Uma das coisas que mais me chamam a atenção quando visito grandes cidades em outros países, sejam elas capitais europeias ou vizinhas aqui da América do Sul, é a ocupação dos espaços públicos pelas pessoas.
E não me refiro apenas a parques ou praças. Seja em Buenos Aires, Santiago, Paris ou Amsterdã, por exemplo, ao menos nos dias de sol, quase qualquer gramado é ocupado pelas pessoas, por crianças correndo e brincando, amigos fazendo piquenique, jovens lendo estirados ao sol.
No Brasil, onde muitas capitais e grandes cidades estão localizadas no litoral, as praias urbanas talvez representem os principais espaços públicos de lazer e convivência.
Em São Paulo, por sua triste vez, para além de seus parques, até há praças e áreas verdes espalhadas pela cidade, mas muitas delas parecem não passar de meros adornos, sendo muito pouco ocupadas e frequentadas. “Praia de paulistano é shopping center” é uma frase que as pessoas costumam repetir por aqui. Pobres de nós, paulistanos…
Quem captou muito bem essa, digamos, falta de urbanidade paulistana foi a escritora curitibana — radicada em São Paulo — Giovana Madalosso em seu ótimo romance “Tudo pode ser roubado”. Logo no início da narrativa, a protagonista descreve o entorno do badalado restaurante no qual trabalha, perto da Avenida Paulista.
“Uma das laterais dá para uma praça que poderia ser um cartão postal de São Paulo caso São Paulo fosse honesta a respeito de si mesma. A praça é só um banco e um chafariz, sombreados por prédios de escritório. Desses prédios, descem pessoas que não sentam nos bancos, nem contemplam o chafariz, só fumam um cigarro e voltam correndo para dentro, talvez porque eles não saibam muito bem o que fazer com um banco e um chafariz. Nossos clientes é que dão uma certa vida à praça, esperando mesa por ali com seus drinques na mão”.
A descrição revela uma área central de São Paulo carente de espaços públicos e na qual os raros espaços são mal planejados e pouco frequentados, uma cidade onde o lazer e os encontros parecem exigir necessariamente dinheiro, seja em um bar, shopping, café ou restaurante.
A explicação para o fenômeno parece passar tanto pela relação dos paulistanos com os espaços públicos, afetada por fatores como a dependência do automóvel e a sensação de insegurança na cidade, quanto pelo fato de que esses espaços muitas vezes são mal planejados ou pouco convidativos.
Sobre o primeiro ponto, não há muito o que se fazer a curto prazo, já que questões relacionadas à mobilidade, à segurança pública ou mesmo a uma suposta preferência dos paulistanos pelos espaços privados envolvem soluções mais complexas.
A questão da sensação de insegurança, em particular, tem sido combatida nas últimas décadas pela instalação de grades ao redor de parques e praças, o que torna os espaços ainda menos convidativos e compromete sua integração ao entorno. Foi essa a estratégia da Prefeitura para “proteger” a Praça Princesa Isabel, no centro, dos usuários de drogas que passaram a ocupá-la após uma das últimas dispersões desastradas da cracolândia.
Já a respeito da localização das praças e áreas verdes, um dos problemas mais evidentes é que, em diversos casos, elas não são implantadas onde há circulação de pessoas e demanda por convívio, mas em terrenos que parecem ter sobrado no processo de desenvolvimento da cidade. Enquanto isso, áreas com elevada densidade demográfica e intensa circulação de pessoas muitas vezes carecem de áreas verdes e espaços públicos. Em outras palavras, há muita praça sem gente e muita gente sem praça.
O sucesso instantâneo do Parque Augusta, analisado em um dos episódios do São Paulo nas Alturas, parece resultado, principalmente, da sua localização, em uma área de elevada densidade demográfica, próxima do transporte público, com residências e comércio no entorno; por isso, ele conta com presença de públicos diferentes em horários diferentes, o que acaba resultando em usos diversos do parque (esporte, lazer, descanso, contemplação, convívio, entretenimento), que vive cheio.
A Praça Baixo Antártica, inaugurada recentemente a cerca de dois quilômetros de casa, ao lado do vão do Viaduto Antártica, por sua vez, vive situação diametralmente oposta. Ela está localizada em uma área onde praticamente não há residências, com pouca circulação de pessoas a pé. Apesar de ter equipamentos para esporte, lazer, convívio e contemplação, parece viver sempre vazia.
Já na Pompeia, onde vivo, quase não há praças ou áreas verdes próximas, embora seja uma região bastante adensada e de uso misto, que está passando por um intenso processo de verticalização. Como solução para este problema do bairro, cheguei a propor em artigo recente publicado no Diário do Comércio um modelo de espaço privado de uso público semelhante ao que passa a ser incentivado pelo novo Plano Diretor nos eixos estruturantes da transformação urbana.
