Por exemplo:
A gravidade é um fato.
Que a água não possa evitar a gravidade é outro fato.
Da mesma maneira que a força da gravidade faz com que a água sempre encontre a maneira de chegar ao solo, acusando no seu percurso as fissuras da construção, o descompasso dos elementos construtivos, assim também a força da realidade sempre termina acusando o descompasso entre o projeto (o que se imaginou que deveria ocorrer) e a vida (o que de fato ocorre).
Podemos ter esperança somente naquilo que não tem remédio.
—Giorgio Agamben.
Forma de vida e forma devida
No antigo aeroporto de Santiago, havia um lugar onde até princípios da década de noventa se juntava muita gente. Tratava-se do grande terraço do segundo andar, onde uma grande quantidade de pessoas se despedia e recebia a alguns passageiros que embarcavam e desembarcavam dos aviões por meio de escadas manuais e que caminhavam diretamente pelo piso até e desde as salas de embarque. Este terraço permitia que despedidas e boas-vindas fossem estendidas até o último momento. Isso até que, certamente por razões de normativa internacional, o terraço foi fechado.
No novo aeroporto de Santiago, dois lugares congregam uma grande quantidade de gente. Um é a escada que une o segundo ao terceiro andar atravessando um vazio circular e que se projeta sobre a saída da Polícia Internacional e sobre as esteiras de entrega de bagagem; o outro é a curva quase em ângulo reto da rua que sobe ao nível das saídas internacionais e desde onde se pode ver a passagem dos aviões ao pátio de aterrisagem.
No vazio que atravessa a escada, as pessoas de alguma maneira descobriram um lugar onde, um pouco antes daquilo que o edifício e os arquitetos tinham calculado, se pode acenar, gritar, pendurar faixas improvisadas e dar as boas-vindas às pessoas que chegam. Na esquina da rua que sobe, as pessoas descobriram um lugar onde, um pouco depois daquilo que o edifício e os arquitetos tinham calculado, se pode pelo menos ter a esperança que, desde a janelinha do avião, quem parte possa vê-los se despedir.
A escada e a rua são ao aeroporto novo, o que o terraço era ao aeroporto antigo.
Agora, a escada que atravessa esse vazio circular, ainda que lugar de boas-vindas, é um lugar incômodo; incômodo para os que chegam, porque estão num lugar de passagem, na zona de entrega de bagagem, quase sem espaço para passar e sem perspectiva para olhar para cima; incômodo para os que estão acima, que se penduram pelas laterais da escada, se debruçando de qualquer maneira sobre os que chegam. Ainda assim é um lugar que reúne muita gente.
Coisa igual se verifica na rua externa. Ela é uma obra feita pelos engenheiros e que nem sequer forma parte do projeto de arquitetura e que apesar de estar fora do edifício, se poderia dizer que é um lugar central. Esses lugares acorrem apesar da precariedade e da incomodidade. Nisso se revela tanto a força da realidade como o descompasso entre realidade e projeto.
E o que acusam esses lugares não calculados?
Dado que o aeroporto sim contempla lugares tanto para a despedida como para as boas-vindas, o que especificamente acusa esse descompasso, é a falta de lugar para o que poderíamos chamar o último momento. O que acorre na escada e na rua não é somente a despedida e as boas-vindas, mas a extensão delas até o primeiro e último momento.
A escada e a rua são ao aeroporto novo, o que o grande terraço era ao aeroporto antigo, como lugares que acolhem a prolongação do aceno.
Mais além das razões de normativa internacional que hajam levado a fechar o terraço do aeroporto antigo ou a não considerar essa situação no aeroporto novo, é um fato que dado que o Chile ainda é um lugar onde viajar é um evento, há uma vontade de antecipar as boas-vindas e estender a despedida o máximo possível.
Poderia ser dito, então, que o programa, ou seja, a situação estruturante de um aeroporto no Chile, ou pelo menos do aeroporto de Santiago, é a prolongação do aceno. E desde o momento que essa situação é verificável, desde o momento que é um fato, essa extensão do aceno é um fato arquitetônico.
Provavelmente em outros aeroportos, a situação estruturante seja outra. Se estivéssemos na metade de um continente extenso onde as viagens são frequentes, não seria necessário que os lugares de espera e de despedida fossem importantes; o que seria o núcleo de projetação nesses casos, seria talvez a eficiência ou a segurança. Aqui no Chile, o que haveria importado cuidar, proteger e constituir como a situação estruturante do projeto, haveria sido a prolongação do aceno.
