Texto pelo Dr. Arq. Guillermo Tella via Plataforma Urbana.Tradução Archdaily Brasil.
De acordo com suas condições topográficas, a cidade de Buenos Aires, precisa de propriedades que favoreçam as instalações portuárias. Os rios originários no centro do continente desembocam no Rio de La Plata e arrastam e acumulam sedimentos que se depositam em bancos de areia em frente ao centro da cidade. Desde a sua fundação, as costas barrentas vinham sendo usadas como cais, na ausência de baias que atuassem como proteção natural. Em meados do século XIX, a cidade havia dividido suas instalações portuárias entre os dois rios: uma doca na Boca Del Riachuelo e outra sob o Rio de La Plata.
Buenos Aires, a primeira cidade estabelecida no estuário do Plata, não poderia sustentar sua primazia comercial com a Europa sem realizar uma revisão em seu porto. O aumento das dimensões e do peso das embarcações sobre o leito arenoso da ribeira fez com que tanto a carga quanto a descarga fosse feitas por meio de longas “idas e vindas” de barcos com mercadorias e passageiros, que atuavam como uma ligação com o cais.
Sobre o crescente fluxo comercial, o governo nacional teve de aceitar a ineficácia de seus métodos e tecnologias portuárias, e iniciou esforços para dotar a cidade de um novo porto. Em 1881, duas circunstâncias convergiram para produzir uma mudança no direcionamento da discussão sobre a localização do porto de Buenos Aires: primeiro, a decisão do governo nacional de alistar o país na divisão internacional do trabalho como produtor e exportador de produtos primários; e segundo, a designação da cidade de Buenos Aires como capital federal do país.
Em conseqüência, sua inclusão teve que abandonar a ideia de recostar-se sobre uma de suas fronteiras administrativas para juntar-se em sua totalidade ao perímetro da cidade em uma íntima relação. Um ano depois, o governo nacional aprovou a proposta do engenheiro Eduardo Madero, que manteve a ideia de gerar dois canais de acesso – um a norte, outro a sul -, através de uma seqüência de quatro diques ordenados linearmente e ligados por eclusas.
Eduardo Madero articulou seu projeto com mais habilidade, fazendo-o repousar sobre dois pilares: o da técnica e o do capital britânico; e foi por isso que os líderes argentinos o escolheram. A Baring Brothers de Londres dava apoio financeiro e a Hawshaw, Son & Hayter dava assistência necessária para a execução. Por mais coincidências entre os projetos de Huergo e Madero (ambos se recostavam sobre o centro da cidade), a diferença substancial aparece tanto no modo de acesso ao porto (canal simples ou duplo) como no sentido dos diques (perpendiculares ou paralelos à costa). A exibição alcançada por Madero dobrou a aposta e consagrou o Porto da Capital.
Em 1886, o vice-presidente da nação, Francisco B. Madero (tio de Eduardo) assinou a aprovação dos planos finais para a construção do porto. Três anos depois, durante a cerimônia de abertura da Dársena Sud, “o mesmo homem que como senador havia lançado o projeto de E. Madero para o novo porto, agora vice-presidente, Carlos Pellegrini, formalmente lhe concedeu o nome de Puerto Madero em um clima de reclamações devido à lentidão das obras, as vantagens dos negociantes, a corrupção dos legisladores e a ineficácia do sistema adotado”.
Embora a aprovação do projeto tenha exposto algumas deficiências operacionais, uma vez habilitada a primeira sessão, pode se verificar que “nenhum barco podia entrar com confiança no cais já que seus canais se foram mal dragados e mal projetados, e até mesmo suas complexas comportas e pontes giratórias foram tachadas de inúteis e custosas”. As obras, iniciadas em 1887, culminaram quase dez anos depois em um custo que dobrou o montante antecipado pelos promotores.
O aumento dos negócios tornou as instalações portuárias insuficientes: seus métodos de carga obsoletos, a falta de capacidade, a inutilização da Dársena Norte e os distúrbios das ferrovias de acesso às docas, eram as principais deficiências técnicas denunciadas. Isto conduziu, em 1908, dez anos depois de inaugurado Puerto Madero, à autorização do Poder Executivo para a construção de um novo porto, proposto pelo engenheiro norte-americano Elmer L. Corthell, mediante uma seqüência de cinco barragens sem eclusas, perpendiculares à costa – como proposto anteriormente por Huego – situadas ao norte das instalações de Puerto Madero.
O inicio da construção do chamado Puerto Nuevo ocorreu em 1911 e durou até 1925. Próximo a sua inauguração, duplicou-se rapidamente sua capacidade de funcionamento e começou a atuar em complementaridade com as instalações de Puerto Madero e de Riachuelo; mas devido à sua eficácia e supremacia operacional, foi lhes relegado uma desativação gradual. Além disso, na medida em que os navios aumentavam suas dimensões, aumentava a complexidade para atravessar as mangas que ligavam os diques de Puerto Madero; lentamente, este porto começou a substituir barcos por roedores, caindo no abandono e precipitando sua decadência e rápido desuso.
Urbanizar o antigo porto
Partindo da proposta feita por Manuel de Solá-Morales para o Moll de La Fusta em Barcelona, onde era estabelecida a modificação do antigo porto para um eixo de expansão, renovando depósitos e modificando o traslado de veículos, surgiu a ideia de re-funcionalizar as antigas construções de Puerto Madero para estabelecer um novo diálogo entre a cidade e o rio. No beira-mar catalão, seu comprimento é maior e sua posição, absolutamente central, tem proximidade com o ponto mais importante da cidade. Com a criação da Corporação Antigo Puerto Madero, uma empresa anônima com participação igualitária dos governos nacional e local, começou-se a orientar um plano para a área e a promover a atividade imobiliária e sua intervenção naquela área.
