Texto por Guillermo Tella via Plataforma Urbana. Tradução Archdaily Brasil
A cidade de São Paulo incorporou ferramentas e critérios urbanísticos da legislação nacional,o Estatuto da Cidade. O seu uso consiste em considerar que a propriedade deve cumprir uma função social e considerar separadamente o direito de propriedade do direito de construir. Além disso, a cidade estabelece em seu Plano Diretor as diretrizes de desenvolvimento e de gestão, e define uma capacidade construtiva mínima. Esta metrópole com 20 milhões de habitantespossui um déficit habitacional de mais de 400 mil unidades, exigindo a produção de moradias em grande escala a preços de custo.
Neste contexto, foi lançado há algum tempo o novo Plano Diretor Estratégico, a fim de repensar e requalificar alguns bairros, demarcando áreas em zonas centrais onde só é permitido implementar projetos de habitação de interesse social: a) ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), menos impostos e restrições à iniciativa privada b) HIS (Habitação de Interesse Social), com 50 m2 e um dormitório, e c) HMP (Habitação para o Mercado Popular), com 70 m2 e dois dormitórios, ambos com financiamento de um banco público.
A reconstrução da ordem urbana
Na cidade de São Paulo, as leis de planejamento urbano se apóiam em um novo paradigma que privilegia a cidade real, aceitando nela a presença permanente do conflito e tendo a gestão cotidiana como ponto de partida. Esse novo paradigma parte do pressuposto de que a cidade se produz por uma multiplicidade de agentes que devem ter suas ações organizadas, gerando um pacto que corresponda ao interesse público da cidade. Pressupõe-se uma revisão permanente para ajustes ou adequações, que mantenham uma continuidade da dinâmica da produção e reprodução da cidade.
Neste contexto, o Estatuto da Cidade responde de forma propositiva a este desafio de reconstrução da ordem urbana sob novos princípios, com novos métodos, conceitos e ferramentas, estabelecendo novos padrões jurídico-políticos para uso do solo e controle do desenvolvimento urbano, especialmente ao partir do princípio de que o direito à propriedade está sujeita à sua função social, que é definida através da legislação municipal.
O novo conceito de lei de usos aparece como complemento a outras regras já estabelecidas como, por exemplo, a de densificação a partir do coeficiente básico. Propõe-se estabelecer as condições necessárias e suficientes para garantir a coexistência entre diversas atividades sem comprometer o meio ambiente, o ambiente construído e as condições de mobilidade da cidade. A possibilidade de implementação de cada uso se dá fundamentalmente pela infraestrutura viária implantada, que constitui um dos elementos estruturadores do espaço urbano, e pela convivência de cada uso com os demais, especialmente com o uso residencial.
Simplifica-se a legislação tradicional através da redução do universo de usos sujeitos a um controle, com a introdução do conceito de usos incômodos, ou seja, que passa a existir uma lista de usos que não geram incômodos que podem se instalar livremente pela cidade.
O município é dividido em duas macrozonas complementares: uma de Proteção Ambiental e outra de Estruturação e Qualificação Urbana. A primeira é a porção do território onde a instalação do uso residencial e o desenvolvimento de qualquer atividade urbana está sujeito às necessidades de preservar, conservar ou recuperar o meio ambiente; a segunda é onde se instalam o uso residencial ou desenvolvimento subordinado às exigências dos elementos urbanos estruturadores.
Regulamentação da capacidade construtiva
As características morfológicas promovidas se estabelecem de acordo com o coeficiente de aproveitamento básico e da implementação do “solo criado”. Este poderia dar-se a partir de uma redução drástica das capacidades construtivas em todos os edifícios da cidade, alocando as áreas excedentes por um processo licitatório, no qual a capacidade construtiva foi adquirida com base em um pagamento para a cidade (destinado a um fundo urbanístico de proteção patrimonial, ambiental ou social, ou para a construção de habitações sociais) ou para o pagamento de obras necessárias para a renovação urbana.