O mundo não se fez para que pensemos nele (pensar é estar doente dos olhos), mas para que o olhemos e concordemos.
—Alberto Caeiro, El guardador de rebaños.
A contradição da realidade
Da mesma maneira que uma boa escada condiz naturalmente com o ritmo dos nossos passos, sem contradizer nem sua regularidade, nem seu alcance, nem seu avanço, um projeto deveria tender a condizer com a realidade, ou pelo menos a não contradizê-la. Primeiro porque a realidade é forte, mas sobretudo porque a realidade é o horizonte de um projeto de arquitetura; seu sentido é articulá-la.
A contradição da realidade (aquela involuntária se entende) tem sua origem a maior parte das vezes numa falta de inteligência, no sentido (etimológico) de não haver sabido ler entre os dados. Inteligir significa, para o arquiteto, fazer uma leitura ao mesmo tempo exaustiva (não se deixando convencer) e essencial (distinguindo o importante do acessório) da situação que deveria estruturar o projeto. Para não contradizer a realidade, o arquiteto deveria se ater aos fatos arquitetônicos que a partir dela é possível formular.
Algumas vezes a contradição deixa rastros, leves, meros vestígios se quiserem; como a grama cortada segundo uma obstinada linha reta que contradiz insistentemente a serpenteante calçada tropical de Burle-Marx num parque do Rio de Janeiro. Mas, muitas vezes, a dificuldade de ler acertadamente a realidade, o aeroporto incluído, radica em que uma certa ausência oculta a relação entre forma e vida. Como a corrida de obstáculos descrita por Godofredo Iommi: está a pista, estão as barreiras, mas o ritmo, quase o baile com que o velocista salta as barreiras, dura só o que dura a corrida e logo desaparece. Esse mesmo silêncio oculta os traços constituintes da situação quando a relação entre forma e vida se dá naturalmente, fluidamente, sem fissuras.
E, no entanto, é a esse mesmo silêncio, a essa mesma fluidez que oculta tanto as formas como a vida, àquilo que uma obra deveria aspirar. Uma obra deveria ser silenciosa nesse sentido de tender a condizer entre o que ela permite e o que é preciso satisfazer, sem fissuras. Formular o problema do projeto como um fato de arquitetura, nos aproxima ao silêncio dos acordos tácitos, neste caso entre forma e vida.
Poderia ser dito, falando de paradoxos, que uma boa obra se reconhece por sua capacidade de desaparecer. Disso já sabia algo Le Corbusier, quando desde Pisa, ao término de sua viagem ao oriente, escrevia ao seu amigo-mestre: L’Eplattenier, contrata amanhã mesmo um bom pedreiro. Faremos arte!... Que estupidez. Já não é necessário fazer arte, mas somente entrar tangencialmente no corpo da nossa época e se dissolver nele ao ponto de desaparecer. E quando desapareçamos, o bosque se haverá convertido em algo grande. De nós então ficarão coliseus, termas, acrópoles e mesquitas[1].
A intensificação da realidade
Agora, ainda quando Le Corbusier fala de desaparecer, fala também de deixar algo grande. E para alcançar tal grandeza não só não haveria que contradizer a realidade; o projeto do novo aeroporto não poderia haver se contentado em haver visto esses lugares não calculados. Ao que deveria haver aspirado, ao que haveria que aspirar, é a que a realidade entre em ressonância numa obra de arquitetura, amplificando-se, intensificando-se.
O sentido das coisas está fora delas.
—Ludwig Wittgenstein.
Atender aos fatos da arquitetura é identificar a especificidade dessa intensificação própria da arquitetura; essa intensificação, apesar de estar centrada sobre o objeto arquitetônico em todo sua condição física, opera de fato sobre essa porção de realidade que ao mesmo tempo suporta e contem (a vida). Desse modo, a atenção sobre a natureza construtiva do objeto arquitetônico não se consume nela mesma e não constitui primordialmente um objeto de contemplação. Essa oscilação da atenção entre continente e conteúdo, (continente: o objeto arquitetônico; o conteúdo: a vida), entre o papel que desempenha e o papel que mostra, constitui uma das vertentes de discussão mais constantes da arquitetura.
