Primeiro Lugar no Concurso Re-Perimetral / Beni Barzellai, Ana Altberg, Manuela Müller e Mariana Meneguetti

Publicamos a seguir o projeto vencedor do Concurso de Ideias Re-Perimetral, organizado pela Universidade PUC Rio. A competição propunha pensar a transformação do Rio a partir da demolição do Elevado da Perimetral, um ícone viário que por décadas separou o centro da cidade da Baia de Guanabara.

Veja a seguir imagens e a descrição por parte dos autores do projeto.

1. Elevado da Perimetral

Esta via expressa foi criada para tornar mais eficiente o fluxo de entrada e saída do município. O elevado conectava o Aterro do Flamego, a Avenida Brasil, a Ponte Rio-Niterói, os aeroportos e a Linha Vermelha, sem que fosse preciso penetrar no denso tecido urbano do Centro da cidade. Esta grande infraestrutura viária, que teve seu primeiro trecho construído na década de 1960, começou a ser desmobilizada em outubro de 2013.

Enraizada na ideia de progresso - paradigma modernista – sua construção foi uma ruptura radical naquele espaço urbano, apagando edifícios pré-existentes como o Mercado Municipal. Este novo elemento estranho percorria o Centro pelo alto e foi sendo incorporado às dinâmicas da micro à macro escala. Tornou-se uma artéria estruturante para a mobilidade da metrópole.

Demolição do Mercado Municipal do Rio de Janeiro, 1963.. Image © Cortesia da equipe

Seu final é irreversível e justificado por uma grande reforma na Zona Portuária, que tem como objetivo anunciado reaproximar a cidade da Baía de Guanabara. Com isto, a Prefeitura visa revalorizar a área que, estaria em abondono por décadas. O novo marco reestrutura o transporte da região, a partir da via Binário, da criação de um VLT e de um grande “boulevard de pedestres”.

De acordo com o projeto Porto Maravilha, em poucos anos, o gabarito desta região aumentará consideravelmente. No lugar onde hoje existem galpões industrias abandonados ou subutilizados, também haverá torres com até 50 pavimentos.

Enquanto se retira a Perimetral em nome de uma “cidade para pedestres”, os prédios construídos no local seguirão padrões convencionais de 2 vagas para cada unidade comercial, ou seja, um prédio de 50 andares demandará entorno de 6 andares de garagem. Ainda sem uma cota para habitação, o Porto Maravilha se tornará um grande centro empresarial, uma vez que edifícios corporativos são muito mais lucrativos para as construtoras do que o uso residencial ou misto. Sem vida noturna e com alguns pavimentos de garagem a partir do térreo, é difícil imaginar uma cidade para pedestres neste local.

2. Contexto

A cidade do Rio de Janeiro vive um ritmo frenético de transformações, impulsionado pelos grandes eventos esportivos que se aproximam: Copa do Mundo FIFA 2014 e Jogos Olímpicos Rio 2016.

A legibilidade de um planejamento urbano é nebulosa para a maioria dos habitantes. Falho, desorganizado e inconsistente, do ponto de vista urbanístico, este processo é regido por forças políticas e econômicas concretas, como as parcerias público-privadas (PPPs) que associam as três esferas de governo às grandes construtoras. O exemplo do consórcio Rio Mais, criado para o Parque Olímpico da Barra, demonstra que o poder público se encontra mais alinhado aos interesses privados do que aos coletivos. Grandes empreendimentos são estimulados em detrimento da manutenção da comunidade pré-existente da Vila Autódromo.

Por trás de termos aparentemente neutros como revitalização, reurbanização e reforma, o Rio segue um padrão de cidade empresa, atraindo investimentos pontuais ao invés de operar na cidade como uma rede.

"They Live" de John Carpenter, 1988. Filme que critica as formas de controle da metrópole.. Image © Cortesia da equipe

3. Condição psicológica

A cidade cresce baseada num modelo urbano descontínuo, as atuais reformas são fadadas à obsolescência: uma autodestruição programada. Assim, o futuro segue negando o passado e o momento presente se torna uma grande lacuna.

Com o fim da Perimetral, a cidade processa um novo trauma. Nos deparamos com a fragilidade de nosso tecido urbano e seu planejamento precário: deslocamentos, remoções, desapropriações, demolições e grandes congestionamentos geram uma atmosfera caótica.

O atual momento de transição produz uma condição psicológica específica no Rio de Janeiro, que é tomado por sentimentos de ansiedade, revolta, perplexidade, euforia, apreensão, incerteza e insegurança. Estas sensações fragmentadas estão mais latentes desde a onda de manifestações iniciadas no Brasil, em junho de 2013, acompanhadas de grande repressão policial.

O estado de inquietação e aceleração psíquica global é potencializado pelos novos meios de comunicação virtuais e pelos incessantes deslocamentos cotidianos na metrópole. Os espaços de privacidade e liberdade são cada vez mais restritos num mundo hiperconectado onde os indivíduos são constantemente observados e atravessados por diversos estímulos.

