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Arquitetos: Naia Alban
- Área: 900 m²
- Ano: 2023
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Fotografias:Manuel Sá
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Fabricantes: Arquivo, Só Piso Bahia
Introdução
O Casarão 28 aborda a sustentabilidade a partir de uma perspectiva menos clichê. O exagero da cor verde, os elementos de alta tecnologia e o foco desproporcional no carbono operacional (aquele produzido durante a etapa de uso de uma edificação), que dominam o discurso sustentável contemporâneo, ocultam o fato de que, em uma emergência climática, as emissões de carbono relacionadas aos materiais e à etapa de construção inicial são mais significantes do que aquelas da etapa de uso.
Buscar uma maior durabilidade de edifícios (reduzindo assim a quantidade de novas construções) e, quando necessário, construir o novo a partir de elementos de reuso são as principais saídas ao problema do carbono incorporado. Essa intenção guia o projeto do Casarão 28, reforma de um edifício do século XVIII, localizado no Centro Histórico de Salvador, Bahia. A obra se alimenta dos restos de mais de 15 reformas e demolições realizadas na região metropolitana da cidade.
Breve Contexto
Datado da segunda metade do século XVIII, o casarão localizado na Travessa Vidal da Cunha, no coração da cidade de Salvador, pertencia a Santa Casa de Misericórdia da Bahia e estava em ruínas quando foi adquirido pelos proprietários em um leilão organizado pela instituição em 2005.
Situado sobre a escarpa que define o frontispício de Salvador, está inserido na poligonal de tombamento do Centro Histórico instituída pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1984 e reconhecida como Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) em 1985.
À época da sua aquisição, era o último edifício do trecho entre a Praça Municipal, núcleo fundacional da primeira capital do Brasil, e a Praça Castro Alves, local emblemático no imaginário da capital baiana, cuja leitura das suas características originais ainda estava relativamente preservada, por isso o projeto passou por um longo processo de análise junto aos órgãos de patrimônio até sua aprovação.
A reestruturação do casarão procura conciliar a preservação da memória arquitetônica da cidade com as adequações necessárias à qualificação para o uso contemporâneo da habitação.
Projeto
Os apartamentos que compõem o projeto, possuem áreas de 70m² e 55m² e são pensados a partir de uma planta aberta que prioriza a vista para o Forte de São Marcelo e a Baía de Todos os Santos. Um mínimo de elementos compõem a intervenção que, sempre que possível, utiliza os recursos fornecidos pela preexistência. No primeiro apartamento, um grande pano de esquadrias garante a ventilação natural, no segundo, a espessura do muro de pedra da fachada original garante inércia térmica. A ausência de forros (um recursos incomum por expor a laje pré-fabricada) e a tubulação elétrica exposta tem intenção estética e ecológica: o projeto é feito pensando em uma possível desmontagem futura. O conceito de design para desconstrução leva à escolha da carpintaria como ofício principal da obra (poucas uniões químicas e uma grande possibilidade de reaproveitamento futuro).
A materialidade encontrada no casarão histórico é peça fundamental do projeto. Desde as texturas das alvenarias centenárias até parte dos materiais originais que ainda apresentavam certo grau de integridade e que compunham sua estrutura mural vem sendo incorporados ao projeto que conta também com a inserção de elementos de reuso advindos de outras edificações.
A madeira, que tinha um papel estruturante, tanto nos andares como na cobertura, vem redefinindo os espaços internos. Também os tijolos, ladrilhos hidráulicos, grades antigas, portas e marcos, com suas ferragens, estão sendo ressignificados em um demorado e cuidadoso processo de transformação.
O trabalho artesanal de carpinteiros e serralheiros permite a recuperação dos elementos encontrados. Ao invés de uma obra necessariamente econômica, o que se propõe é uma inversão do orçamento de arquitetura tradicional – gastar mais com trabalho, e menos com materiais e suas extrações. Os interiores, nesse sentido, apresentam um protótipo do que seria possível em um ideal de economia circular.
Reuso
O reuso de materiais nos apartamentos do Casarão 28 permitiu reduzir as emissões relacionadas ao transporte. A maioria dos elementos reutilizados no projeto percorreram distâncias inferiores a 10km entre desmontagem e reinserção (seus equivalentes novos provavelmente percorreriam trajetos interestaduais ou internacionais, considerando que grande parte dos elementos industrializados é produzido na Ásia). Os custos ambientais relacionados aos processos industriais também foram reduzidos (algo que não aconteceria caso houvesse optado por elementos reciclados); menos matérias-primas foram extraídas e, finalmente, reduziu-se a quantidade de descarte em uma escala urbana (ao permitir um novo ciclo de vida ao que seria lixo). O fornecimento de materiais para obra, assim como a consultoria para solucionar parte das reinserções foram feitos pela Arquivo – empresa que desde 2020 tem se dedicado à desmontagem de imóveis e à comercialização de elementos viáveis para reuso.
O resultado da intervenção fala sobre uma cidade que descarta muito (e praticamente não recicla). Os materiais reutilizados não são tecnicamente inferiores – pelo contrario, o “lixo"da cidade é frequentemente nobre. As esquadrias incorporadas à fachada do primeiro apartamento a ser finalizado, por exemplo, vieram do retrofit da fachada de um edifício nobre da cidade, construído nos anos 70 e permitir um novo ciclo de vida a essas esquadrias de peroba rosa (uma madeira de corte proibido atualmente) com menos de 50 anos de uso era imperativo. O mesmo pode ser dito do tabuado do palco de um dos principais teatros da cidade, reincorporado nos dois decks que elevam a vista dos moradores para uma relação mais próxima com o mar; para além da perspectiva ecológica, trabalhar com reuso permitiu resgatar também parte da memória de uma cidade em transformação.
Sempre que possível, o projeto optou pelo reuso. Essa decisão implicou em uma mudança no modo de pensar a arquitetura, uma vez que as imagens prontas (renders) tiveram que abrir espaço a desenhos que permitissem uma flexibilidade de execução a partir do que fosse encontrado. A Arquivo foi responsável por encontrar elementos que se enquadrassem no “projeto-base”, a exemplo das grades de um antigo teatro que foram reinseridas como divisão entre a garagem e a circulação dos apartamentos. Onde opções de reuso não foram encontradas (o revestimento dos pisos é o principal exemplo) novos materiais tiveram de ser inseridos.
Materiais novos custam. A extração de matérias-primas, os processos industriais, os trechos de transporte – entre extração, fábrica, fornecedor e obra – e a instalação tem impactos ambientais significativos. Como, ao contrário das emissões relacionadas ao consumo de energia, o custo ambiental dos elementos é pago “à vista”– acontece antes da etapa de ocupação – o carbono incorporado (aos elementos) termina tendo mais relevância quanto mais jovem for um edifício. Emissões de carbono incorporadas representam, para um edifício de 10 anos, 73% dos lançamentos totais. Em um planeta que, nos próximos 30 anos, precisa zerar suas emissões, reduzir a produção de elementos é essencial.