Há pouco mais de uma semana chegaram ao fim os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, maior evento esportivo mundial – comparado à Copa do Mundo da FIFA – e força motriz da cidade maravilhosa nos últimos seis anos e meio. Na esteira do furor causado pelo aguardado evento, teremos as Paralimpíadas, que acontecerão entre 7 e 18 de setembro, também no Rio. Mas e depois?
Não é de hoje que a palavra “legado” é associada a eventos mundiais de grande porte – notadamente as Olimpíadas e a Copa – e já vimos esse tema ser tratado à exaustão nos últimos anos, ponderando os resultados para as cidades sedes após os Jogos de Barcelona (1992), Atenas (2004), Pequim (2008) e Londres (2012). Essencialmente, a questão gira em torno de algumas perguntas fundamentais: Quem são os maiores beneficiados com o “legado” dos Jogos Olímpicos?; Os enormes investimentos públicos valeram?; Haverá alguma melhoria para a população em geral? Os equipamentos construídos poderão ser adaptados para o uso cotidiano?
Se usarmos o destino de alguns estádios construídos para a Copa do Mundo como base para responder às perguntas acima, então as previsões para o Rio não são nada favoráveis. No entanto, a relação da cidade com os Jogos Olímpicos deve ser vista a partir de um espectro muito mais íntimo e complexo do que a relação entre as cidades que sediaram a Copa e seus estádios.
À diferença dos projetos para a Copa de 2014, que concentravam a maior parte dos esforços e investimentos nos grandes estádios (que inclusive estavam sujeitos a uma rígida cartilha da FIFA, como apontam Héctor Vigliecca e Ronald Werner em entrevista para o ArchDaily Brasil), o Rio de Janeiro viu, nos últimos seis anos, pipocar projetos em diferentes pontos da cidade, da demolição da Perimetral à construção da Vila Olímpica, da criação do eixo Transcarioca à sistematização dos BRTs e implementação dos VLTs.
Em seu texto para o blog do IMS, Francesco Perrotta-Bosch diz que “tivemos um projeto olímpico bipolar”, e essa é uma maneira interessante de observar o que foi feito no Rio de Janeiro nos últimos seis anos. Em sua análise, esmiúça os diversos projetos implementados na cidade e conclui que houve duas abordagens diametralmente distintas em relação ao que lá se construiu. Nascido no Rio e habituado ao cotidiano da segunda maior metrópole brasileira, oferece um ponto de vista não apenas crítico mas citadino em relação aos projetos.
Pode-se entender que há, então, dois “legados” (para manter o uso da palavra, embora já exaurida) para o Rio de Janeiro: um é aquele que traz, efetivamente, benefícios para a cidade e para a maioria da população, outro é o legado do “desbravamento de terras” ainda não urbanizadas “mas com proprietários no cartório” – em outras palavras, especulação pura e clara.
Se, por um lado, o desmonte da Perimetral – via elevada que cortava os bairros do Caju, São Cristóvão, Santo Cristo, Gamboa e Saúde e por onde passavam diariamente cerca de quarenta mil veículos – representa simbolicamente a quebra do paradigma rodoviarista que conduz a urbanização de quase todas as cidades brasileiras desde os anos 1950 e permite a “reapropriação do solo urbano pelo pedestre” através da requalificação da Orla Conde, basta voltarmos nossos olhares para o cluster olímpico da Barra da Tijuca para compreender que o enfoque na caminhabilidade e a proposta de conceber espaços públicos para toda a população não se faz presente em todo o projeto olímpico.