Discutindo a noção zeviana de espaço, Borchers considera fundamental a realidade física do corpo arquitetônico; no entanto, propôs que a real e específica matéria da arquitetura estava em atos humanos formalizados por ela. Que os atos possam constituir matéria de arte é o novo que eu proponho[2], dirá Borchers.
Seguindo as ideias de Nietzsche, Borchers concebia a arquitetura como uma luta entre o apolíneo (o escultórico, o visível, o figurativo, o plástico) e o dionisíaco (o musical, o não figurativo, o impulsivo); uma arte dirigida não tanto aos sentidos, senão mais bem à vontade, pensada à maneira de Schopenhauer.
A obra de arquitetura é um artefato não uma obra de arte, e em obras de arquitetura um nada separa o artefato da obra de arte, e esse nada é incomensurável[3].
Se algo é descrito por um plano de arquitetura, é a natureza das relações humanas.
—Robin Evans.
Nesse mesmo sentido de obra de arquitetura como artefato capaz de intensificar os atos, se poderia entender o projeto de Alberto Cruz para a Capela de Pajaritos, o qual partindo da pergunta pela forma apropriada de oração, se inspira num série de experiências concebidas como atos que são poeticamente transferidos ao projeto. É precisamente essa transferência que origina os fatos de arquitetura; a brancura de uma mesa que destaca a forma e as cores de pratos e elementos; a penumbra de uma sala durante uma missa rememorativa; ou o particular ritmo dos gestos litúrgicos se constituem nos motivos reunidos pelo projeto.
Se a vida é uma continuidade de situações elementais; se uma situação é uma continuidade de atos; se a arquitetura intensifica os atos e articula situações; se uma situação é o que estrutura o programa arquitetônico; e se um programa é o sentido de um projeto, então se poderia dizer que o programa, mais que uma lista de recintos, é uma lista de atos ou a construção de uma situação elemental.
A superação da realidade
Porém, embora opostos, tanto a contradição quanto a intensificação da realidade são termos de uma mesma polaridade, estão sobre uma mesma linha, ou pelo menos, num mesmo plano. A arquitetura não deveria permanecer no mesmo plano da realidade; concordar com o mundo não significa se dissolver na naturalidade da vida nem dos seus usos. A arquitetura não é mero receptáculo de uma situação; nem sequer mera expressão dela, por magnífica que ela seja.
É verdade que o ritmo de pisos e espelhos de uma escada nasce do ritmo de nossos passos e não de uma lei interna. No entanto, uma escada é também a proposição de um ritmo. O ritmo que propõe a escada da biblioteca da Escola de Arquitetura da Universidade Católica do Chile nos obriga a caminhar muito lentamente para atender ao ritmo dos degraus propostos. Se não nos adequamos a essa lentidão proposta, a escada é incômoda. Essa adequação da vida ao objeto não é outra coisa que a adequação que a situação do estudo requer: a construção de um âmbito de silêncio. Nesse sentido, a arquitetura, se bem deve condizer com a vida, não a imita; a modifica.
Tampouco é a arquitetura uma tradução automática de uns usos a uma forma. Se bem que a arquitetura recolhe uma realidade existente (não inventa a vida que há de acolher), uma obra sempre produz algo que não estava lá antes que ela aparecesse. A situação que a arquitetura articula não é totalmente pré-existente. A arquitetura deveria interpretar a realidade, no sentido que propõe Gadamer, de se ater a ela por uma parte e simultaneamente ver nela, extrair dela, cada vez, algo novo. Se procedêssemos por analogia e pensássemos na realidade como uma partitura musical, teríamos por uma parte que a partitura é o que é e, nesse sentido, haveria que se ater a ela. No entanto, interpretá-la é também revelar, uma e outra vez, uma dimensão ao mesmo tempo subjacente e inexistente. Interpretar é ater-se ao latente. A arquitetura para satisfazer o encargo que a origina deve interpretar a vida mesma, concordando com ela, intensificando-a e buscando eventualmente fazer aparecer dimensões ainda não formuladas dela.
Banheira: lugar para o suicídio
Lavatório: desculpa para olhar-se ao espelho
Bidê: cavalo pequeno
Número dedicado ao banheiro de revista.
Por exemplo, a tumba para a família Brion projetada pelo arquiteto Carlo Scarpa está mais alta que o resto do cemitério. Para salvar esse desnível, o arquiteto propôs duas escadas: a necessidade de projetá-las existia e o ritmo de nossos passos que define pisos e espelhos também preexistia.
