Pólis é uma (hipotética) metrópole costeira e tem uma população crescente. No entanto, a maior parte de sua infraestrutura foi construída 100 anos atrás e carece de manutenção, sendo incapaz de atender a necessidades futuras da cidade.
Para piorar, Pólis vive os danos causados pelo aumento das inundações e erosão das áreas costeiras. Seus habitantes, em especial os já afetados pela poluição ambiental, sofrem com o calor e a má qualidade do ar resultantes da atividade industrial e do trânsito congestionado.
A prefeita reúne os líderes dos principais departamentos municipais para entender como planejam lidar com essas questões. Todos apresentam uma solução alinhada com o objetivo de seu próprio departamento. Cada solução seria eficaz para resolver problemas específicos: o líder da Concessionária de Água propõe dutos maiores e a construção de um tanque subterrâneo para armazenar a água da chuva; o chefe da Autoridade Portuária apresenta um plano para elevar as vias da área costeira e construir um paredão; o Departamento de Transportes planeja pontos de ônibus cobertos; e o Departamento de Parques propõe novos centros de recreação que podem servir também como centros de refrigeração nos bairros.
A prefeita soma os orçamentos de cada proposta e percebe que não pode pagar por todas elas. O que ela pode fazer?
A maioria das cidades vive um desafio semelhante. A adaptação das comunidades para enfrentar os efeitos das mudanças climáticas tem um preço enorme.
Com tempestades cada vez mais intensas, temperaturas mais altas, aumento do nível do mar e incertezas sobre as condições futuras, comunidades em todo o mundo lutam para planejar e financiar melhorias de infraestrutura adequadas ao clima, especialmente porque a Covid-19 já está gerando gastos não previstos nos orçamentos. No entanto, se os diferentes departamentos municipais trabalhassem juntos em projetos integrados utilizando soluções baseadas na natureza, poderiam não só alcançar as metas de cada departamento como ajudar a comunidade local e obter mais eficiência nos custos.
Trazendo a natureza para dentro da cidade
Pesquisas mostram que soluções baseadas na natureza (também chamadas de infraestrutura “natural” ou “verde”), como árvores, zonas úmidas, parques, espaços abertos e telhados verdes, podem resolver muitos desses problemas de uma só vez. As soluções baseadas na natureza servem como infraestrutura de múltiplos benefícios e atendem às principais necessidades da comunidade, além de trazer outros cobenefícios. Árvores e plantas geram oxigênio, auxiliam no sequestro de carbono da atmosfera e podem mitigar outras formas de poluição do ar. Ao mesmo tempo, protegem ruas e parques, criam um habitat para a vida selvagem, absorvem a água da chuva, diminuem o escoamento, contribuem para a saúde mental das pessoas e muito mais.
Por exemplo, em vez de construir uma nova infraestrutura, cara e “cinza”, como dutos maiores e tanques de armazenamento subterrâneos, as empresas concessionárias de água podem investir em jardins de chuva, restauração de riachos (técnica chamada de daylighting, que consiste na recuperação de canais anteriormente enterrados em canos) e na criação de ruas verdes para coletar e reter água da chuva. Essas medidas de infraestrutura verde também atendem às necessidades de outros departamentos da cidade – como o objetivo do departamento de saúde de reduzir doenças respiratórias ou o desejo dos departamentos de transportes e educação de criar rotas seguras para caminhar até a escola, pois as ruas verdes geralmente também possuem atributos que contribuem para o tráfego mais lento.
De forma semelhante, as autoridades portuárias podem trabalhar para restaurar as áreas costeiras (living shorelines), criando pântanos e zonas úmidas para estabilizar a costa, reduzir a erosão e proteger contra tempestades, proporcionando ao mesmo tempo um habitat saudável para a vida selvagem e um espaço público e de recreação.
Construir soluções baseadas na natureza também pode sair mais barato do que o investimento em infraestrutura tradicional.
Estudos estimam que, em Los Angeles, um projeto de modernização do sistema de drenagem pluvial custaria aproximadamente US$ 44 bilhões considerando infraestrutura cinza tradicional – e apenas entre US$ 2,8 bilhões e US$ 7,4 bilhões com infraestrutura natural. Estudos na Filadélfia e Washington D.C. também reportam economias de custos semelhantes por meio de infraestrutura verde.
Além disso, uma abordagem conjunta de soluções baseadas na natureza pode ajudar a cidade de Pólis, ou qualquer outra cidade, a criar uma comunidade resiliente.
O trabalho da natureza no Parque Bishan-Ang Mo Kio, em Singapura
Por atenderem a tantas necessidades urbanas, as soluções baseadas na natureza em geral exigem um maior grau de colaboração e planejamento conjunto entre os diferentes departamentos municipais. Embora ainda existam poucos exemplos desse tipo de colaboração, ele já foi aplicado.