Na Barra, a ênfase é posta, contrariamente à Orla Conde ou à Praça Mauá – onde foi construído o controverso Museu do Amanhã, do espanhol Santiago Calatrava –, no transporte individual motorizado. Por ocasião dos Jogos, foi tirado do papel o projeto dos corredores expressos para ônibus (BRT), todavia, sua implementação, com diversas estações em regiões ermas, deixa margem para suspeitas de que após os Jogos, os reais beneficiados dos projetos são os incorporadores e proprietários de glebas em torno dessas novas obras, que, literalmente, tiveram a função de “desbravar” a zona oeste, abrindo espaço para uma urbanização elitista, como bem anunciou Carlos Carvalho, dono da construtora Carvalho Hosken em uma embaraçosa matéria para a BBC Brasil. “Como é que você vai botar o pobre ali?”, indaga o empresário. Ainda não sabemos, Carlos, mas a história faz crer que não vai ser com projetos desse tipo.
Estaríamos mentindo se disséssemos que todos os projetos motivados pelas Olimpíadas beneficiam apenas o interesse imobiliário. Todos eles de algum modo o beneficiam, é verdade, mas obras como o eixo Transcarioca, que “atende e requalifica vários bairros do subúrbio” há décadas negligenciados pelo poder público, ou o Parque Deodoro, projetado pelo escritório Vigliecca & Associados e aberto (em função de uma oportuna invasão) para a comunidade antes mesmo do início dos Jogos Olímpicos, mostram que o “legado” é também positivo para a cidade.
Além disso, outros projetos pontuais para a realização das modalidades esportivas foram concebidos tendo em vista seu uso após as Olimpíadas, como por exemplo a Arena de Handebol, dos escritórios Lopes Santos e Ferreira Gomes Arquitetos + OA | Oficina de Arquitetos, que depois do término das Paralimpíadas será desmontada e “reassumirá nova forma, transformando-se em quatro escolas públicas”, como descrevem os arquitetos.
Outros exemplos disso são o Parque Radical e a Arena da Juventude, ambos projetos de Vigliecca & Associados e inseridos dentro do Parque Olímpico Deodoro. O primeiro será adaptado para uso recreativo e fará uso da topografia para criar espaços de lazer, já o segundo será transformado em um centro de formação e treinamento de atletas. Nestes e em outros projetos desse mesmo escritório, as arquibancadas para receber os espectadores durante o evento mundial são, em sua maioria, feitas com andaimes convencionais de tubos metálicos e serão posteriormente removidas, reduzindo o número de lugares para adaptar os equipamentos ao uso cotidiano e esporádicos eventos de maior importância.
Compreender a importância e o peso que tem para uma cidade sediar um evento dessa escala não é tarefa simples. É impossível fechar os olhos para os fantasmas de Atenas, Pequim e outras cidades sedes onde os equipamentos, que durante duas semanas foram foco de atenção de todo o mundo, acabaram negligenciados, abandonados em função da descabida escala e altos custos de manutenção. Impossível também é ignorar as irrefutáveis evidências de que alguns projetos foram feitos como foram feitos para valorizar determinadas regiões da cidade em detrimento de outras, beneficiando, assim, certos indivíduos em detrimento do coletivo.
O “legado” das Olimpíadas do Rio 2016 é, portanto, duplo (ou múltiplo, mas não único) como se poderia supor tendo em vista a complexidade e escala do evento que catalisou tamanha mudança na capital fluminense. Ainda é cedo para tirar conclusões mais precisas sobre o balanço geral da cidade antes e depois de 2016, oportunidades existem para que a balança tenda ao lado positivo, basta que as ideias para o futuro de alguns equipamentos efetivamente saiam do papel e continuem catalisando mudanças no cotidiano carioca.
O último salto foi dado, a bola parou de rolar e a pira olímpica se apagou. O que é preciso para que a força motriz que moveu o Rio de janeiro nos últimos seis anos e meio não cesse também?
Olimpíadas Rio 2016: Parque Radical / Vigliecca & Associados
Olimpíadas Rio 2016: Arena da Juventude / Vigliecca & Associados
Olimpíadas Rio 2016: Adaptação do Centro Nacional de Tiro Esportivo / Vigliecca & Associados
Olimpíadas Rio 2016: Centro Olímpico de Hóquei sobre Grama / Vigliecca & Associados