Uma das escadas, a que permite aceder ao conjunto da tumba, tem quatro enormes plataformas, levemente distintas, as quais, apesar de sua irregularidade, nos faz dar naturalmente dois passos em cada uma delas[4]; quatro alturas, oito passos. O que há é a proposição de ritmo acentuado, que é ao mesmo tempo uma cadência de ajuste que permite entrar alinhado a cada novo degrau e um passo alterado para transitar desde o mundo, por assim dizer, corrente, ao mundo do cemitério.
A outra escada, que une o plano da capela com o plano superior da tumba Brion, também tem quatro plataformas, também de concreto; elas estão contidas dentro de um cubo de ar também de concreto, o qual atua como uma espécie de caixa de ressonância para esses degraus, que, por estarem em balanço, quando alguém os pisa, soam. Seria possível falar de uma escada afinada: à medida que se sobe, igual que alguns instrumentos de percussão (um xilofono, por exemplo), muda o tom dos nossos passos (que se fazem mais agudos à medida que nos aproximamos da tumba). Com isso, o som revela, por um lado nosso próprio peso, pois se deve a ele a capacidade de haver executado a escada; por outra parte, tal som nos faz presente o ato mesmo de caminhar; há que passar por ela para que se revele o fato de está-la passando. Passo e peso são as duas dimensões que marcam o trânsito do mundo da cidade ao do cemitério, ambas contidas no percurso, ambas inexistentes antes da arquitetura.
Tanto a alteração do passo por acentuação do ritmo com que naturalmente caminhamos, como a amplificação do nosso peso, são essas dimensões não formuladas da realidade. Elas marcam o passo a esse outro mundo que é de alguma maneira o mesmo que se pretendia com a escada da biblioteca: que ao mundo da biblioteca, assim como ao cemitério, se entrasse num certo silêncio por meio da lentidão do passo que se dá.
Seria possível dizer que a situação genérica de percorrer tem uma situação elemental no ritmo cujo programa é a passagem a outra situação.
A arquitetura e o estado da arte
Se a concordância, a intensificação e a superação da realidade tem dado ênfase à vida mesma, isso não significa renunciar à intensificação do objeto arquitetônico em quanto tal. Frente a uma história da arquitetura que tem insistido muito no componente formal do objeto arquitetônico, propomos uma mudança de ênfase, mas em nenhum caso a suspensão dessa dimensão artística da disciplina.
O que propomos é deslocar nossa atenção desde uma arquitetura vista como fato formal (julgando a coerência da sintaxe interna do objeto), a uma fundada nos fatos arquitetônicos (verificando as situações que o objeto é capaz de articular). Do que se trata é de deixar de ver as propriedades formais da forma e começar a ver o que se poderia chamar de propriedades vitais.
Muito do que estamos fazendo, não é mais que estar mudando nosso estilo de pensamento.
—Ludwig Wittgenstein.
A arquitetura é uma arte; seus objetos têm autonomia artística. Seus problemas nascem tanto das circunstâncias como das leis internas da disciplina. Cada obra de arquitetura é de fato um comentário à arte, ao estado da arte, que busca manter o passo ganhado[5] e eventualmente modificar e superar esse estado de coisas. Há de ser absolutamente modernos, sentencia de Rimbaud.
Sempre o mesmo, mas nunca igual.
—Godofredo Iommi.
Esse cada vez com que se deve afrontar o problema da forma de um objeto arquitetônico debate radicalmente tanto sua própria configuração como a da historia da arquitetura. Porque se bem a arte não progressa, as arte se desenvolvem e mudam. O trabalho do arquiteto é saber se localizar em sua época, sentir o espírito dos tempos, dissolver a nostalgia, evitar o ridículo do anacronismo, esquivar tanto as convenções como as modas e novidades de decorador. A pergunta pela forma requer a capacidade de construção de um presente absoluto.
Essa forma não é algo distinto do fundo do problema arquitetônico. Escreve Nietzsche: Um indivíduo é arquiteto à custa de considerar isso que todos os não artistas chamam ‘forma’ como ‘conteúdo’, como a matéria mesma. Para dizer o mínimo, fundo e forma são problemáticos.
