Diversos estudos têm se dedicado a compreender a relação entre gênero e mobilidade urbana. Eles concluem que mulheres enfrentam desafios maiores para exercer o direito à cidade e acessar as oportunidades oferecidas no espaço urbano. As desigualdades na divisão do trabalho doméstico implicam em maior carga para as mulheres, que acumulam funções como levar e buscar as crianças na escola, o cuidado com membros idosos e doentes da família, a ida às compras entre outras atividades, o que determina em grande parte um padrão de deslocamento consolidado por viagens em sequência, para múltiplos destinos e com uso preponderante do transporte público e da caminhada.
Diante deste quadro, incorporar as questões de gênero, com recortes de raça e classe, ao planejamento urbano é fundamental. Para contribuir com a formulação de políticas públicas que compreendam o papel do gênero na mobilidade e no acesso à cidade, o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento foi até Recife e realizou uma pesquisa com mulheres moradoras de comunidades e bairros periféricos da capital e de municípios da sua região metropolitana.
O relatório sobre O Acesso de Mulheres e Crianças à Cidade é fruto desta pesquisa, que foi desenvolvida utilizando a metodologia de grupos focais. O formato de discussão estimulada permite a identificação de fatores encadeados na experiência individual e o registro da percepção coletiva. No estudo em Recife, foram ouvidas 51 mulheres entre 17 e 70 anos, moradoras de comunidades e bairros da periferia dos municípios da região metropolitana. O roteiro de discussão abordou questões como a infraestrutura dos bairros, transporte público, segurança viária, violência, lazer e educação de crianças e uso da bicicleta. Os resultados permitem compreender a visão geral sobre temas como o papel do poder público e da sociedade na garantia de direitos urbanos básicos.
Foram destacados aspectos sobre a má qualidade de infraestrutura urbana; uso e ocupação desordenada do solo urbano; mau estado de conservação e manutenção da infraestrutura existente e do espaço público; insuficiente oferta de serviços e equipamentos públicos. A percepção consolidada neste segmento da população é de que tais fatores favorecem a violência urbana e aumentam a sensação de insegurança. Ruas sem movimento, comércios fechados e vazios urbanos reforçam a sensação de insegurança, impõem mudanças de hábito e a adoção de estratégias para lidar com o medo: elas evitam a todo custo andar por estes espaços vazios, mudam percursos; acionam maridos e familiares para acompanhá-las no trajeto de volta para casa; procuram circular por lugares com comércio aberto; e em alguns casos recorrem ao transporte complementar como vans e mototáxis, ainda que nem sempre confiáveis, para fazer determinados deslocamentos. Dentre todas as questões manifestadas por essas mulheres, destaca-se a percepção sobre os ponto de ônibus, considerados, na experiência delas, como o local da cidade onde sentem mais medo e estão mais vulneráveis à violência urbana e de gênero. A violência de gênero, sobretudo o assédio, faz parte da experiência cotidiana das mulheres nas cidades e no transporte público.
A partir dos resultados da pesquisa qualitativa com mulheres, o ITDP Brasil buscou traçar também um panorama mais técnico sobre a realidade do Recife e Região Metropolitana sob a ótica de gênero, raça e classe. Alguns resultados mostram como a adoção de um modelo de cidade mais voltado para garantir a mobilidade a partir dos modos de transporte motorizado individual, em detrimento do transporte público coletivo, da caminhada e da bicicleta, tem impacto nas desigualdades de gênero no acesso à cidade.
Apenas 1% da malha viária do Recife apresenta algum tipo de prioridade para a circulação de BRTs e ônibus convencionais, que representam os modos de transporte mais utilizados pelas mulheres, juntamente com a caminhada. Por outro lado, as mulheres declaram que usariam a bicicleta para realizar tarefas comuns do dia-a-dia, como levar filhos à escola e à creche, ou ir às compras, diminuindo assim também seus gastos com transporte, mas apenas 4% das mulheres responsáveis pelo domicílio com renda de até dois salários mínimos mora na área de cobertura da rede cicloviária da cidade.
Mas de que forma o planejamento urbano pode incorporar medidas que tornem a cidade mais equitativa, reduzindo também as desigualdades de gênero, raça e classe? O estudo do ITDP busca responder a esta pergunta propondo recomendações e uma série de 54 indicadores, organizados em nove eixos temáticos:
Segundo Letícia Bortolon, coordenadora do estudo no ITDP Brasil, a adoção dos indicadores pode contribuir o planejamento, monitoramento e avaliação de políticas públicas sensíveis ao gênero, visando a adoção de metas para a redução das desigualdades de gênero e classe no contexto do território. “A formulação de políticas públicas sensíveis ao gênero não pode, entretanto, estar isolada na caixinha do planejamento urbano. A grande dificuldade de acesso às oportunidades da cidade se dá também porque há uma carência de serviços públicos em geral: é possível perceber com clareza, por exemplo, que no âmbito da educação, o oferecimento de creches é bem abaixo da demanda real, e isso afeta a possibilidade das mulheres, sobretudo as mais pobres, acessarem oportunidades de emprego formal, por exemplo, pois precisam se dedicar ao cuidado dos filhos”, afirma.