Ao longo das últimas três décadas, Dubai floresceu em meio a um deserto desabitado para transformar-se em um centro urbano estratégico para o mundo dos negócios e do turismo. Como uma das diversas reações decorrentes deste novo fenômeno, várias cidades ao redor do mundo passaram a replicar esse modelo de desenvolvimento urbano - um urbanismo amplamente baseado no automóvel, arranha-céus luxuosos, centros comerciais gigantescos e tecnologias e sistemas "inteligentes" e "sustentáveis", tudo isso, à partir do zero. Surpreendentemente, estes novos empreendimentos tem se espalhado rapidamente pelo continente africano, assumindo nomes como Eko Atlantic City Nigéria, Vision City em Ruanda, Ebene Cyber City nas Ilhas Maurício; Konza Technology City no Quênia; Safari City na Tanzânia; Le Cite du Fleuve na República Democrática do Congo, entre vários outros. Ao que tudo indica, todas estas cidades parecem apenas meras tentativas de imitação daquilo que representa a cidade de Dubai.
Recentemente, encontrei-me com a Safiya Yahaya - uma arquiteta que trabalha atualmente em Dubai - para saber a sua opinião a respeito de como esse urbanismo "instantâneo" está transformado o continente africano.
Mathias Agbo Jr.: Sei que você mora em Dubai há alguns anos e que tem trabalhado como arquiteta em diferentes projetos espalhados por toda a cidade. Você conhece uma Dubai diferente daquela que nós, turistas, vivenciamos como todo este espetáculo artificial criado no meio do nada? Como está sendo a sua experiencia humana e profissional na cidade de Dubai?
Safiya Yahaya: Eu tive a sorte de ter testemunhado pessoalmente muitas das mudanças da cidade ao longo dos últimos anos. Quando me mudei para Dubai, em 2011, a cidade estava passando por uma das piores crises econômicas que este continente já viu. Era óbvio que, recuperando-se desta turbulencia econômica, a indústria da construção estava começando a acelerar e a crescer muito rapidamente para compensar todo o tempo perdido. Na época, parecia literalmente que os edifícios estavam brotando no deserto da noite para o dia, cada nova estrutura tentando superar a precedente como a mais incrível façanha do mundo da engenharia. Foi incrível assistir de tão perto tudo isso acontecendo, especialmente como uma arquiteta. Este país é como um sonho para qualquer arquiteto, aonde foram construídos alguns dos edifícios mais emblemáticos do século XXI. Dá uma impressão de super-poder, como se realmente fosse possível construir qualquer coisa nesta cidade, qualquer absurdo desde que exista tecnologia disponível para pô-la em prática.
O primeiro projeto em que trabalhei foi um deck de observação panorâmico, no 72º pavimento de um arranha-céu, aquele que hoje é o hotel mais alto do mundo. A base de tudo em Dubai é a competitividade, tudo aqui encontra-se numa corrida por reconhecimento de grandeza e luxuosidade. Trabalhar num lugar assim certamente me ensinou a pensar fora da caixa, não há limites para a ambição e, em teoria, também não há nada impossível de se fazer. Eu sempre digo que a melhor maneira para ver arquitetos famosos se exibindo, é dirigindo pelas ruas de Dubai.
Eu sempre digo que a melhor maneira para ver arquitetos famosos se exibindo, é dirigindo pelas ruas de Dubai.
MAJ: Nas últimas duas décadas, Dubai se tornou uma metáfora, uma certa tipologia de urbanismo idiossincrático; um modelo a ser seguido, a aspiração de muitas cidades do chamado "terceiro mundo", especialmente em nosso continente africano. Esta marca chamada Dubai foi adaptada para a construção de novos bairros, ou até mesmo cidades inteiras criadas a partir do zero. Em mais de uma ocasião ouvi seus promotores se referirem a elas como a "Dubai da África". Você acha esse um modelo urbano adequado para a realidade do nosso continente?
SY: Apesar de ser considerado um modelo de sucesso, Dubai possui inúmeros problemas que sugerem que este não é um modelo sustentável para uma cidade. A Dubai moderna como a conhecemos hoje é uma cidade muito jovem, de apenas algumas décadas. Na verdade é impossível avaliar o efeito daquilo que construímos antes de que ele atinja o seu inevitável ponto de inflexão. Sedo ou tarde, tudo chega ao fim. Faz já algum tempo que a cidade de Dubai está lutando para manter seu ritmo acelerado de crescimento. A habitação é um exemplo disso. A cidade já está saturada, há infinitas ofertas para uma demanda cada vez menor, milhares e milhares de moradias e apartamentos completamente vazios. Caminhando por Dubai podemos ver esta receita de sucesso transformando-se em fracasso.