A forma e a construção;
a elegância da insistência
A intensificação da forma poderia ser entendida como uma intensificação do objeto arquitetônico em sua dimensão material. Em estrito rigor, o Parthenon não é mais (nem menos) que uma refinada e perfeccionada transposição a pedra de um sistema construtivo originalmente pensado em madeira. Toda sua densidade arquitetônica poderia em última instância ser reduzida à capacidade de haver encontrado na lentidão própria das mutações, a forma adequada à lógica da pedra.
A arquitetura pode ser vista como uma forma de intensificação da construção; uma intensificação que tem a virtude de fazer chegar a construção à esfera da arte. Se Ezra Pound afirma que poesia é a língua carregada de sentido no mais alto grau possível, a língua intensificada, e Auguste Perret propõe que a arquitetura é a arquitetura é a poesia da construção, poderíamos propor que a arquitetura é a construção carregada de sentido no mais alto grau possível, a construção intensificada.
A vitalidade da forma;
a física feita carne
Uma segunda forma de intensificação da forma do objeto tem a ver com a forma mesma. No interior do edifício da Cooperativa Elétrica de Chillán, um espaço de pé-direito duplo é ao mesmo tempo sustentado e ocupado por um conjunto de colunas configuradas a partir do encontro de dois cones. Uma rampa e uma escada permitem percorrê-lo verticalmente; o patamar da rampa dá origem a um volume independente suspendido diante da fachada sul; a escada, um prisma elegantemente fletido, ascende até o terraço superior habitado por chaminés e claraboias. Todos eles constituem volumes independentes, elementais tais como os denominará Borchers seguindo a ideia de fato atômico exposta por Wittgenstein em seu Tractatus. Os fatos arquitetônicos se identificam aqui com esses projetos elementais, que intensificam a volumetria da obra em busca desse estado de física feita carne que Borchers atribuía à arquitetura.
Os fatos da arquitetura;
a medida e o corpo
Essa física feita carne poderia ser entendida como vitalidade de um objeto meramente material. Porém, seria possível pensar também que a arquitetura é a física feita carne, no sentido de ser um objeto físico, afetado pelas leis da física, mas cujo fim está na vida que é capaz de produzir (de fazer). É a física transmutada em atos.
Diz o próprio Borchers: Tive que examinar uma certa quantidade de projetos que se propunham o seguinte: lugar para orar, lugar para pensar, lugar para estudar, lugar para descansar, etc. Acredito que isso deverá ser interpretado como propósito, como algo assim como ‘condições favoráveis’, já que algo assim não é arte, mas uma atividade, e não depende da arquitetura, senão bem, de outra coisa[6].
Se bem que uma situação não se inventa, essas condições favoráveis dependem de questões concretas e precisas. São fatos e são feitos conclusos.
Na escada que descia à biblioteca, a lentidão do passo que se queria construir para aceder em silêncio à situação do estudo, depende finalmente das medidas de pisos e espelhos. Elas dependem, por sua vez, de umas medidas, ainda que variáveis, bastante precisas e sobretudo universais, originadas pelo próprio corpo humano.
O corpo propõe à arquitetura um âmbito de verificação de suas operações.
O mesmo se poderia chegar a estabelecer para a construção do silêncio ao interior da biblioteca. A observação pertence ao arquiteto Wren Strabucchi, quem faz algum tempo defendeu que a falta de silêncio da biblioteca da Escola de Arquitetura da Universidade Católica se devia ao tamanho das mesas. O fato que tenham 1,40 m de lado, é justo o tamanho que não é nem suficientemente pequeno para que se possa cochichar (ou murmurar), nem o suficientemente grande para que a distância nos obrigue a parar, evitando com isso a inconveniência de gritar. O metro e quarenta é justo a medida que mantem o tom de voz característico da conversa; nem o segredo nem o grito: a conversa. Essa medida já não é medida física do corpo, mas medida de nossa percepção. Em qualquer caso, por ser uma questão medível, é a um só tempo algo verificável (um fato) e algo repetível (uma operação de projeto).
Os fatos da arquitetura;
os fenômenos certos.
Quando um objeto está à contraluz duas coisas ocorrem:
Ao ficar o objeto em penumbra, os traços que o constituem tendem a desaparecer, dissolvendo-se num único plano; o objeto perde profundidade. Simultaneamente, o desaparecimento dos traços fica compensada por uma forte emergência do perfil do objeto. Um objeto à contraluz é em realidade uma silhueta.
O segundo que ocorre com a contraluz é a magnificação do reflexo.
