No País dos Arquitectos é um podcast criado por Sara Nunes, responsável também pela produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, que tem como objetivo conhecer os profissionais, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa contemporânea de referência. Com pouco mais de 10 milhões de habitantes, Portugal é um país muito instigante em relação a este campo profissional, e sua produção arquitetônica não faz jus à escala populacional ou territorial.
Neste episódio da sexta temporada, Sara conversa com a arquiteta Helena Roseta, sobre o futuro da habitação. Ouça a conversa e leia parte da entrevista a seguir.
Sara Nunes: A Helena é arquitecta e tem dedicado toda a sua vida ao problema da habitação. E essa missão começou muito cedo. Sei também de uma resposta curiosa que deu ao arquitecto Nuno Portas no primeiro dia de aulas. Pode partilhar connosco essa história?
Helena Roseta: Eu vou contá-la. Mas, podendo estar isto a ser ouvido não apenas em Portugal, mas em países que falam português, terei de fazer uma pequena intervenção. Se alguém no Brasil me estiver a ouvir, cada vez que eu disser 'habitação', pensem 'moradia'; e, cada vez que eu disser 'renda', pensem 'aluguel'. São coisas diferentes com palavras distintas que querem dizer a mesma coisa. No Brasil, 'renda' significa 'rendimento'. E aqui significa o que pagamos para ter uma casa. São coisas tão diferentes que é preciso fazer esta pequena correção para não confundir as pessoas.
SN: É importante tê-la feito.
HR: Senão, [as pessoas] ficam confundidas a ouvir falar o português de Portugal. E, portanto, cada vez que eu disser 'habitação', refiro-me à casa onde as pessoas estão; e, cada vez que eu disser 'renda', é o que as pessoas pagam por alugar uma casa.
Então vamos lá contar essa história. Eu tinha dezanove anos e estava, creio, no segundo ano de arquitectura. Era meu professor nessa altura, na cadeira de Projecto, o arquiteto Nuno Portas, pessoa a quem eu devo muito. Aos dois Nunos: o Nuno Portas e o Nuno Teotónio Pereira, dois grandes arquitectos que...
SN: Colaborou com os dois.
HR: Eu trabalhei com ambos, mas o Nuno Portas foi meu professor. Tenho uma admiração ilimitada por ambos. Aprendi muito com eles, coisas diferentes. Com o Nuno Portas, aprendi quase tudo o que eu sei de arquitectura. E ele, na primeira aula, perguntava a todos os alunos porque é que tinham ido para arquitectura. E cada um deu as suas respostas, não é? Uns gostavam muito de desenhar, outros queriam fazer casas, outros o pai era arquitecto ou a mãe era arquitecta e gostavam muito daquele trabalho. E eu respondi com a maior das presunções: “Eu vim para a arquitectura porque eu quero resolver o problema da habitação em Portugal” e já não sei o que ele me respondeu. Mas deve ter-se fartado de rir, porque realmente isto é de uma presunção ilimitada. Farei 76 anos daqui a alguns dias e, na verdade, não resolvi o problema da habitação em Portugal na minha vida toda, desde os dezanove. Tentei compreendê-la, pelo menos. E, portanto, voltei ao princípio. Eu quero resolver o problema da habitação em Portugal. Temos todos de fazer um esforço muito grande, porque ele não está resolvido.
SN: De onde vem esse sentido de missão, tão claro aos dezanove anos?
HR: Tem que ver com a consciência da má habitação. Tive, desde muito cedo, contacto com pessoas que moravam em barracas. Depois, também nessa altura, quanto tinha essa idade, em 1967, houve cheias terríveis em Lisboa, na Grande Lisboa. Numa noite, morreram não sabemos quantas pessoas porque estávamos...
SN: Quinhentas, não é?