Sobrecarregados por esta conjuntura de patologias urbanas, os indivíduos precisam de alternativas para se suspender desse circuito em colapso.

Demolição da Perimetral, 2013.. Image © Cortesia da equipe

4. Paralisia

O projeto parte de uma inversão da atual lógica urbana do Rio de Janeiro. Propõe-se a sensação de letargia como contraponto à experiência acelerada e funcionalista da cidade.

Infraestruturas elevadas de atravessamento para pedestres são espalhadas ao longo das vias expressas e entroncamentos da cidade. Estas estruturas são criadas a partir das vigas de aço corten - elemento primário do projeto – e possuem altas paredes a fim de isolar o ambiente de seu contexto urbano. A proposta tem caráter dicotômico: apesar de se apresentar como uma passarela - um rápido atravessamento -, não visa à otimização de um trajeto, e sim retardar o movimento e estimular a permanência, transcendendo, portanto, a mera função de passagem.

A eliminação do elevado repercute na mobilidade de toda a cidade. Assim, a intervenção proposta espalha-se por todo o município como estilhaços da perimetral. As vigas são deslocadas da função de sustentação de um fluxo expresso e pontual, para propagar, em rede, a sensação de desaceleração pelo território.

Propagação das vigas pelas vias expressas da cidade.. Image © Cortesia da equipe

5. Rudimentos

Com a extinção da Perimetral, o valor de ruína é agregado às suas vigas. A ruína “historiciza” e enterra o objeto no tempo, é o testemunho e o fragmento de um mundo que não existe mais. A beleza romântica das ruínas está no espaço intermediário que elas ocupam, o hiato entre a memória de um mundo que se foi e seu registro - a existência concreta do objeto.

O projeto assume o módulo da viga (40m x 1,65m) como elemento primário. Sua multiplicação - encaixe entre eles a partir do ângulo de noventa graus - possibilita diversas combinações, desdobrando-se em múltiplas formas. Os rudimentos são o sistema resultante dessa equação. Diante das inúmeras hipóteses, quatro estudos de caso foram elaborados, em forma de linha, cruz, quadrado e labirinto, localizados respectivamente na Avenida Brasil (Ramos/Maré), Avenida Presidente Vargas (Cidade Nova), Linha Amarela (Del Castilho) e Avenida Ayrton Senna (Jacarépagua). Os contextos foram escolhidos de acordo com o significado atribuído para cada forma. Matérias-brutas elementares como água, terra, areia e pedra são agregados às estruturas rudimentares a fim de reforçar o estado de elevação de um ambiente urbano efêmero e circunstancial. Neste local, a experiência é outra: o projeto se associa à escala das dinâmicas geológicas milenares, aos lentos processos de erosão e sedimentação.

Desacelerar a experiência urbana, arrastar o passar do tempo e transformar a percepção do que se vive. Ao subir nas passarelas, o pé sai do ritmo rápido do asfalto, para adentrar num ritmo condicionado pela densidade e irregularidade destes solos.

Os inúmeros processamentos industriais e tecnológicos nos distanciam destas quatro matérias primárias, até hoje essenciais para a arquitetura. Os rudimentos vêm lembrar de uma condição humana básica, agregando forças elementares da natureza à experiência metropolitana. Um solo suspenso e indefinido é criado, lá a experiência urbana se amplifica em outro tempo e outro espaço, onde talvez encontre raízes. 

© Cortesia da equipe

LINHA DE FUGA

© Cortesia da equipe

Visitava aquele lugar suspenso para encontrá-lo num bairro dividido pelas avenidas de intenso trafego. Morávamos cada um de um lado. Dentro, sentia a água subir pelo meu corpo lentamente. A densidade da agua subtraia o peso do mundo externo.

Não havia correnteza naquele espaço. As pessoas pareciam se encontrar ali, sem pressa de sair. Era uma terça no meio do semestre, mas parecia férias escolares, o tempo se estendia e eu adiava sempre mais um pouco o horário para ficarmos juntos. Nesses encontros, afundávamos a cabeça para cessar a sonoridade externa, nos comunicando por mímicas, num silencio total.

O calor do asfalto parecia penetrar pelo piso metálico do ônibus e envolver o corpo dos passageiros numa sauna úmida. Aquele trajeto se tornara insuportável. Minha vontade era de sair correndo, cada vez mais irritado, me sentindo preso àquela situação.

Uma grande estrutura de aço suspensa na avenida me paralisa. De tempos em tempos, alguém sobe e some atrás da barra metálica. Observo, à espera de que alguém apareça do outro lado. Ninguém volta e tenho a impressão de ouvir longínquos barulhos de água. 

ENCRUZINHADA

© Cortesia da equipe

Duas passarelas se cruzam sobre uma grande avenida, formando uma cruz grega. Em cada uma das quatro pontas há uma escada.

