A bicicleta é um meio de transporte presente há décadas em cidades brasileiras, principalmente pela capacidade de dar acesso, a baixíssimo custo, ao trabalho, equipamentos públicos, serviços e lazer. Com dificuldade para arcar com o custo da tarifa do transportes públicos das grandes cidades, uma parcela da população sempre usou a bicicleta para os deslocamentos cotidianos. Mais recentemente, o aumento constante de níveis de congestionamentos, ruídos urbanos e poluentes levou também outro segmento da sociedade a adotar a bicicleta diariamente, buscando para além da qualidade de vida mostrar às pessoas como uma cidade pode ser melhor e mais sustentável através da bicicleta. Isso tem gerado um efeito surpreendente para o debate público, que está cada vez mais abordando a importância de tornar nossas cidades mais cicloinclusivas.
Adaptado para o português do termo em inglês bike friendly, o termo cicloinclusivo se refere à promoção do uso da bicicleta de forma integrada ao sistema de mobilidade urbana de uma cidade. O planejamento cicloinclusivo é muito mais do que construir ciclovias: trata-se de transformar a cidade em um lugar seguro e confortável para todos, com pertencimento, cidadania e interações entre as pessoas nos espaços públicos.
Para esse fim, o ITDP Brasil elaborou a publicação Guia de Planejamento Cicloinclusivo: um material de referência para técnicos, gestores, planejadores urbanos e cidadãos interessados em construir cidades mais humanas e sustentáveis, com foco na bicicleta. Este guia pretende servir de inspiração e motivação para todos os cidadãos e gestores que acreditam em um futuro movido a pedais e à energia humana.
Expandindo o uso da bicicleta: a bicicleta como modo de transporte
O uso da bicicleta pode ter finalidades distintas, sendo duas em especial: a viagem utilitária e o lazer. A primeira é o foco do Guia de Planejamento Cicloinclusivo e trata do uso da bicicleta para se deslocar ao trabalho, estudo, compras e outras atividades cotidianas. No caso de finalidades relacionadas ao lazer e práticas esportivas, o uso da bicicleta é o próprio objetivo, como treinamentos esportivos, atividades recreativas e cicloturismo.
Nas cidades, estima-se que mais que 50% dos destinos dos deslocamentos estão a menos de 10 quilômetros da sua origem. Uma parte considerável dessas viagens poderiam ser feitas de bicicleta, que é extremamente versátil e eficiente em distâncias de até 8 quilômetros. No caso de longas distâncias percorridas diariamente, a bicicleta tem grande potencial como modo complementar ao transporte público, principalmente em trechos entre 3 e 5 quilômetros. Um exemplo desse caso é o uso da bicicleta para se chegar até uma estação de transporte, ou no trajeto entre uma estação e o destino final.
Uma distância de 3 quilômetros pode ser percorrida de bicicleta em 15 minutos; em menos de 30 minutos, o ciclista alcança 5 quilômetros.
Evidentemente, para que seja possível garantir essa opção aos cidadãos cotidianamente, é necessário promover mudanças na sociedade, nas políticas públicas e iniciativas privadas, principalmente para garantir a disponibilidade de investimentos e a coordenação entre vários órgãos municipais, juntamente com a participação e o monitoramento da sociedade civil organizada.
Para tanto, os instrumentos de planejamento da mobilidade no âmbito municipal (políticas de transporte e mobilidade, planos de mobilidade ou planos de mobilidade cicloviária) devem subsidiar os programas e as ações de cada administração, de forma continuada e não apenas com o horizonte de um mandato. Quando as ações e políticas mencionadas são trabalhadas continuamente, os conflitos sociais em torno do tema são melhor equacionados e há um maior entendimento da população a respeito do processo de construção de uma cidade mais equitativa e sustentável.
O crescimento gradativo dos movimentos pró-bicicleta durante as últimas duas décadas permitiu o envolvimento da sociedade civil organizada nas discussões sobre políticas públicas de transporte, trânsito e mobilidade urbana, com um maior controle da gestão na mobilidade das cidades, principalmente em capitais e regiões metropolitanas. Segundo a organização BikeAnjo e com dados de 2014, há ao menos 500 grupos, movimentos, associações e organizações com o mesmo interesse em comum: monitorar e contribuir para a construção de cidades mais amigáveis às bicicletas.