Disso sabem muito Piñón e Viaplana, quando no projeto da Casa de la Caridad em Barcelona, decidem usar a seu favor a espelhicidade própria de um vidro à contraluz; qualquer vidro que esteja colocado à sombra, ou à contraluz, se transforma num espelho; isso é um fato.
Os fenômenos propõem à arquitetura um âmbito de verificação de suas operações. O que Viaplana e Piñón fazem é fechar o quarto lado de um claustro e o edifício que colocam passa um pavimento acima da altura das outras três alas do pátio; a fachada desse pavimento que passa acima está inclinada. Ao inclinar essa parte superior para frente, esse pano de vidro deixa de receber luz, fica à contraluz, com toda essa parte da fachada se transformando num espelho, sem a obviedade e, portanto, sem a vulgaridade do vidro espelhado. É um fato de arquitetura.
Se o objeto que se situa em frente a um vidro em penumbra está iluminado, maior será a especularidade desse vidro. Como a parte passa sobre as cobertas e estas são horizontais (estão sempre iluminadas), o que esses espelhos de vidro refletem com maior força são as cobertas do claustro. Essa parte de fachada inclinada mostra o claustro desde cima, para dizer de alguma maneira, mostra uma visão angélica.
E como a entrada ao edifício se faz pelo lado oposto do claustro, através de uma rampa que desce até o subsolo, o momento de acesso é simultaneamente o mais baixo e o mais afastado do reflexo. ¿O que acontece então? Que paradoxalmente enquanto mais se desce, essa visão refletida mais nos tira do claustro, e tanto nos tira do claustro que o último que se vê antes de desaparecer sob a laje do pátio de acesso é o mar e o horizonte. À medida que se desce, por cima das cobertas do claustro, aparece refletido no pano inclinado, todo o perfil de Barcelona, y, por só um instante, o horizonte e o mar. Isso, além de um fato de arquitetura, é algo precioso.
Os fatos da arquitetura;
a medida, os fenômenos, o corpo
O homem, à diferença de alguns animais, tem os olhos voltados para frente e as orelhas para os lados. Só os olhos se pode mover à vontade, dirigi-los, à diferença de um cavalo por exemplo, que além dos olhos pode mover as orelhas. Por isso, quando estamos à intempérie, em lugares abertos e escutamos algo e queremos ver desde onde vem o som, ver e escutar simultaneamente na mesma direção, o que fazemos é encurvar a mão e construir uma espécie de superfície que reflete o som; alguém com dificuldade para escutar faz o mesmo. Não se pode (dado a forma em que estão dispostos os sentidos na cabeça) ver e escutar simultaneamente algo, porque os olhos e os ouvidos são perpendiculares entre si.
Quando estamos entre paredes paralelas e o som vem desde a frente, essas paredes substituem as mãos encurvadas.
Uma sala de concertos, no fundo é a construção da simultaneidade de ver e ouvir. É isso o que fazemos quando vamos a um concerto; não vamos só a escutar música, vamos a escutar e ver simultaneamente. Isso é o que uma sala de concertos requer: transformar a perpendicularidade de olho e ouvido num paralelismo que permite escutar e ver ao mesmo tempo.
Tal simultaneidade não se constrói exclusivamente a partir da reorientação dos nossos sentidos.
A velocidade da luz é maior que a do som. Até um vinte avos de segundo, a defasagem que há entre o estímulo visual e o estímulo auditivo se percebe como simultânea; da mesma maneira que, até um trinta e seis avos de segundo, um quadro fixo que se projete detrás de outro se perceberá como um movimento contínuo (fundamento do cinema). Ou seja, se pode receber uma imagem, e até um vinte avos de segundo depois receber o som que produz, e tudo isso entendê-lo como simultâneo; coisa que não ocorre entre os relâmpagos e os trovões por exemplo.
Uma sala de concertos não pode permitir que a defasagem entre o que vemos e o que escutamos seja superior a um vinte avos de segundo[7] Seria inaceitável que se visse alguém que desliza o arco sobre as cordas de um violino e um pouco depois escutasse o som que produz. Assim, o tamanho máximo de uma sala de concertos não dependerá jamais de um problema acústico. Será esse fenômeno e a maneira do corpo de experimentá-lo o que vai definir a medida de uma sala. Isso é um fato arquitetônico.
Tudo quanto possa ser dito, pode ser dito claramente; do que não se pode falar, é melhor guardar silêncio.
