Cidades fabricadas: o caso da primeira smart city do Brasil

Smart City Laguna, este é o nome da primeira "cidade inteligente" do Brasil segundo publicaram alguns meios de comunicação, inclusive o ArchDaily Brasil, em 2017. Com inauguração prevista para aquele mesmo ano, o empreendimento contaria em sua primeira fase com 1.800 unidades e, no total, 7.065, divididas entre residenciais, comerciais e de uso tecnológico.

Localizada no distrito de Croatá, que faz parte da cidade de São Gonçalo do Amarante, a primeira smart city brasileira ocupa uma porção de terra de 330 hectares conectada diretamente à rodovia federal BR-22, que cruza os estados do Ceará, Piaí e Maranhão partindo de Fortaleza em direção à Marabá, no Pará. A escolha do local tem razões econômicas: a proximidade com o Porto do Pecém, em Fortaleza, a Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP) e a Ferrovia Transnordestina fazem de Croatá um ponto estratégico no nordeste que vem sendo ocupado nos últimos anos por empresas de tecnologia, conformando um chamado "Cinturão Digital" a pouco mais de 50 quilômetros da capital cearense.

Autoproclamada a primeira smart city social do mundo, o empreendimento do grupo italiano Planet se afirma pioneiro por oferecer lotes para todas as faixas de renda, incluindo unidades do programa nacional Minha Casa Minha Vida, para famílias com renda de até 1,5 salários mínimos. Para além do diferencial, o projeto se enquadra no mesmo recorte conceitual do qual fazem parte outras "cidades inteligentes" do mundo, que têm seus projetos embasados em princípios tecnológicos, de sustentabilidade e de mobilidade urbana.

Colocadas à venda em 2015, em janeiro deste ano o número de unidades residenciais e comerciais compradas já somava duas mil, e a previsão para o fim de 2018 é que outas mil e quinhentas sejam comercializadas, segundo notícia publicada pelo jornal Diário do Nordeste.

O sucesso das vendas, entretanto, não está necessariamente vinculado às comodidades da vida em uma "cidade inteligente". Por mais que pareça tentadora a ideia de morar em uma cidade em que muitas das funcionalidades podem ser controladas por meio de um aplicativo para celular, parece que a explicação mais convincente para as vendas se encontra na valorização dos terrenos. De agosto de 2015 a novembro de 2017, o metro quadrado residencial de Smart City Laguna valorizou 140,9%, enquanto que o comercial subiu 218,2%. Quem comprou em 2015 parece ter feito um smart investment na primeira "cidade inteligente" do Brasil.

Os lotes que sofreram estrondosa valorização sugerem, como se vê nas imagens digitais usadas na divulgação do empreendimento, ocupação unifamiliar de um ou dois pavimentos. Teriam valorizado quanto se permitissem alta densidade? Provavelmente menos que as cifras atuais, já que Laguna ainda não existe enquanto cidade; portanto, antes de criar valor pelo adensamento, ela precisa ser minimamente ocupada. 

Imagem aérea de Smart City Laguna. Image via Engenharia E

Adensar em áreas onde há infraestrutura disponível é, no entanto, necessário em cidades que buscam aproveitar ao máximo seus recursos - ou usá-los inteligentemente - o que faz questionar a escolha pela baixa densidade em uma cidade que se autopromove como smart.

Esse não é o único ponto que levanta questões em Laguna. Em sua página online, a Planet argumenta que "o objetivo é alcançar sustentabilidade, segurança e qualidade de vida" e que a vida das pessoas em cidades ou bairros inteligentes é "mais econômica comparada a bairros tradicionais, bem como mais sustentável e socialmente inclusiva." Não há indicadores que expliquem, entretanto, como que fabricar uma cidade totalmente nova no meio da estrada poderia ser mais sustentável e inclusivo que ocupar espaços de uma cidade preexistente que já conta com infraestrutura instalada e apresenta as dinâmicas sociais inerentes a uma aglomeração urbana consolidada.

O que há logo abaixo na mesma página online é a explicação do porquê da escolha de Croatá, esclarecendo ao leitor o objetivo fundante de Laguna: investimentos. Não é de modo algum errado uma cidade buscar investimentos, todas o fazem com mais ou menos voracidade. O problema é Laguna se afirmar inteligente quando é na realidade um bairro tradicional - fabricado, porém -, envolto pela retórica publicitária da smart city que apresenta dispositivos e inovações tecnológicas como a solução para os problemas urbanos.

Numa época em que ideias como acupuntura urbana e projetos em pequena escala para ativar o espaço público parecem oferecer meios mais efetivos para fazer com que nossas cidades passem de problemas a soluções ambientais, construir uma cidade do zero - da infraestrutura ao aplicativo - pode ser qualquer coisa, menos inteligente.

Referências: Diário do Nordeste, Tecmundo e Smart City Laguna

Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Cidades fabricadas: o caso da primeira smart city do Brasil" 28 Nov 2018. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/888323/cidades-fabricadas-o-caso-da-primeira-smart-city-do-brasil> ISSN 0719-8906

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