Precedentes
O Cemitério Israelita da Bahia está situado na encosta nordeste da Colina da Baixa de Quintas,em Salvador. Possui um terreno de forma elíptica, com área aproximada de 5600,00m2 e perfil em declive acentuado, que se abre para a Praça Rubin Miller, local que conecta o complexo de cemitérios municipais servindo de estacionamento e circulação aos visitantes.
Em aproximadamente oitenta anos de existência, o Cemitério teve metade do seu terreno ocupado e a única modificação significativa em relação à estrutura de apoio original, composta por uma pequena casa, foi o acréscimo de um pavilhão específico para o velório (projetado por Lelé na década de oitenta).
Considerando que o trecho inicialmente utilizado do terreno está prestes a esgotar sua capacidade de sepultamentos e que o anexo construído há quase trinta anos nunca chegou a dar conforto real para a realização dos serviços funerários (preparação do corpo, velório e sepultamento), a Sociedade Israelita da Bahia decidiu realizar um plano para ocupação do terreno ocioso e reforma das instalações do Cemitério, preparando-o para o futuro.
Em paralelo, foi proposta à Comunidade a doação de um Memorial do Holocausto, uma intervenção que pudesse preencher algumas lacunas funcionais do campo santo. Primeiro, marcar o início da nova ocupação como um elemento de caráter diferenciado; Segundo, dar aos visitantes um lugar para orar, lembrar e meditar, compondo assim o inexistente programa litúrgico do Cemitério; Terceiro, memorializar um evento importante dentro da história judaica, cumprindo também uma função educativa, à medida que o local permanece aberto à visitação pública. Tanto o Memorial como o primeiro lote das obras previstas no plano foram custeados pela Família Zausner, que esteve intensamente envolvida na idealização dos planos de reforma e cujos patriarcas, Mania e Rubin Zausner eram sobreviventes da Segunda Guerra.
Projeto
A primeira etapa do plano foi concluída em julho de 2007, o que consistiu na execução de uma nova entrada principal, na reforma e ampliação do pavilhão do velório, em melhorias na rampa de acesso à parte velha do Cemitério, na execução de nova pavimentação, em serviços de infra-estrutura e construção de uma nova pia para o netilat iadaim[1], além da construção do Memorial do Holocausto, propriamente dito.
O novo prédio respeitou a premissa de organizar o Cemitério para sua ampliação, conectando-se ao novo portão e aos espaços anexos ao velório, tornando-se assim um elemento de composição do núcleo básico de recepção e permanência dos usuários durante os serviços religiosos.
Mesmo ligado ao programa existente, o prédio busca maior privacidade ao afastar-se ligeiramente, implantando-se num ponto menos acidentado do terreno, rodeado pelo verde existente. O edifício orienta-se a leste, fazendo com que o usuário reze na direção de Jerusalém, conforme uma tradição trazida da sinagoga.
O Memorial busca a inspiração de suas formas na palavra “chai” – vida em hebraico – compreendendo que a lembrança tanto dos que se foram como daqueles que estão entre nós faz-se através da recapitulação de suas vidas, suas ações e seu legado. Não à toa, chamamos o cemitério, em hebraico, de Beit HaChayim, Casa da Vida.
A partir disto, o projeto procura criar um espaço forjado pelas nuances da luz natural, utilizando o concreto aparente, brutal e imperfeito, para sugerir a aspereza da experiência vivida pelos mortos e sobreviventes da shoah.[2]
O volume principal é um cubo com lado igual a quatro metros, fechado de maneira parcial em três lados e aberto ao cemitério na fachada oeste, através de um pórtico que enfatiza a relação entre símbolo e forma. A cobertura é uma laje de concreto com perfil curvo e inclinado, que se pronuncia num balanço de gesto ascendente, de busca pelo sagrado, que marca a fachada “ritual”, a leste, desenhando também o “chai” na fachada norte. Um vazio caracteriza a relação entre o plano da laje e o muro leste ritual, permitindo a entrada da luz “divina” no interior e dramatizando o balanço da estrutura.
No interior, o espaço define-se pela presença de um banco e de uma caixa construída com chapa metálica grossa, para o acendimento das velas, um costume que representa lembrança e homenagem dentro do judaísmo. Além destes elementos, está presente o ner tamid, uma luz sempre acesa que simboliza a aliança entre Deus e os judeus, também uma peça customizada de serralheria.
A intenção no espaço interno foi criar uma relação controlada com o contexto, capaz de isolar o indivíduo para um momento de tranqüilidade, mas mantendo ao mesmo tempo a conexão com a vegetação e com a brisa, muito agradável no alto da colina e importante no clima quente de Salvador. Para tanto, um dos recursos utilizados foi a colocação de brises pré-moldados em concreto, organizados em várias direções.
O piso moldado in loco é de gravilhão lavado, uma superfície única que estabelece a continuidade com o exterior. Neste sentido, o projeto procura uma relação complementar entre dentro e fora, através do diálogo com o gramado, com as árvores existentes e com seis bancos (“túmulos”) e seis pilares que representam os seis milhões de judeus mortos durante a Guerra.
O jardim de concreto formado na entrada do Memorial é também um espaço de convivência e permanência, configurando a conexão com a ampliação do Cemitério.
Segunda obra do gênero no país, o Memorial do Holocausto em Salvador nasce a partir dos valores do próprio judaísmo, tentando traduzir em espaço arquitetônico as expectativas de renovação da religião e da própria comunidade. Sessenta anos após a Guerra, acreditamos que lembrar o Holocausto é preciso. É necessário, no entanto, que a memória junte-se à reflexão, num processo capaz de promover tolerância e paz. Quem sabe o futuro assim possa ser menos cinza e áspero.
[1] “Lavagem das Mãos”. Antes de deixar qualquer Cemitério Judaico é tradição lavar as mãos. O contato com a água, para além do aspecto higiênico, lembra a vida.
[2] Holocausto, em Hebraico.