—Ludwig Wittgenstein
Os fatos da arquitetura
Ante a fotografia de um banco de materiais rústicos situado junto à escada que sobe ao teto-jardim da casa, que ilustra o livro Une petit maison[8], Le Corbusier sentencia: um autêntico fato de arquitetura, me perdoe Vignola.
Podia haver se referido a qualquer dos outros fatos da casa: a formosa janela horizontal que dá sobre o lago; ou a mesa adossada ao muro de fechamento do jardim, mas preferiu a modesta elementalidade do banco para designar a realidade mais profunda da arquitetura. O banco de madeira, à distância justa do muro para que este se faça às vezes de encosto; muro que por sua vez foi seguramente amornado pelo sol. Insolação que somada à vista (que não vemos, mas que podemos supor) fazem desse um bom lugar para deixar passar o tempo. Tempo que não é solitário, porque as separações entre as três janelas do subsolo que se debruçam sobre o banco, permitem que duas pessoas se apoiem. Que mais se pode querer, que mais que isso pode aspirar a construir a arquitetura?
As coisas ordinárias contêm os mistérios mais profundos (...). Ainda não temos a coragem de confrontar o ordinário como tal.
—Robin Evans
Remeter-se aos fatos de arquitetura significa para Le Corbusier recordar as origens desta, ao mesmo tempo que explorar suas possibilidades inéditas: um esforço de depuração pelo qual a despoja de tudo aquilo que tem vindo carregando; procedimentos estabelecidos e acessórios repetitivos. A referência a Vignola propõe de maneira mais explícita a intenção de separar a arquitetura do puro domínio das formas e de sua imitação.
Um fato arquitetônico é a relação precisa entre forma e vida, ou, ainda mais radical, entre uma construção e seus usos.
Um fato arquitetônico é a relação mítica entre forma e vida;
mito é dizer uma coisa de uma vez por todas.
Não há fatos, só interpretações.
—Friedrich Nietzsche.
Otherwiseness
Karsten Harris propõe que se algo caracterizou o artista moderno (o arquiteto incluído), foi a hiperconsciência (hyperawareness) que seu trabalho pudesse ser de outra maneira (otherwise)[9]. Seu grande adversário seria então a arbitrariedade.
Isso porque, quebrada a relação com a linguagem clássica, invertida a direção histórica em que trabalhou a arte, desde sua vontade de dominar o ignoto até um salto ao desconhecido, e tendo à disposição uma tecnologia e materiais escassamente restritivos, a liberdade inaugurada interrompia a relação direta entre obra e circunstâncias. As circunstâncias deixaram de ser o suficientemente determinantes como para conduzir com precisão desde a vida à forma.
Essa nova maneira de entender a arte segundo a define Helio Piñón: substitui a mimesis pela construção como critério de produção artística, e a instauração de uma ideia autônoma de forma, controlada por uma legalidade específica (a visual), distinta e irredutível aos critérios de qualquer sistema exterior.
Se por um lado se trata de uma ação subjetiva (uma construção de algo que até então não existe), não é menos certo que tal ação tem desde o princípio uma aspiração de universalidade.
Nesse sentido, os fatos da arquitetura permitem dar curso a essa vontade de unanimidade. É através deles que se tenta evitar a irracionalidade e a causalidade. São eles os que permitem encarnar o espírito dos tempos, evitando cair no ridículo do anacronismo. São eles quem conferem à forma fundada numa pura visualidade, uma legalidade que aspira através do juízo estético a poder ser lida, uma certa transparência das operações que definem dita forma. São eles os que dão consistência ao intento de formular uns princípios coletivos, como um mecanismo de abandonar a individualidade, e superar a arbitrariedade.
São os fatos de arquitetura os que estabelecem o que poderíamos denominar o plano da realidade próprio da arquitetura: A arquitetura está determinada pelos fatos arquitetônicos como analogamente a história pelos fatos históricos. Tal um plano por três pontos distintos não situados em linha reta e do fato que possa existir um ponto fora do plano fica determinado o espaço.
É sua verificação a que nos permite descansar numa certa certeza acerca da realidade da disciplina, tantas vezes ameaçada de se dissolver na pura naturalidade da vida social ou nos domínios de outras disciplinas.
É sua verificação a que permite nos mover como arquitetos com esse grau simultâneo de cuidado e segurança que denominamos rigor.
De volta aos fatos; eu não interpreto, eu construo de novo.
