- Área: 2124 m²
- Ano: 2015
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Fotografias:Diogo Nunes, Stefano Serventi
Paisagem como Arquitetura
A partir das obras de João Gomes da Silva e Paulo David
Texto cortesia do curador da exposição Nuno Crespo.
Esta exposição tem uma natureza dupla. É sobre dois autores – João Gomes da Silva e Paulo David – e duas disciplinas, e desenvolve-se entre duas geografias distintas: a Ilha da Madeira e a cidade de Lisboa. Mas esta exposição não é sobre a história da relação entre os dois arquitectos, mas parte das suas colaborações como núcleo central e, depois, desenvolve-se para outros projectos individuais, outras geografias e outros tempos. Não se trata de uma exposição sobre uma história comum, mas de um percurso que, partindo de um núcleo comum de trabalhos, segue depois outras derivações. De uma forma mais ambiciosa e abrangente, Paisagem como Arquitetura é, sobretudo, uma provocação para reflectir acerca da relação complexa entre paisagem e arquitectura.
Os projectos apresentados não seguem nenhum princípio cronológico, mas surgem devido ao modo como desenvolvem temas determinantes para nos aproximarmos da possível relação entre arquitectura e paisagem que a obra dos dois arquitectos propõe, a qual não se pretende simplificar, mas assumir, na sua amplitude e problematicidade. Não há qualquer tentação de fechar conceitos ou avançar com princípios disciplinares ou programáticos, até porque sabemos que a profundidade do tema da paisagem obrigaria a recorrer não só à arquitectura, mas também a convocar muitas outras artes para, com a devida justiça e rigor, se poder enquadrar a ideia de paisagem, apresentando-a na sua dimensão de coisa construída, fabricada, originada pelo homem.
Paisagem é o lugar de uma tensão ou, se se preferir, de um conflito, um conflito antigo e originário ainda presente em todos os gestos humanos que ambicionam criar forma e fabricar sentido. A um certo nível, esse conflito dá-se entre a razão e a natureza e pode ser entendido como uma espécie de polaridade básica e constitutiva entre forma e matéria, lógico e empírico ou, mesmo, entre ideia e construção. Natureza significa aqueles aspectos, muitas vezes paradoxais e confusos, do real que resistem à vontade humana de ordem e aos seus desejos de impor uma forma ao mundo. A narrativa moderna, crente no progresso e nas forças produtivas humanas, acreditou que as resistências da matéria empírica do mundo, e com elas a natureza, deveriam ser ultrapassadas, superadas e integradas numa dialéctica na qual o homem seria sempre o elemento dominador e vencedor. E é no centro destas tensões que esta exposição se coloca.
Não se trata de criar uma hierarquia ou de traçar um percurso entre os diferentes entendimentos das estruturas materiais arquitectónicas enquanto monumentos, funções ou natureza, mas de abordar a possibilidade de ser a própria natureza o guia da arquitectura. Uma possibilidade que não implica esquecer as diferentes racionalidades, exigências técnicas e funcionais que a disciplina da arquitectura comporta, nem tão-pouco propor a possibilidade de uma arquitectura que, como diz Rosario Assunto em Natureza e Razão, reproduz mimeticamente a natureza, mas criticamente pensar num modo de agir que não se guia pela beleza das formas puras, geométricas e ideais, mas tem na natureza o seu lugar de partida e chegada.
Natureza não é sinónimo de natural ou de biologia, mas surge enquanto geografia, território, história, cultura, etc. E é esta natureza que as obras de João Gomes da Silva e Paulo David convocam, no sentido de os seus gestos, tornados forma e matéria no espaço, serem formas de compreender o mundo, ler o território e pensar a história, arquitecturas que não ambicionam impor objectos ao mundo, mas viver numa espécie de trama entre a construção humana (racional, lógica, geométrica) e a espontaneidade da natureza (irracional, espontânea e sensual).
Mas esta exposição não se encerra na ideia de paisagem e nas suas questões, mas interroga também as modalidades, materialidades e conceitos com que se constrói um lugar, como se, através das colaborações e projectos destes dois arquitectos, se quisesse responder à pergunta: como se constrói esta espécie de lugares que parecem sempre terem existido? e que, aparentemente imunes à passagem do tempo, não nos permitem adivinhar a sua génese ou genealogia: lugares sem tempo, aparentando ter existido sempre aí e em que a sua antiguidade é o seu futuro. Como imaginar a Calheta na Madeira sem a Casa das Mudas, em que cada volume, janela e matéria são uma parte integrante daquela encosta junto ao mar? Ou pensar na Ribeira das Naus em Lisboa como não tendo sido sempre assim? É interessante perceber a maneira como, nestes dois projectos, é accionada uma estratégia de revelar o que, num território, se esconde nas suas camadas mais profundas. A esta luz, a arquitectura surge como modo de criticamente recuperar – activando, tornando presente, actuante e pertinente – qualquer coisa anteriormente existente. Não se trata de eleger a ideia de antiguidade como valor principal, mas de enfrentar a arquitectura a partir da ideia de pertença: arquitectura que não parte do desejo de invenção formal ou tecnológica, mas a partir do sentimento de pertença, ou seja, a sua interrogação original é sobre o que pertence a um sítio; por isso, como escreve Álvaro Siza Vieira, a arquitectura nunca é inteiramente livre porque há sempre alguma coisa – mesmo no meio do deserto do Sahara – que obriga a adiar a prova da sua Grande Liberdade e seguir uma outra direcção: o turbante de um nómada, uma moeda de oiro ou um desenho gravado numa gruta.
Apesar de a questão do lugar não ser inédita, ela torna-se pertinente no nosso tempo por estarmos sujeitos, todos nós, ao sentimento intenso de já não termos um lugar. Não se trata de uma forma de nostalgia ou melancolia, mas de abordar criticamente a ideia (estranha) de lugar genérico e da necessidade, que as obras destes dois arquitectos tão bem expressam, de cruzar o lugar geográfico com a história e a cultura.
Sublinhe-se ainda o modo como a questão da representação da arquitectura surge através da colocação em confronto de diferentes modos de representar um espaço, um lugar e uma geografia: fragmentos materiais, desenhos técnicos, modelos maquetizados, fotografias, desenhos, palavras. Um labirinto de elementos onde se cruzam geografias pessoais, culturais, históricas e disciplinares, que se prolonga nos vídeos e nas fotografias inéditos de Nuno Cera. As imagens (fixas ou em movimento) surgem como bloco de apontamentos onde as diferentes texturas e intensidades da arquitectura e da paisagem tomam forma e corpo. Não se trata de fotografias de arquitectura no sentido mais heterodoxo, mas de aproximações subjectivas, plásticas e poéticas, à unidade entre forma, matéria, desejo e lugar que faz da arquitectura uma paisagem.