HR: Talvez mais. O problema é que estávamos em ditadura. E a censura, quando aquilo chegou ao número trezentos e não sei quantos, não permitiu que os jornais divulgassem mais estatísticas. Mas nós continuávamos a ver passar as Ritas - as carretas funerárias - e, portanto, foi uma tragédia. Vocês conseguem imaginar o que é, numa noite, morrerem quinhentas pessoas à vossa volta por uma chuvada forte? Não houve qualquer tremor de terra. Não houve nada disso. Foi apenas chuva, com inundações e tudo o mais. O mais trágico - e foi isso que me deu esta consciência tão aguda - é que eu morava no centro de Lisboa e aí não aconteceu nada. Portanto, na Grande Lisboa, nos sítios da cidade consolidada, nas zonas mais estáveis, não morreu ninguém. Houve cheias, mas não morreu ninguém. À volta da cidade - sobretudo no Vale do Tejo, na zona ribeirinha, na região de Vila Franca de Xira, por aí - havia muita construção clandestina em cima dos vales, nos leitos de cheia. A água surgiu de repente e as pessoas morreram. Foi terrível! As pessoas mais novas poderão estar a pensar como eu: a habitação faz a diferença entre a vida e a morte. Pode fazer. Durante o COVID, lembram-se do que toda a gente dizia? “Fica em casa!”. Mas qual casa? É preciso tê-la e tê-la em boas condições. Porque, se a pessoa mora numa casa, e estão todos uns em cima dos outros, na mesma divisão, não há isolamento possível. E, portanto, a habitação é de facto um direito fundamental. Em momentos críticos, pode fazer a diferença entre a vida e a morte. E foi isto que me deu a consciência de que é preciso lutar - e muito - para que toda a gente tenha uma habitação condigna.
SN: A importância do planeamento e do ordenamento do território...
HR: Imensa, imensa,... Oiça, em 1967, os estudantes fizeram brigadas. Eu estava na Escola de Arquitetura. Os de Medicina tratavam dos doentes e vacinavam, essas coisas todas. Os do Técnico fizeram sobretudo a organização e muita, muita limpeza, inclusive da lama e isso tudo. E ajudaram a transportar os corpos. Enfim, houve uma grande mobilização estudantil. E eu? Eu trabalhava para um jornal de estudantes da Juventude Universitária Católica, uma organização religiosa. As organizações estavam proibidas, não é? Só podia haver organizações religiosas ou ligadas ao regime. As outras eram clandestinas, não podiam existir. As associações de estudantes estavam proibidas. Tudo isso era proibido. Eu estava numa organização religiosa permitida, a Juventude Universitária Católica. Tinha um jornal chamado “O Encontro”, onde me pediram para ir fazer uma entrevista. Eu propus, aliás, entrevistar o Nuno Portas - o meu professor, precisamente - e o Gonçalo Ribeiro Telles. Talvez já tenha ouvido falar nesse homem. É uma grande figura.
SN: Tenho muita pena de não ter ido a tempo de o entrevistar.
HR: O Gonçalo Ribeiro Telles é uma figura.
SN: Ouvi sempre que era um homem excecional.
HR: Pioneira! Uma figura pioneira em Portugal no movimento ecologista. Hoje, o movimento ecologista é mundial, está disseminado e, nas camadas mais jovens, é uma causa obrigatória. Mas naquela altura não. E, portanto, o Gonçalo Ribeiro Telles é o primeiro grande ecologista em Portugal, com uma capacidade de divulgação muito grande. De vez em quando, era convidado para ir à televisão. Contava histórias e as pessoas ficavam muito impressionadas com ele. Era um grande arquitecto paisagista. E eu fui entrevistar os dois: o Nuno Portas, por causa da arquitectura; e o outro, por causa do território. Tenho um exemplar extra catálogo que escapou à censura. Se fosse o jornal, teria sido submetido à censura. Mas, como foi extra catálogo, não. E publicámos essas duas entrevistas, onde o Nuno Portas conta porque havia tantos problemas com a habitação. Dificuldades socioeconómicas, basicamente. Fez uma análise socioeconómica, explicando as situações de pobreza e mostrando que as pessoas não tinham acesso a habitações em melhores condições. E o Ribeiro Telles esclareceu muito bem como funcionam as ribeiras. No verão, a ribeira está seca. Mas, quando chove muito, enche, por vezes de repente. Foi um retrato do grande desordenamento territorial na região de Lisboa. Que, fruto da análise do Nuno Portas, serviu também como uma metáfora para o enorme desordenamento sociopolítico de Portugal nessa altura.
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Ouça a entrevista completa aqui e reveja, também, a quinta temporada do podcast No País dos Arquitectos:
- Alejandro Aravena
- Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez
- Tiago Rebelo de Andrade
- Marta Brandão e Mário Sousa
- Luís Tavares Pereira e Guiomar Rosa
- Francisco Aires Mateus
- Paulo Moreira
- Andreia Garcia
- Fátima Fernandes
- Helena Vieira e Pedro Ferreira
- aNC arquitectos
- Branco del Río, Arquitectos
- Ana Aragão
- fala atelier
Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e Melanie Alves e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.