A lei sancionada em julho estimula a implantação de praças particulares abertas ao público, cuja limpeza e manutenção ficarão sob responsabilidade do proprietário. Elas deverão ter área de no mínimo 250 m² e estar sempre abertas à circulação de pedestres, sendo o controle de acesso permitido somente à noite. O incentivo para os proprietários disponibilizarem esses espaços, por sua vez, se dará via bônus em área construída e desconto de outorga onerosa.
Há também exigências relacionadas à permeabilidade e arborização: ao menos metade da praça deverá ter o solo ajardinado e, nesta área, deve haver no mínimo uma árvore a cada 25 m². Por outro lado, não há obrigações relacionadas à instalação de mobiliário urbano, por exemplo.
Quando escrevi o artigo, a ideia de espaços privados de uso público me parecia ótima: pelo mundo, uma das soluções encontradas para a falta de espaços públicos em muitos locais tomados por construções foi a implantação de pequenos parques de uso público em empreendimentos privados ou sobras de terreno. Medida semelhante já é adotada há muito tempo em Nova York e Hong Kong, por exemplo.
O diabo, porém, mora nos detalhes, já nos ensina a sabedoria popular.
Em resposta ao debate que surgiu a partir do post que fiz no LinkedIn para divulgar meu artigo, Roni Hirsh, dono e diretor de criação da Erê Lab, levantou um problema já observado em praças de São Paulo adotadas pela iniciativa privada: a legislação atual não fomenta que os adotantes implantem equipamentos de uso coletivo nos espaços públicos, de forma que muitos acabam se limitando a fazer a preservação da área verde e a colocar a placa com o nome da empresa patrocinadora.
Assim, muitas praças ou áreas verdes, em particular as adotadas por empresas privadas — mas não só elas —, acabam pouco frequentadas não necessariamente por causa da localização, mas por não contarem com equipamentos que fortaleçam a possibilidade de gerar uso dos espaços pela população, sejam eles cadeiras, bancos, mesas, equipamentos de brincar, voltados para pets, idosos ou de ginástica.
Conforme apontaram diversos especialistas ouvidos pelo Estadão, as praças privadas incentivadas pelo novo Plano Diretor também podem virar um mero adorno para garantir benefícios fiscais e de potencial construtivo. Para evitar isto, deveriam ser regulamentadas com exigências que garantam acessibilidade, qualidade dos espaços e incentivem o uso e a ocupação, como regras para implantação de mobiliário urbano para diferentes usos e idades de acordo com o contexto na qual está inserida, por exemplo.
A pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Bianca Tavolari, em particular, além de avaliar o texto referente ao tema como confuso — o que diminuiria a segurança jurídica para os investidores —, destacou também que “não há prazo mínimo estipulado para esse tipo de uso e que o próprio registro em cartório exigido pode ser depois modificado”. “O que impede que, daqui a três anos, transforme em outra coisa, depois que ganhou o potencial construtivo e o desconto na outorga?”, questiona a arquiteta e urbanista.
Vale aqui voltarmos ao trecho do romance “Tudo pode ser roubado” da Giovana Madalosso. Afinal, uma praça privada muito semelhante à descrita por ela, conhecida como “pracinha do Spot”, que fica no quarteirão formado pela Alameda Ministro Rocha Azevedo, Avenida Paulista e Rua Frei Caneca, além de pouco convidativa, há algum tempo foi cercada e fechada por questões de segurança…
Mesmo Nova York enfrenta dificuldades relacionadas à manutenção e fiscalização desse tipo de espaço, conforme analisa artigo publicado no Caos Planejado. A Trump Tower, por exemplo, chegou a ser multada por ter retirado bancos do espaço público pelo qual se responsabilizava — é sempre importante ter em mente que o maior uso do espaço tende a resultar em maiores gastos com manutenção; talvez até por isto não seja interessante para os “adotantes” de praças públicas e para os futuros proprietários de praças privadas a obrigação de implantação de equipamentos para incentivar o uso dos espaços pelas pessoas.
Em São Paulo, portanto, as praças particulares que passam a ser incentivadas pelo Plano Diretor até podem ser uma solução para a falta de áreas verdes e espaços públicos em certas áreas da cidade. Desde que sejam estabelecidas regras muito claras e fiscalização que garantam a acessibilidade e a qualidade desses espaços.
Todo cuidado é pouco, porém, quando tratamos de áreas privadas de uso público. E não somente porque a lei atual pode acabar levando à criação de espaços pouco convidativos — à custa de renúncia na arrecadação de outorga onerosa, ainda por cima.
Por aqui, como alertam o romance da Giovana Madalosso, o caso da “pracinha do Spot” e a fala da arquiteta e urbanista Bianca Tavolari, realmente tudo, em algum momento, pode nos ser roubado. Inclusive as já escassas áreas “públicas” no centro expandido da cidade…
Já na Pompeia, onde vivo, quase não há praças ou áreas verdes próximas, embora seja uma região bastante adensada e de uso misto, que está passando por um intenso processo de verticalização. Como solução para este problema do bairro, cheguei a propor em artigo recente publicado no Diário do Comércio um modelo de espaço privado de uso público semelhante ao que passa a ser incentivado pelo novo Plano Diretor nos eixos estruturantes da transformação urbana.