O problema do modelo Dubai para a realidade africana é supor que fórmulas urbanas deste tipo são adaptáveis, e elas não são. Este modelo específico se opõem veementemente à muitas das condições essenciais pré-existentes e exclusivas da grande maioria das cidades africanas e também das pessoas que as habitam. Este modelo é insustentável para a África. As nossas cidades existentes que tem incorporado modelos parecidos de urbanização, tem forçado demais a barra somente para cumprir com os caprichos dos seus investidores. É importante lembrar que nos anos 70, antes de que qualquer tipo de construção começasse a ser feita em Dubai, isso aqui era basicamente uma página em branco; Não havia praticamente nada, nenhuma pré-existência ou nenhuma limitação aparente. As cidades africanas são completamente o oposto disso. Nossas cidades estão sobrecarregadas por um conjunto de problemas graves e específicos. Déficit habitacional, alto crescimento populacional e altos níveis de pobreza, por exemplo, não podem simplesmente ser excluídos de uma estratégia de desenvolvimento urbano e, por isso mesmo, este modelo é uma ameaça à igualdade social e a qualidade de vida em nosso continente.
MAJ: Há também uma dimensão cultural: nós, africanos, precisamos compreender as implicações culturais do modelo Dubai de urbanização e seu enorme potencial em distorcer e agravar as condições sócio-culturais pré-existentes de nossas cidade. Isso se deve ao fato de que a maioria das grandes cidades na África não são novas, elas existem há séculos. Muitas destas cidades se desenvolveram a partir de modelos específicos e exclusivos, algo que não existe em nenhum outro lugar, e que funcionavam muito bem para as nossas sociedades antes dos colonizadores chegarem e imporem suas novas maneiras de vida e ocupação. Por exemplo, pense no caso de Benin pré-colonial, no centro-oeste da Nigéria; a cidade foi tão bem projetada que, quando os portugueses pisaram lá por primeira vez em 1485, ficaram impressionados com o urbanismo fractal e o nível de sofisticação daquela cidade que passaram a incorporar aquelas estratégias em suas próprias estruturas urbanas. Recentemente, vi um esboço de Benin City feito por um soldado britânico por volta de 1897 (o mesmo ano em que as forças britânicas incendiaram a cidade), e fiquei impressionada com a simetria e regularidade da paisagem urbana e, acima de tudo, sua receptividade cultural.
Mas também é justo reconhecer que há algo interessante em alguns elementos do urbanismo de Dubai e que poderiam sim servir ao nosso continente, especialmente por se tratar de um mundo globalizado. Claro que este modelo não pode estar acima de tudo, nem deve ser visto como uma solução para nossos problemas e muito menos deve ser implantado onde já existem assentamentos urbanos prósperos e bem desenvolvidos. Seria necessário encontrar um ponto de equilíbrio.
MAJ: Considerando que você vive aqui há anos e possui uma ampla experiência profissional trabalhando na cidade Dubai, que elementos urbanísticos você acredita que poderiam ser utilizados em nosso continente?
SY: A primeira coisa que vem à minha mente é essa tentativa deliberada da cidade em preservar sua identidade. Dubai possui uma forte inclinação para o ultra-moderno e faz questão de lembrar-nos disso a todo instante. Não há como fugir, ela está por toda parte. Literalmente, é possível ver a gigantesca estrutura de aço e vidro do Burj Khalifa à 95 km de distância. Mas também há uma sobreposição entre elementos modernos e outros mais tradicionais espalhados tanto nos mais antigos distritos quanto nas áreas recentemente urbanizadas. É possível ver referências ao patrimônio histórico da cidade, quando era apenas uma pequena vila onde se mergulhava na praia em busca de pérolas. Modernas estruturas de aço e vidro decoradas com motivos naturais e padrões geométricos árabes que remontam ao começo do século.
Não é apenas um clichê utilizado em museus ou mesquitas para atrair turistas; é também uma parte genuína da grande maioria dos edifícios comerciais e cívicos de Dubai, lugares onde a vida cotidiana acontece. A cidade nunca conseguiu criar estes espaços de fato, lugares onde a vida cotidiana acontece, mas a ideia está lá. Há uma idéia de identidade sensível ao meio ambiente e à cultura daquilo que foi preservado. Isso é algo que não se pode copiar, mas que pode nos inspirar pois deve ser definido à partir do nosso próprio contexto. A maioria das grandes cidades africanas perdeu muito das suas características originais e sua identidade histórica, ou pelo menos elas não são mais percebidas em suas paisagens urbanas. Fico feliz por você ter citado Benin City porque é um ótimo exemplo de como o colonialismo achatou a maioria das abordagens vernaculares de projeto e urbanismo que até então funcionavam muito bem para as cidades africanas. Isso me faz pensar no exemplo de Dubai, que talvez a mágica esteja em algum lugar entre estas duas coisas, onde soluções vernaculares e contemporâneas coexistem em um mesmo lugar.
