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Arquitetos: Carlos Castanheira, Clara Bastai
- Ano: 2015
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Fotografias:Fernando Guerra | FG+SG
Com o SAGRADO …. não se brinca.
Ouvi dizer, e é verdade.
Julguei que conhecia a Sé Catedral do Porto. No primeiro ano de arquitectura fomos até lá para desenhar. Por fora, por dentro. O pior foi o Claustro, cheio de geometria, imensas perspectivas. Nada que se compare com o Claustro do Mosteiro da Serra do Pilar, redondo, de perspectivas impossíveis, também tarefa de Escola.
Serviu-nos para pegar no gosto pelo desenho. Gosto e necessidade. O desenho é sempre uma bengala de apoio para as ideias, teste das mesmas e, tantas vezes, experiência de recusa. Um dos professores era o Grade, o Zé Grade, que morava e ainda mora ali, na casa mais antiga do Porto, pelo menos a fachada, no Beco dos Redemoinhos. Foi também ali que recebemos a má notícia de um colega nosso. Ficou sempre na memória, pelo menos na minha. Voltei outras vezes, aos sábados, à Feira de Vandoma, como turista ou a acompanhar turistas, e a visitar a Casa dos Vinte e Quatro, do Fernando Távora, também professor nesse ano. Nunca mais para desenhar. Pena, porque o sítio merece.
Quando o Cabido da Sé me chamou, entrei pela porta principal, camuflada, em obras de restauro. Absorvi a escuridão e luz da Nave, passei ao Claustro, visitei Capelas, entrei na Sacristia: a grandiosidade, os arcazes, os frescos esbatidos, a luz. A passadeira vermelha, desnecessária. Que me querem? Receoso. Abriu-se uma porta e, sem sair da Sé, passamos a outro mundo. Um mundo que me pareceu rural, mas rural de má qualidade, decrépito.
Entre o volume da Igreja, da Sacristia, Beco dos Redemoinhos, Museu Guerra Junqueiro e Edifício do Coro, existe outro mundo. Um mundo de várias construções, de sucessivas reconstruções e a forte presença das obras de recuperação dos Edifícios e Monumentos Nacionais, iniciadas em 1927 pelo Estado Novo e concluídas em 1939. Foi Sacristia, a velha, pátio. Foi Tesouro da Sé e já não é. É Claustra Velha, que é mais recente que o Claustro e de velha ganhou o nome. Os espaços são labirínticos, caóticos, cheios, desarrumados, improvisados. São apoio e armazém das mais incríveis coisas. Coisas boas, de séculos, com plásticos obsoletos, desenquadrados.
Depois de deambular por ali, perdido, subi por uma escada bichada de tempo, por detrás ao órgão. Dali ao varandim, de guarda pequena para acentuar a escala, aos frescos do Nicolau, o Nasoni. Malandro que, sem que vissem, grafitou nome e dizeres, marcando território. A vista é magnífica, inesperada. Subi ao Tesouro, andei pela cobertura do Claustro, trepei à cobertura da Sacristia para ver melhor e tentar perceber. As dificuldades multiplicam-se. Afinal não conhecia a Sé. O Cabido, responsável pela gestão da Sé, perdeu os seus espaços para as instalações do Tesouro, projecto de Fernando Távora, e para os percursos dos visitantes. As exigências de um edifício como a Sé Catedral do Porto, hoje, vão para além do culto religioso. Há as vistas, os turistas, os grupos de turistas, as actividades culturais e outras coisas.
O apoio, ou logística como agora se diz, a tudo isto ou é inexistente ou existe na confusão dos espaços escondidos por detrás daquela porta da Sacristia. O que me pedem é para resolver estas questões:
- espaço administrativo para a direcção do Cabido;
- espaço de reunião para todos os membros do Cabido;
- espaço para os funcionários e guardas;
- espaço para as actividades de limpeza, manutenção e tratamento de roupas, objectos e decoração;
- sanitários de apoio.
O espaço de intervenção limita-se aos espaços degradados. Felizmente. Simples, mas de enorme dificuldade. Falámos com os responsáveis do Instituto que tutela o monumento, com a arquitecta Angela Melo, técnica apaixonada por aquelas paredes, sempre presente. Falámos com quem ali trabalha, com quem ali vive. Falámos com arqueólogos. Lemos o que está disponível. Fomos, e continuamos a ir lá várias vezes, verificar medidas, completar a reportagem fotográfica. Verificar ideias, abandonar outras. Desenhar. Desenhar na Sé depois de mais de trinta anos. A opção proposta foi de limpar o que estava a mais, o que não tinha qualidade, e de manter as paredes que estão bem e usá-las como suporte. Mas há também o que não se vê. A arqueologia e a antropologia. Foram feitas escavações no pátio de São Verissímo e encontradas ossadas. Coisa comum, pois era hábito usar o terreno à volta das igrejas como cemitério. Também foram encontrados restos de fundações e antigas construções. Histórias da História.
Propomos construir sem esburacar, sem tocar no passado enterrado, que já foi estudado e perspectivado.
Propomos o acesso pela porta do Tesouro, onde se manterão os óleos sagrados e serão instalados os armários individuais dos membros do Cabido. A Sacristia Velha será armazém, contentor de qualidade, de peças e colecções oferecidas, ainda guardadas e escondidas dos olhos do público. Contíguos ao pátio, substituindo o volume existente, serão criados espaços para manutenção, limpeza e tratamento de roupas e decoração. Uma escada permitirá o acesso ao piso superior. As circulações pretendem-se fluidas: da Sacristia para as áreas de apoio técnicas e destas para o Altar-Mor. Do espaço da Sacristia Velha para a Catedral ou para a Claustra Velha.
No piso superior, em dois níveis, o espaço para descanso dos funcionários e os sanitários. Um pouco mais em cima a área administrativa do Cabido com a sala de reuniões, a sul, mirando a Serra do Pilar. A estrutura será mista de metal e madeira. O metal ficará escondido, a madeira à vista. Tudo aparafusado, para fácil montagem e futura desmontagem se o tempo e a História assim o exigirem. O revestimento exterior será em madeira, levantada do chão, levitando do espaço dos mortos, respeitando preexistências, mantendo-as sem as desenterrar. Fenestrações, somente as necessárias e em diálogo com as existentes. Como na obra de Fernando Távora, ali ao lado, a cobertura será plana e as impermeabilizações serão em chapa de zinco.
As áreas que se pretende construir, apesar de serem áreas complementares, não serão de menor importância. O que se mantiver dos interiores retomará a dignidade de outrora. Os novos espaços, usufruindo das preexistências e do uso das estruturas, pisos e tectos em madeira, aproximar-se-ão da qualidade construtiva e do ambiente existentes. Numa relação óbvia com a intervenção de agora, propomos percursos, circuitos de serviço, circuitos turísticos, ocupação de espaços interiores e exteriores, em especial da Claustra Velha e seus acessos. Mas isso será para mais tarde. A Sé abre-se ao público e à cultura segundo uma lógica de aproximação e serviço. Necessária e inevitavelmente, este terá de ser um processo cultural.