Como tornar uma cidade cicloinclusiva
Para incluir e integrar de forma efetiva a bicicleta como modo de transporte no sistema de mobilidade de uma cidade, é fundamental que ciclistas sejam vistos como cidadãos que também utilizam outros modos de transporte. A opção pelo uso da bicicleta acontece em determinadas ocasiões e circunstâncias, de forma que o ciclista não é um usuário exclusivo da bicicleta em todos os seus deslocamentos. Deste ponto de vista fica mais evidente a necessidade de integração com o sistema de transportes, já que ciclistas e pedestres pedalam e caminham, por exemplo, até estações de transporte de média e alta capacidade.
Além da implantação de infraestruturas dedicadas às bicicletas que combinem diferentes tipologias e dimensões, é necessária a adoção de um conjunto de estratégias: medidas de moderação de tráfego, educação e fiscalização no trânsito, desestímulo ao uso do automóvel, sistemas de bicicletas compartilhadas e integração da bicicleta com outros modos. Novamente, vale ressaltar que estas ações devem ser continuadas e integradas a uma política municipal que busque uma mobilidade urbana mais sustentável.
Rede Cicloviária
A constituição de uma rede cicloviária é um dos passos mais importantes para termos cidades mais cicloinclusivas, já que a qualidade e a cobertura da rede são condicionantes especiais para permitir o aumento de usuários de bicicleta nas cidades. Uma rede cicloviária pode ser entendida como o conjunto de infraestruturas exclusivas (ciclovias e ciclofaixas) ou compartilhadas (ciclorrotas) para a circulação de pessoas em bicicletas. Contudo, vale destacar que de acordo com o Código de Trânsito Brasileiro (Art. 58), o tráfego de bicicletas é permitido em todas as vias do município, com preferência sobre os veículos automotores. Ou seja, todas as vias urbanas são cicláveis, salvo onde houver regulamentação contrária.
No planejamento de uma rede cicloviária devem ser contemplados cinco critérios básicos:
- Promover a linearidade - Por meio de percursos contínuos em distância e tempo e de soluções que promovam a redução de paradas obrigatórias ao ciclista;
- Promover a segurança - Evitar colisões, separar veículos e reduzir a velocidade principalmente em cruzamentos e áreas de conflito;
- Garantir a coerência - Por meio de uma malha cicloviária com resolução de 500 a 1000 metros (intervalo entre vias cicláveis), com trechos contínuos e vinculados às “linhas de desejo” (pelo menos 70% das viagens em bicicleta devem ser feitas dentro da malha cicloviária);
- Garantir a atratividade - Por meio de uma rede com alta densidade de destinos (principalmente para centros de bairro e pólos de atração de viagens) e com a localização dos trechos cicloviários em áreas onde haja suficiente controle visual e social;
- Promover o conforto na realização dos percursos, com elementos que permitam a orientação do ciclista no interior da rede cicloviária, facilitando sua chegada ao destino final.
Um dos principais objetivos do planejamento cicloinclusivo é dar condições e estimular as pessoas a migrarem dos modos motorizados para os modos ativos de transporte com conforto e segurança. A atração desses novos usuários está diretamente relacionada aos critérios e princípios na formulação da rede cicloviária, especialmente para os usuários mais vulneráveis, como crianças e idosos.
Se a rede cicloviária ajuda a garantir a integridade e prioridade de circulação de ciclistas no sistema viário urbano, o mobiliário urbano de apoio é imprescindível para a atratividade e conforto, pois reduz o risco de roubo e/ou dano às bicicletas. O medo de roubos e furtos é um importante fator de desestímulo à adoção da bicicleta.
O planejamento cicloinclusivo trata portanto da transformação do ambiente de circulação como um todo. Simultaneamente à implantação de redes cicloviárias, é interessante promover a instalação de bicicletários e paraciclos, estruturar sistemas de bicicletas compartilhadas e realizar ações de educação e cultura.
Além disso, em um processo que vise incluir e integrar de forma efetiva a bicicleta como modo de transporte na mobilidade de uma cidade, é fundamental que sejam definidos métodos de avaliação e monitoramento das políticas públicas, iniciativas e projetos, por meio da coleta de dados e desenvolvimento de métricas e indicadores específicos para a ciclomobilidade.
A atuação do ITDP Brasil no tema bicicletas, bem como todos os itens apresentados neste artigo para a construção de cidades mais amigas da bicicleta, estão descritos no Guia de Planejamento Cicloinclusivo, publicado em agosto deste ano.