Paisagem mental
O dispositivo cénico concebido para o ciclo Convidados Mortos e Vivos, no qual se inclui a peça D. João, de Molière – momento inaugural e projecto matricial –, será “palco” de diversos eventos, dos quais se destacam Fiore Nudo, espécie de ópera a partir de cenas de Don Giovanni, de Mozart/Da Ponte, sob a direcção musical de Rui Massena e a direcção cénica de Nuno M Cardoso, e a leitura encenada de Frei Luís de Sousa, a partir de Almeida Garrett, dirigida por Ricardo Pais e com música composta e interpretada ao vivo por Bernardo Sassetti.
Nesse sentido, considerou-se essencial conceber uma estrutura versátil e “aberta”, multi-funcional, susceptível de se adaptar às especificidades dramatúrgicas e/ou estilísticas das distintas representações.
No caso particular da peça D. João, o projecto cenográfico baseia-se na experimentação estilística em torno da ambiguidade de leituras e da multiplicidade de significados contidos no texto dramático. Procura-se dar forma a essa ambiguidade por meio de uma construção de carácter transitório que se transfigura consoante a evolução das personagens ou a especificidade de cada cena.
Partindo de uma construção precisa e elementar – uma plataforma regular, sobrelevada e ligeiramente inclinada, contrastando com a acentuada verticalidade da caixa de palco –, delimita-se o espaço da representação e vão-se configurando os diversos lugares onde decorre a acção.
A ideia de hibridez e precariedade, a indistinção entre vida e morte, os anacronismos e contrastes que perpassam toda a narrativa, estão também presentes na concepção do cenário. A evocação da morte é constante ao longo da peça e traduz-se no desenho geométrico da superfície do praticável, constituindo uma metáfora para o traçado repetitivo e ortogonal de um cemitério, ou ainda nos alçapões que se abrem no pavimento, como cavidades sepulcrais.
Os alçapões concentram momentos cruciais da acção, como a entrada e saída de actores, a encenação de lutas ou a representação de rituais fúnebres, e atravessam transversalmente o praticável, desenhando um longo rasgo. Este rasgo estabelece uma fractura na geometria regular do cenário e, de certa forma, desconstrói a simetria rigorosa da composição, enfatizando o desequilíbrio e a instabilidade da acção. A sensação de estranheza é ainda reforçada com a abertura dos alçapões, pela imagem dos actores reflectida (duplicada) na superfície espelhada do seu interior, ou pelo efeito sonoro resultante da amplificação e recriação dos sons produzidos pelos seus movimentos em cena.
Pretende-se, acima de tudo, prefigurar uma espécie de paisagem mental, conceber um dispositivo visível para um imaginário, e não tanto dar forma a espaços físicos concretos e reconhecíveis.
Nesse sentido, a cenografia para esse imaginário caracteriza-se por uma concepção não-naturalista, abstracta e minimal, sugerida pelas ideias de leveza e plasticidade de uma folha de papel, e consiste num dispositivo elementar, aparentemente suspenso, que se transforma e que, tal como o papel, pode ser dobrado e moldado para assumir diferentes configurações.
A reprodução da cortina da boca de cena num material transparente e semi-reflector introduz um elemento de ligeireza e permeabilidade na solidez da estrutura, e acentua a tensão entre elementos opostos ou materiais contrastantes. Partindo de um plano inicial, fixo, o cenário altera-se com sucessivos movimentos e rotações, assumindo a verticalidade de um muro/parede e o encerramento de espaços internos, ou expandindo-se horizontalmente, na forma de rampa ou pequena elevação, para evocar ambientes exteriores.
A eventual estranheza e rigidez, indiciadas pelo carácter depurado e pela precisão geométrica da composição, ou pelo tratamento textural das superfícies, vão-se dissipando e abrindo a novas leituras, com as transformações e as diversas configurações que o cenário assume.
O uso de elementos arquitectónicos reconhecíveis, como as portas ou janelas inseridas na superfície irregular do praticável, confere à estrutura um sentido de realidade, assinalado pela noção de escala, volume e profundidade.
A (re)utilização de materiais preexistentes, precários, tais como despojos de construções ou fragmentos de obras, enfatiza a ideia de transitoriedade e a ambiguidade que pontua toda a acção. Esses materiais, descontextualizados e destituídos da sua conotação material e simbólica, adquirem um valor essencialmente plástico, e nessa medida neutralizam os espaços, disponibilizando-os para apropriações diversas.
Com a utilização destes elementos não se pretende, porém, figurar um arquétipo arquitectónico, mas explorar a ambiguidade disciplinar do território cenográfico, articulando as referências da arquitectura com um propósito conceptual de instalação.
O dispositivo criado para a cenografia da peça D. João constitui-se, assim, como um objecto-território susceptível de múltiplas modelações, onde se acumulam acontecimentos e significados que qualificam e identificam possíveis lugares.