A lei sancionada em julho estimula a implantação de praças particulares abertas ao público, cuja limpeza e manutenção ficarão sob responsabilidade do proprietário. Elas deverão ter área de no mínimo 250 m² e estar sempre abertas à circulação de pedestres, sendo o controle de acesso permitido somente à noite. O incentivo para os proprietários disponibilizarem esses espaços, por sua vez, se dará via bônus em área construída e desconto de outorga onerosa.
Há também exigências relacionadas à permeabilidade e arborização: ao menos metade da praça deverá ter o solo ajardinado e, nesta área, deve haver no mínimo uma árvore a cada 25 m². Por outro lado, não há obrigações relacionadas à instalação de mobiliário urbano, por exemplo.
Quando escrevi o artigo, a ideia de espaços privados de uso público me parecia ótima: pelo mundo, uma das soluções encontradas para a falta de espaços públicos em muitos locais tomados por construções foi a implantação de pequenos parques de uso público em empreendimentos privados ou sobras de terreno. Medida semelhante já é adotada há muito tempo em Nova York e Hong Kong, por exemplo.
O diabo, porém, mora nos detalhes, já nos ensina a sabedoria popular.
Em resposta ao debate que surgiu a partir do post que fiz no LinkedIn para divulgar meu artigo, Roni Hirsh, dono e diretor de criação da Erê Lab, levantou um problema já observado em praças de São Paulo adotadas pela iniciativa privada: a legislação atual não fomenta que os adotantes implantem equipamentos de uso coletivo nos espaços públicos, de forma que muitos acabam se limitando a fazer a preservação da área verde e a colocar a placa com o nome da empresa patrocinadora.
Assim, muitas praças ou áreas verdes, em particular as adotadas por empresas privadas — mas não só elas —, acabam pouco frequentadas não necessariamente por causa da localização, mas por não contarem com equipamentos que fortaleçam a possibilidade de gerar uso dos espaços pela população, sejam eles cadeiras, bancos, mesas, equipamentos de brincar, voltados para pets, idosos ou de ginástica.
Conforme apontaram diversos especialistas ouvidos pelo Estadão, as praças privadas incentivadas pelo novo Plano Diretor também podem virar um mero adorno para garantir benefícios fiscais e de potencial construtivo. Para evitar isto, deveriam ser regulamentadas com exigências que garantam acessibilidade, qualidade dos espaços e incentivem o uso e a ocupação, como regras para implantação de mobiliário urbano para diferentes usos e idades de acordo com o contexto na qual está inserida, por exemplo.
A pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Bianca Tavolari, em particular, além de avaliar o texto referente ao tema como confuso — o que diminuiria a segurança jurídica para os investidores —, destacou também que “não há prazo mínimo estipulado para esse tipo de uso e que o próprio registro em cartório exigido pode ser depois modificado”. “O que impede que, daqui a três anos, transforme em outra coisa, depois que ganhou o potencial construtivo e o desconto na outorga?”, questiona a arquiteta e urbanista.
Vale aqui voltarmos ao trecho do romance “Tudo pode ser roubado” da Giovana Madalosso. Afinal, uma praça privada muito semelhante à descrita por ela, conhecida como “pracinha do Spot”, que fica no quarteirão formado pela Alameda Ministro Rocha Azevedo, Avenida Paulista e Rua Frei Caneca, além de pouco convidativa, há algum tempo foi cercada e fechada por questões de segurança…
Mesmo Nova York enfrenta dificuldades relacionadas à manutenção e fiscalização desse tipo de espaço, conforme analisa artigo publicado aqui no Caos Planejado. A Trump Tower, por exemplo, chegou a ser multada por ter retirado bancos do espaço público pelo qual se responsabilizava — é sempre importante ter em mente que o maior uso do espaço tende a resultar em maiores gastos com manutenção; talvez até por isto não seja interessante para os “adotantes” de praças públicas e para os futuros proprietários de praças privadas a obrigação de implantação de equipamentos para incentivar o uso dos espaços pelas pessoas.
Em São Paulo, portanto, as praças particulares que passam a ser incentivadas pelo Plano Diretor até podem ser uma solução para a falta de áreas verdes e espaços públicos em certas áreas da cidade. Desde que sejam estabelecidas regras muito claras e fiscalização que garantam a acessibilidade e a qualidade desses espaços.
Todo cuidado é pouco, porém, quando tratamos de áreas privadas de uso público. E não somente porque a lei atual pode acabar levando à criação de espaços pouco convidativos — à custa de renúncia na arrecadação de outorga onerosa, ainda por cima.
Por aqui, como alertam o romance da Giovana Madalosso, o caso da “pracinha do Spot” e a fala da arquiteta e urbanista Bianca Tavolari, realmente tudo, em algum momento, pode nos ser roubado. Inclusive as já escassas áreas “públicas” no centro expandido da cidade…
Via Caos Planejado.