Um homem sobe com pressa e ao chegar, se depara com um caminho coberto por pedras. Ele segue se equilibrando e se perde na lembrança de cachoeiras que visitava quando era pequeno. Próximo ao entroncamento, coloca sua mochila no chão, abaixa e tira uma lata de spray de tinta. Começa a pichar letras e símbolos indecifráveis. Costuma sentir uma forte adrenalina, mas naquela passarela se sente livre do excesso de vigilância urbana.

Uma mulher salta de um taxi, acende um cigarro e sobe uma outra escada. Ela usa um traje formal e caminha cuidadosamente por entre as pedras, na direção de um prédio que já não consegue enxergar. Uma criança passa correndo por ela, respingando seu sorvete, deixando um rastro de gotas vermelhas.

Perto do centro da encruzilhada, vê um homem pichando a parede enferrujada e se sente extremamente vulnerável. Antes que ele a perceba, ela recolhe discretamente uma pedra do chão, caso precise se defender.

O homem continua concentrado entre o spray de tinta e suas memórias de infância. Sente uma forte presença, vira o rosto e os olhares se encontram. Ela repara nos seus olhos azuis. Por um longo momento se encaram. Ela relaxa o braço, e deixa a pedra cair. O barulho interrompe o elo estabelecido entre seus olhares.

CERCO

© Cortesia da equipe

Elevada sobre uma avenida de fluxo intenso, uma estrutura quadrada forma um percurso contínuo. Duas escadas levam ao caminho, que contorna um grande vazio inacessível, desviando de um trajeto objetivo. Há décadas, uma passarela tombou neste lugar, deixando cinco mortos.

Uma senhora de preto, viúva de um dos mortos no acidente, chega pela escada norte. Ela vem semanalmente, de manhã bem cedo, prestar homenagens ao marido. No caminho compra flores brancas e ao chegar, tira os sapatos para sentir seus pés afundarem na areia. Como sempre, segue à esquerda, em direção à parede onde escreveu o nome de seu marido. Face ao vazio oculto entre as passarelas, ajoelha-se, deposita as flores brancas no chão e mergulha no universo de suas preces.

Um senhor de cabelos brancos sobe a escada sul. Ao chegar, segue à sua esquerda, encontrando um corredor vazio, onde decide sentar e aproveitar o silêncio. Ele apoia as costas na parede, encarando o grande vazio que não consegue enxergar.

Não chove há semanas e o céu finalmente amanheceu carregado. No interior das passarelas, vê-se apenas céu, areia e altas paredes de aço. Com um vento forte, um nevoeiro de areia se ergue, percorrendo toda a estrutura num movimento circular.

Durante seu ritual, a senhora é aos poucos perturbada pela fina areia que atinge seu rosto de maneira cortante. Lentamente se levanta e vira à direita. O senhor do outro lado, também incomodado, caminha no mesmo sentido. Por uma fração de segundos, não se encontram no mesmo corredor. Antes que alcance as flores, já quase cobertas, ela desaparece na próxima esquina.

LABIRINTO

© Cortesia da equipe

Percorria todos os dias um descampado onde as distâncias pareciam infinitas na aflição da minha pressa. Rodovias eram construídas em grande velocidade e empreendimentos avançavam nos vazios expostos, onde antes havia um pântano. As vias expressas reforçavam o meu isolamento, na minha própria cidade.

Correndo, decido atravessar uma grande estrutura metálica. Ao subir alguns degraus, percebo resíduos de terra e ao chegar ao topo, encontro uma bifurcação. Meu celular fica sem sinal. Nesse espaço não há vistas externas. Sinto em meus pés a textura da terra, seu cheiro e o som abafado se proliferam à minha frente, retardando meus movimentos. A cada passo lento, me deparo com novas possibilidades. Aos poucos, aquela terra foi se transformando em mata fechada e me encontrei imerso nas minhas próprias imagens ilusórias. Conheci um senhor que vive aqui. “Aquilo não é vida”, dizia ao se referir à jornada de trabalho. Ele parecia estar sempre num estado meditativo. Nesse dia, me contou que era ele quem deixava os caminhos do labirinto abertos, arrancando os galhos e o mato com as próprias mãos.

Desorientado, avisto ao longo uma luz forte vinda de uma das paredes. Me aproximo e ouço um barulho agudo de buzina se dissipando na minha direção. Olho a hora e vejo que nenhum minuto se passou. Desço os degraus e reparo numa charrete que, pelo acostamento, supera a velocidade dos carros. 

© Cortesia da equipe

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Cita: Romullo Baratto. "Primeiro Lugar no Concurso Re-Perimetral / Beni Barzellai, Ana Altberg, Manuela Müller e Mariana Meneguetti" 11 Mai 2014. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/601554/primeiro-lugar-no-concurso-re-perimetral-beni-barzellai-ana-altberg-manuela-muller-e-mariana-meneguetti> ISSN 0719-8906

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