Tudo acontece e nada é lembrado naqueles gabinetes de vidro onde, como fantásticos rabinos, lemos os livros da direita para a esquerda JLB
RETIRO DO ESPELHO SEU RETRATO VIVO
Entro no projeto com metáforas, talvez porque foi a primeira maneira que o homem primitivo comunicou-se, depois que derruba o animal e começa a ser simbólico. Isso que não sei bem o que é, esconde uma clínica de reprodução assistida. Reprodução. Onde a ideia tem mais valor que o conteúdo; o significado como principio construtivo. O reflexo como metáfora da reprodução. Borges, que os odiava, haveria dito: “os espelhos e a paternidade são abomináveis porque o multiplicam e o divulgam”.
Desde “a disciplina” existe a tentação de classificá-la como minimalista, ou barroca. É ambas, ao mesmo tempo. Coincidindo com essa definição de JLB, onde expressa: barroco é aquele estilo que, deliberadamente, esgota, ou quer esgotar, suas possibilidades, e que faz fronteira com sua própria caricatura. Diante desse ponto de vista, minimalismo e barroco são o mesmo, um por abundância, e outro por escassez, levando suas possibilidades ao limite. Esse é o olhar que me interessa na hora de analisar um trabalho, onde a forma é consequência da interpretação. Sigo pensando que arquiteto é aquele que interpreta, não quem constrói.
A pergunta que inevitavelmente surge é: que coisa é esta? É arquitetura? E, que coisa é isso que hoje chamamos de arquitetura? Ainda é definida do mesmo jeito? É o que era?
Uma arquitetura incapaz de deixar uma marca ou um rastro para poder reconstruir um passado. É arquitetura? Uma obra que não tem forma, que não se preocupa com a distribuição dos pesos nem com os percursos, nem com a sombra, somente dedica-se a assombrar, a ignorar a gravidade. Sua imagem é exibida inabitável, um espaço impossível de reflexos. E ainda que reflita, não é um espelho, ainda que olhe e seja olhada, não reproduz: interpreta. Imaterial, comporta-se como os líquidos que refletem imagens imperfeitas, uma arquitetura líquida. Só uma ilusão, como a que tem os que vêm a esse lugar: uma clinica de fertilidade assistida. Nada indica que é habitável, não há portas, janelas, beiral, tudo isso que diferencia a arquitetura de uma escultura ou um monumento. Estes (os monumentos) apelam à lembrança, já o espelho não tem memoria, sua imagem muda constantemente, é incapaz de reter uma lembrança. Inquieta a metade da quadra, não ampara, surpreende. É contextualizada em qualquer meio, despreza o conceito de lugar, ainda que viva neste, o consome, poderia estar em qualquer parte, em Veneza, em Nova York, em uma favela, e sempre estará narrando de outra maneira o que acontece ao redor para dizer outra coisa, não o que é e o que acontece em seu interior, nem sua história, mas dizer de onde vem. A arquitetura sempre diz em sua linguagem quem é: sou uma casa, um edifício, uma prisão, uma escola…etc. Esta obra interpreta o que sucede ao seu redor de outra maneira, e vê como isto a transforma… Não copia a realidade, a perturba, zomba dela. É um parasita que consome imagens. Assim, como a arquitetura é o reflexo da sociedade que abriga, reflexo de seu passado, a fachada atua de maneira inversa, é o reflexo do que acontece ao seu redor e, sempre, no presente. Não é um substantivo, é verbal. Não está nem no tempo, nem no espaço, que prolonga em vão uma realidade incerta. A imagem que nela aparece é a realidade de um mundo irreal, contraditório. Não busca, se encontra, como esse espermatozoide formado pelo reflexo da luz da rua, uma casualidade.
Está materializada, não com a perfeição do aço usa no primeiro mundo. Busca a imperfeição, um jorro de imagens distorcidas, movimentos imperfeitos, como os humanos, que pretende gerar.
“O ser humano…é somente um ponto invisível em uma encruzilhada: um artista dos espelhos…” JLB
Não é presença como a arquitetura, mostra-se ausente, existe somente através do outro. Um parasita que se alimenta de sucessos. Insubstancial, imaterial, só realiza a si mesmo com verbos, ações, e não com construções materiais. Tal como é a cidade.
Sem data, incapaz de agarrar o passado, mas se inclina, inutilmente, para capturar, por um instante, um futuro imperfeito, que não poderá abrigar…Não como uma estrutura completamente realizada, que serve de suporte ou base para os organismos, mas como um sucesso permanente em via de acontecer, como uma origem que, continuamente, se origina; filosofar significa reconhecer essências somente no sentido que Heidegger adota a Wesen (sendo) em alemão, não como substantivo, mas como um infinitivo verbal…..como Quetglas o disse.
Paradoxalmente, entre os metais, há os com memória e sem memória. O cobre, por exemplo, não tem memória, se é dobrado não volta ao estado original, o aço inoxidável sim. No entanto, esta fachada não tem memória, não relembra um estilo, um modo de fazer, uma época, ou nos comenta sua utilidade. É somente espetáculo. Sem memória, perde-se na continuidade do significado, da linguagem, do Juízo. Recolhe os acontecimentos só para esquecê-los. Pobre em sua riqueza.
Não é só uma imagem de si mesma como a arquitetura. A fachada escapa de sua rede conceitual para ser com os demais, e não para ser como os demais. Volto a importunar Borges: “Inifinitos os vejo, elementares, executores de um antigo pacto: multiplicar o mundo como ato generativo, insone e fatal”. Perturbadora do limite, um vazio temperamental, repetições, ambivalência.
Como um horizonte vertical que divide o terreno do divino, ou o real da fantasia.
Trata-se de recuperar a tradição de um modo desviado, deformado, para por em evidencia que este é outro tempo, outro espaço, e por tanto deveria ter outra linguagem, outra sintaxe, colocando em evidencia a interrupção do relato histórico. Ou pelo menos, tirá-lo do papel das interpretações, para transformá-lo em um conto “insignificante”.
Contra o transcendente e o profundo da arquitetura. Refletindo a natureza física de seu meio à sua natureza antológica apoiada em uma superfície plana, com uma profundidade aparente, colocando em evidencia o funcionamento superficial da linguagem. Aqui não há nada, só aparências, imagens. Buscando destruir o laço existencial que ata o mundo natural e a obra arquitetônica.
PD: Neste trabalho, interessa-me falar sobre o contato do privado com o urbano.
A entrada surge quando um módulo da frente é empurrado para trás, abrindo um vão que permite entrar ou sair. Ou seja, é o verbo, entrar, sair, fechar, abrir, e não o substantivo porta. Em todos meus projetos, interessa-me esse espaço que une o privado com o público.
Texto original de Rafael Iglesias