais para que se façam obras de mobilidade na periferia da cidade”, afirma o professor da USP.
Propostas de uma reforma urbanística do Minhocão foram aceitos pela prefeitura durante a gestão de José Serra. Em 2006, foi criado o Prêmio Prestes Maia de Urbanismo com o objetivo de colher projetos para a desativação. O projeto (foto acima) dos arquitetos Fernando Forte, Lourenço Gimenes e Rodrigo Marcondes Ferraz do escritório de arquitetura FGMF foi premiado e hoje é um dos modelos mais aceitos entre os que aprovam a demolição. O conceito criado por eles prevê a recuperação da Praça Marechal Deodoro com um aproveitamento pequeno da estrutura do elevado para serviços públicos, como biblioteca e posto de saúde, em pontos onde não haja conflitos com o tecido urbano.
“Sou cético quanto a transformar em High Line, pois não encontra empregabilidade na nossa realidade. É um caso de sucesso, mas que interfere de forma diferente na cidade. O contato da High Line com o espaço público é eventual e não contínuo como no Minhocão. Pode-se embelezar a parte de cima com o parque, mas a parte de baixo dele continua em eterna sombra, mantendo o lugar escuro e barulhento. Como solução não cria uma cidade agradável no nível térreo”, conta o arquiteto Lourenço Gimenes. “Mas apenas demolir não ensina, é preciso o manter viva a memória do que já foi tido como uma grande obra para a cidade. Em cinco ou seis pontos, onde não tenha ponto conflituoso com a cidade, pode-se manter parte da estrutura ao mesmo tempo em que se tem ventilação e iluminação. Aquilo que ficar pode dar lugar a um SESC, por exemplo, um equipamento recuperado e desejado do ponto de vista urbano”, explica ele.
No entanto, seja qual for o destino do Minhocão, a decisão cabe à população do entorno, que por quatro décadas sofreu com o elevado, aponta José Xaides, professor de Arquitetura e Urbanismo da UNESP. “Por enquanto, não há estudos ou números que validem as duas soluções ou apontem seus impactos para a população e o fluxo de transporte da cidade. E talvez uma solução mista, entre parque e demolição parcial, possa ser melhor”, afirma ele. “ Quanto ao parque, logicamente que um projeto dessa natureza vai gerar aspectos negativos e positivos, pois dentro de um ponto de vista da mobilidade ele teria que ser pensado dentro de um conjunto de soluções alternativas para o fluxo que ocorre durante a semana. A desativação dessa maneira só pode ser progressiva e fruto de participação popular”, diz.
Xaides ressalta que o Plano Diretor não aponta uma solução definitiva, mas abre espaço para um processo mais dinâmico de consulta pública. “Há várias motivações em jogo e compromissos jurídicos da gestão, mas não existe de fato uma educação urbanística dos paulistanos. Um exemplo é a reação pouco amigável à implantação das ciclovias na cidade, inclusive na região do Minhocão. A relação de causa e efeito de cada ação proposta para a prefeitura até agora é pouco conhecida em um sentido geral. A conscientização dos moradores deve ser feita para posicionar uma decisão correta e aprofundada. Não podemos corrigir uma decisão autoritária, que foi construir o Minhocão, com outra. O que essa gestão fez de vanguardista com o Plano Diretor foi aprimorar o processo democrático”, finaliza.