—Susan Sontag
Se a realidade se observa, os fatos arquitetônicos se formulam.
Esta formulação deve cumprir dois condições:
Por uma parte, o enunciado deve ter uma sequência, uma estrutura argumental, um tom inclusive, que o faça resistente; quando algo se torna resistente, difícil de dissolver, como as estruturas químicas complexas, é possível trasladá-lo.
O fato de arquitetura é a formulação de uma situação de forma tal que lhe dê uma estrutura estável que permita seu transporte; esse trânsito desde o que ocorre ao que poderia ser, converte a realidade em lição de arquitetura.
Por outra parte, o proposto deve estar em código de projeto, nos deixar a ponto de projeto sem ter que chegar a projetar. O arquiteto Hernán Riesco dizia que pensar exaustivamente na diplomacia para tratar de formular desde um ponto de vista estritamente arquitetônico o problema de uma embaixada, nunca nos conduziria a um projeto; em cambio, apenas nomear a questão da segurança, a todos nos deixa pelo menos encaminhados.
Um fato de arquitetura é uma formulação tal que consegue traduzir ideias e problemáticas abstratas a uma linguagem arquitetônica e a operações de projeto concretas, sem chegar a projetar. Eles são uma aproximação ao problema da arquitetura tal que estabelecem uma relação sugestiva e radical entre o que há que fazer e como fazê-lo (referido ao ato de projetar).
Não tudo, não sempre
Talvez se o horizonte de tudo isso não seja senão verificar uma certa pertinência na arquitetura; pertinência na leitura do problema, pertinência da forma proposta. Descompor acertadamente a situação em seus traços constituintes, essenciais, e conhecer as propriedades da forma, de tal forma que ela encarne a situação pertinente. É nesse sentido que um arquiteto é um profissional da forma; conhece exatamente suas consequências.
Esse comércio entre forma e vida não é nem pura determinação nem pura liberdade.
Se um projeto de arquitetura está determinado pelos fatos arquitetônicos, aquele âmbito de liberdade que revela cada vez um traço novo, é um mistério. Nesse sentido, a arquitetura é uma arte. Nesse sentido se poderia entender a afirmação de Le Corbusier: a arquitetura é o cofre da vida. Em tanto que o cofre é ele mesmo algo precioso que guarda algo precioso. Responde Juan Borchers: não vejo assim. Se devo expressar meu estado de contemplação atual, correspondendo à visão presente, não titubeio em afirmar: a obra de arquitetura é, sem mais, a própria vida.[10]
Ressonam aqui as palavras do professor Riesco, quem com paciência e confiança corrigia aos estudantes durante todo o ano, só aquilo que a eles, a todos, nos parece especificamente arquitetônico, a forma. E, então, o último dia, inclusive depois dos exames, dizia: É, a forma está bem, agora lhe falta a vida.
Notas
[1] Carta publicada em Le Corbusier, viaggio in oriente. Catálogo da exposição curada por Giuliano Gresieri. Editorial Marsilio, Veneza, 1984.
[2] Juan Borchers em Institución Arquitectónica. Editorial Andrés Bello. Santiago, 1968, p. 120.
[3] Ibidem, p. 41.
[4] As quatro plataformas têm distintas medidas: a primeira é um grande degrau de 170 cm que contem algumas das outras plataformas, a primeira das quais está a 69 cm da borda; a segunda mede 63 cm, a terceira 65 cm e a última 70 cm.
[5] Uma expressão do poeta Godofredo Iommi.
[6] Borchers, Juan, Op. Cit., p. 66.
[7] Com pequenas variações, o tamanho máximo de uma sala nunca superará os cinquenta metros; além dessa distância, a defasagem entre o que se vê e o que se ouve supera o vinte avos de segundo.
[8] Le Corbusier publica seu livro Une petit maison em 1954, uma reflexão já madura sobre a casa que construiu para seus pais no lago Leman em 1922.
[9] Em: Thoughts on non arbitrary architecture, artigo aparecido em Perspecta.
[10] Juan Borchers em Meta-arquitectura. Editorial Mathesis. Santiago, 1975, p. 15.
Referência:
Alejandro Aravena, "Los Hechos de la Arquitectura", em: Fernando Pérez, Alejandro Aravena, e José Quintanilla, Los Hechos de la Arquitectura, Ediciones ARQ, Santiago, 3ª ed., 2007.
Primeira edição em português. © Tradução: Igor Fracalossi