Em 1990, a doação do projeto pela cidade de Barcelona para (o então) Município da Cidade de Buenos Aires, logo intensificou um debate, que resultou em um Concurso Nacional de Ideias que organizou e promoveu a Sociedade Central de Arquitetos, que definiu um horizonte de desenvolvimento para a construção de uma parte da cidade que apresentava alto grau de obsolescência. As premissas estabelecidas para a urbanização da área do antigo porto, com 170 hectares, se focaram em cinco objetivos estruturais.
•Converter a área para salvá-la da decadência e deterioração;
•Recompor seu caráter, preservando o forte poder evocativo;
•Hospedar atividades terciárias que exijam uma localização central;
•Recuperar uma aproximação mais efetiva do rio com a cidade;
•Reposicionar a área central, equilibrando os setores norte e sul.
Assim, a proposta aspirava restaurar uma marca para se recuperar de demandas urbanas e capitalizar demandas de novos equipamentos, valorizando as preexistências e as conotações míticas e simbólicas. No concurso de ideias, em que mais de 100 projetos participaram, três equipes obtiveram o primeiro prêmio que, em conjunto, completaram o projeto em 1992 e apresentaram o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, que desenhou as linhas estruturais pelas quais a intervenção se guiou.
Construir cidade a partir de um plano
O projeto de Puerto Madero pretendia absorver a demanda de escritórios da nova geração, cuja eficácia de funcionamento demandava plantas flexíveis de grandes dimensões e com capacidade de adaptação rápida a mudanças. E isto foi feito em um terreno instalado no próprio centro, em uma área industrial inalterada, sem utilização portuária e que tende a crescer em direção ao sul da cidade e, portanto, a reverter o processo de degradação deste setor.
Em se tratando de uma área altamente condicionada pela inacessibilidade de suas pontes, o objetivo foi gerar um lugar de prestígio como expansão lateral da área central. Acentuando o critério de preservação de suas características intrínsecas, a codificação faz alusão ao conceito de distritos do Código de Planejamento Urbano.
Com uma área máxima edificável de 1,5 milhões de metros quadrados, o projeto resultante consistiu em uma estreita faixa urbanizada que se estende entre os quatro diques e um grande parque, formado por reservas verdes. A vinculação transversal, que coincide com as mangas existentes dos diques, é viabilizada por grandes avenidas nas extremidades e nos eixos centrais, proporcionando maior penetração e ligação com a cidade existente. Entre estes eixos, no próprio parque, estão dispostos os lotes que promovem a construção de edifícios altos, ajudam a moldar a silhueta da “Casa Rosada” e a ressaltar o denominado “Eixo de Maio”, reforçado anos depois com o acesso de pedestres que oferece a ponte de Calatrava.
Assim, o conjunto foi estruturado por: um sistema de avenidas e a modulação dos diques, que permitem identificar e caracterizar diferentes seções: os cheio e vazios das docas que não respeitam o ritmo do traçado da cidade; e os edifícios dos moinhos, guindastes e elevadores de grãos que definem a marca do antigo porto.
O plano compreendia a reabilitação de antigas docas do setor oeste – hoje completados em sua maioria -, a conservação dos edifícios com valor patrimonial, a construção no setor leste de uma estreita faixa de edificações – até sete pisos- com predomínio de uso residencial, a prolongação das ruas, e o espaço intermediário resultante, a localização dos conjuntos de torre e atrás, o grande parque que reestruturaria a relação da cidade com o rio.
Em certos casos o Estado deve atuar como promotor, em outros, como regulamentador, e às vezes, como financiador. Se o valor deste projeto tivesse sido custeado pelo Estado nacional, teria sido impossível de se resolver. Mas se o Estado cria um slogan do projeto e toda a sociedade o materializa, temos aqui um bom exemplo de gestão urbana. A operação Puerto Madero propôs um novo modelo de gestão territorial no ambiente local que permitiu requalificar as terras portuárias inutilizadas para usos urbanos de qualidade.
Foi o Estado Nacional que forneceu terras do governo local, os indicadores urbanísticos; e um concurso nacional que ofereceu ideias gerais para desenvolver o Plano Diretor. A Corporação Antiga Puerto Madero proporcionou a infraestrutura e convocou a iniciativa privada para intervir sobre os lotes resultantes em função do plano setorial. Serviços foram realizados, abriram-se ruas, pontes foram alargadas, foram geradas avenidas, construíram-se praças e parques, equiparam com o mobiliário.
O setor leste foi renovado, compreendido entre as antigas docas, preservando o prédio de estoque e oferecendo uma importante oferta de serviços e espaços públicos de qualidade. No setor oeste foi gerado um tipo de intervenção a partir das vigas das torres. Como resultado, a capacidade de atração de novas atividades surgiu na área de influência na forma de uma infinidade de grandes projetos urbanos, como resposta à demanda da localização. E sua execução instalou fortes processos de gentrificação em toda a área, que tende a expulsar a população, estabelecimentos comerciais e lojas tradicionais, em função das novas marcas.
Porto Madero já leva duas décadas tentando integrar-se a cidade. No entanto, algumas decisões sustentadas ao tempo fazem pairar algumas nebulosidades. Parte da enorme renda excedente gerada pela operação jamais foi direcionada para o melhoramento de outras zonas, como ao sul da cidade. Além disso, a ausência de programas de habitação social em seu interior manifesta certo desprezo a diversidade do conjunto. Neste sentido, através do crescimento acelerado de um assentamento informal instalado em seu meio, a cidade tem se ocupado de pagar as contas da omissa mistura social. .
(*) Versão adaptada de trabalho publicado em Buenos Aires, Revista de Arquitectura Nro. 237, Sociedad Central de Arquitectos, julio (pp. 60-68).