MAJ: Outros aspectos que na minha opinião as cidades africanas precisam ter muita cautela caso queiram incorporar em seus sistemas de planejamento urbano, são as novas tecnologias e processos automatizados; Áreas nas quais Dubai é a principal vanguarda no mundo atualmente. Venho acompanhando já há algum tempo as tendências urbanas emergentes, como a ideia de 'Transporte Autônomo de Dubai' - o plano pretende ter 25% do sistema de transporte urbano de Dubai autônomo até 2030. Esta estratégia pode funcionar bem em uma cidade como Dubai, onde praticamente não há desemprego, em contraste com a África, onde as taxas de desemprego são muito elevadas.
Tomemos o caso das duas maiores economias da África: a Nigéria e a África do Sul. Ambos países estão lutando com taxas de desemprego acima dos 20%; processos de automação em uma escalada destas certamente resultaria na perda de outros muitos postos de trabalho; agravando ainda mais uma situação que já é bastante ruim. Por outro lado, deveríamos investir alto em tecnologias de inteligência artificial para a prevenção do crime, detecção e gerenciamento de tráfego, como em Dubai. Estratégias como esta poderiam nos auxiliar a lidar com alguns dos maiores desafios que enfrentamos atualmente. Atualmente, a mão-de-obra policial na maioria das cidades africanas está sobrecarregada; Portanto, sistemas de IA poderiam auxiliar à suprir este deficit de pessoal. Ainda assim, deveríamos ser seletivos e conscientes sobre o tipo de tecnologias que gostaríamos de adotar em nosso continente.
SY: Tenho de admitir que não sou uma grande fã dos processos de automação. À medida que sistemas automatizados entram em vigor, surgem novos campos e indústrias para substituir aquelas que se tornaram obsoletas. O que me preocupa é: estamos preparados para educar a nossa população para os empregos do futuro. É preciso anteriormente investir em uma série de outras frentes para que possamos lidar com as tecnologias que estamos incorporando, para não ter que depender ainda mais daqueles que estão investindo, ou melhor, explorando o nosso continente. Eu sei muito bem como as novas tecnologias funcionam na elaboração de soluções espaciais aqui no Golfo. Mas seria muito interessante pensar em como estas novas ferramentas poderiam ser utilizadas em nossas cidades africanas. Questões como: "como estes modelos urbanos afetariam a prosperidade de nossas empresas?" Ou "como poderíamos acomodar estas novas indústrias dentro do atual plano de crescimento de nossas cidades?" Eu sei que a Cidade do Cabo já está enfrentando estas questões, criando novos ecossistemas para acolher uma série de start-ups de tecnologia e universidades. Você descobriu que existem lacunas específicas nas informações do seu trabalho quando se trata especificamente da Nigéria?
MAJ: Boa colocação. Enfrentamos um enorme desafio quanto ao acesso e disponibilização de dados na Nigéria. Ainda que, a Nigéria seja tida como um dos países africanos com uma das agências de estatísticas nacionais mais avançadas de todo o continente. O nosso instituto nacional de dados e estatísticas disponibiliza há anos dados extremamente confiáveis. Infelizmente, no nível municipal essa realidade é muito diferente; nenhuma das cidades da Nigéria atualmente é capaz de produzir dados deste tipo. Não podemos sequer saber ao certo com precisão quantas pessoas vivem nos distritos de Gwarimpa ou Maitama, em Abuja, ou em qualquer outro lugar.
É verdade que, a maioria das grande cidades do país possui suas próprias agências de Sistemas de Informações Geográficas, mas infelizmente, elas estão à serviço da administração das terras e nada mais, apesar de todo seu potencial na escala humana, de planejamento ou gerenciamento de trânsito por exemplo. No fundo, acredito que tudo isso seja um sintoma de um problema muito mais profundo - a maioria das cidades na Nigéria possui uma administração fortemente vinculada com o governo nacional e não como entidades corporativas autônomas. Consequentemente, essas cidades são incapazes de tomar suas próprias decisões e agir mais rapidamente na micro escala.
SY: Definitivamente, será interessante ver como as cidades africanas evoluem à medida que começarmos a incorporar soluções tecnológicas mais inteligentes. Estou especialmente otimista quando penso no efeito disso em combinação com o atual movimento que estamos passando, quando a grande maioria dos arquitetos africanos estão se posicionando e defendendo o planejamento urbano tradicional, vinculado ao nosso passado e a nossa herança histórica e cultural.