O Parque Bishan-Ang Mo Kio, de Singapura, é um modelo de como a colaboração entre departamentos pode criar projetos integrados de múltiplos benefícios a um custo mais baixo do que exigiria uma abordagem tradicional de investimento em infraestrutura cinza.
Décadas atrás, Singapura canalizou o rio Kallang em um canal margeado por cercas a fim de controlar as inundações e escoar as águas pluviais. O canal se tornou uma divisão simbólica e literal entre os bairros residenciais adjacentes.
Quando o canal precisou de reparos, o Conselho de Serviços Públicos (a agência nacional de água de Singapura) teve de fazer uma escolha. Poderiam reconstruir o canal de concreto existente ou considerar a opção de “naturalizar” o rio – restaurando o leito original em sua planície de inundação natural.
A naturalização do rio exigiu um trabalho em parceria com o Conselho Nacional de Parques (agência de parques de Singapura), que administrava as áreas no entorno do canal. As duas agências, com ajuda da Ramboll Studio Dreiseitl (empresa privada de design), estabeleceram uma parceria para projetar e construir um ousado projeto de “infraestrutura verde e azul” que ampliou os benefícios do canal para a comunidade, atendendo às necessidades de proteção contra inundações e melhoria da qualidade da água.
A Universidade Nacional de Singapura conduziu uma análise de custo-benefício e descobriu que a reconstrução do canal em concreto custaria cerca de US$ 94 milhões (133 milhões SGD, dólares singapurianos). A naturalização, por sua vez, custou pouco menos de US$ 50 milhões (70 milhões SGD) e ajudou a expandir e interconectar o espaço do parque. Com quase metade do custo de substituição do canal de concreto, a abordagem de trabalho conjunta, com investimento em infraestrutura natural, gera benefícios anuais estimados em US$ 74 milhões (105 milhões SGD) – mais do que paga pelo investimento realizado.
A infraestrutura verde e azul atendeu às necessidades da cidade – fornecimento confiável de água, melhoria da qualidade da água e gerenciamento de inundações –, além de criar um espaço para as pessoas e para a natureza dentro da cidade. E, como as agências trabalharam em conjunto, alcançaram esse resultado por uma fração do custo.
Ampliando infraestruturas resilientes e multifuncionais
Projetos como o do Parque Bishan-Ang Mo Kio são um excelente exemplo de como as cidades podem usar soluções baseadas na natureza para construir uma infraestrutura melhor e mais forte. Ao trabalhar em conjunto desde a identificação das necessidades da comunidade até a implementação das soluções, os departamentos municipais podem realizar projetos que cuidam do escoamento das águas pluviais, proporcionam oportunidades de recreação e educação, ajudam a amenizar as altas temperaturas nos bairros, aumentam a biodiversidade, melhoram a mobilidade e ampliam a habitação ao mesmo tempo. Precisamos de mais projetos como o Bishan Park – mas esse tipo de colaboração, envolvendo diversos departamentos, ainda é mais fácil na teoria do que na prática.
As cidades precisam de um mecanismo bem-sucedido para planejar e financiar projetos que envolvam as jurisdições de diferentes departamentos e atendam a várias necessidades da comunidade. É por isso que o WRI, em parceria com a Encourage Capital, está trabalhando para desenvolver uma estrutura chamada Autoridade de Benefícios Conjuntos. O objetivo é permitir que os departamentos de uma cidade planejem, implementem e financiem projetos transformadores como esse em conjunto, quantificando os diversos benefícios que ultrapassam os mandatos em cada órgão.
A pandemia do coronavírus mostra que muitos de nossos sistemas urbanos são frágeis. Também amplia as vulnerabilidades das comunidades mais carentes e ressalta o abismo que separa as pessoas com mais e menos recursos e acesso a oportunidades.
À medida que o mundo foca esforços na recuperação econômica – que provavelmente incluirá medidas de estímulo para substituir infraestruturas antigas –, nos vemos diante de uma escolha: simplesmente consertar os sistemas inadequados que já existem ou reconstruir melhor e com novas abordagens?
As cidades vão precisar priorizar a resiliência para prosperar. As soluções baseadas na natureza podem ajudar a construir uma infraestrutura resiliente, acessível e equitativa, mas apenas se os departamentos forem capazes de trabalhar em conjunto para o bem de suas comunidades.
Leia mais sobre a Autoridade de Benefícios Conjuntos aqui.
As projeções de custos são para fins ilustrativos. Esses números são baseados em projetos específicos na área da baía de São Francisco entre 2009 e 2020, convertidos para o valor do dólar em 2020. Fontes: tanque de águas pluviais, paredões de proteção, pontos de ônibus cobertos, centros de refrigeração, restauração de riachos(creek daylighting), restauração de áreas costeiras (living shoreline), ruas completas e verdes.
Via WRI Brasil.