Trata-se de uma das formas do mecanismo conhecido como Transferência de Capacidade Construtiva, onde o excedente de área edificável resulta em uma atribuição do Estado que pode ser outorgado com os critérios que este considere adequados para assegurar a qualidade urbana e o direito à cidade.
Em termos de incentivos de ocupação do solo, há vários instrumentos para destacar. Um deles é o imposto progressivo sobre a propriedade ou edifícios ociosos para as Zonas Especiais de Desenvolvimento Prioritário, que são aqueles setores de imóveis que, estando vazios ou subutilizados e em cumprimento das funções sociais da propriedade urbana, devem ser objetos de reparcelamento e destinados a algum tipo de ocupação.
Desta maneira, este instrumento afetarátanto as parcelas de lotes vazios como aqueles que possuem edifícios demolidos ou parados, podendo o município estabelecer prazos para urbanizar e/ou construir. De forma articulada se aplica uma taxa ou imposto que contribua para coibir o uso especulativo do solo urbano, ou seja, sem fins tributários.
Isto permite distribuir de forma justa os custos e benefícios dos investimentos públicos, estabelecendo um limite entre o direito de propriedade do solo e direito de construir. E permite também controlar a expansão desordenada da cidade, tendendo a um modelo de cidade compacta e incentiva a ocupação de terrenos vazios ou subutilizados.
A transferência de potencial construtivo é um dos instrumentos normativos mais importantes. Seu impacto se reflete tanto em termos morfológicos como nas possibilidades de intervenção do Estado no mercado do solo. As variantes as quais se pode estabelecer a transferência são solos criados e transferências do direito de construir, o coeficiente de aproveitamento básico e a outorga onerosa do direito de construir.
A transferência do direito de construção
A criação de um novo solo urbano tem por objetivo permitir uma maior capacidade construtiva em alguns edifícios, mediante o pagamento de uma quantia em dinheiro, a ser utilizado para fins previamente estabelecidos. Com isso, gera-se um fundo destinado a programas que, de outra forma, o governo local não poderia financiar. O objetivo da transferência do direito de construir é de liberar áreas urbanas onde o plano urbano pretende realizar algum programa social (áreas verdes, equipamentos, etc.) ou reconhecer cargas urbanísticas que pesam sobre determinados imóveis (como, por exemplo, os edifícios privados protegidos por seu caráter patrimonial).
O coeficiente de aproveitamento básico representa o direito de construir igual para todos, em todo o território urbano, buscando a viabilidade de implementação do “solo criado”. Este coeficiente será estabelecido de forma organizada, de tal forma que servirá para abranger a maior parte da produção das edificações da cidade.
Por outro lado, a possibilidade de construir acima do coeficiente básico é denominada de “outorga onerosa do direito de construir”, onde o poder público vende o território aos interessados.Introduz a separação conceitual entre direito de propriedade e o direito de construir. Para que esta venda ocorra, se estabelecem “reservas de áreas adicionais” (quantidades totais de metros quadrados para vender) diferenciados, por zonas da cidade e por usos, de acordo com a intenção de ocupação refletida na política urbana: grandes reservas para zonas onde se pretende intensificar o uso e a ocupação e reservas reduzidas em zonas onde as intenções são inversas.
Os recursos originados da venda do solo criado poderiam formar um fundo específico de urbanização, sem vínculos com os recursos orçamentários, com gestão conjunta entre o poder público e a sociedade civil, para viabilizar projetos estratégicos organizados. Em áreas onde existe a intenção de estimular a produção de determinados usos como, por exemplo, as habitações de interesse social, poderá prever por lei a extensão do pagamento deste solo criado (por exemplo, nas zonas especiais de interesse social de áreas urbanas desocupadas).
Em suma, o proprietário de um imóvel em que exista o interesse público de preservação, tanto no ponto de vista ambiental comono ponto de vista de patrimônio histórico, cultural, paisagístico e arquitetônico, pode ganhar em outra propriedade ou vender a diferença entre a área construída do imóvel preservado e o total de área construída atribuída ao terrenopelo coeficiente de aproveitamento básico, de acordo com a legislação existente. A transferência só será permitida se o proprietário participar de algum programa de preservação desenvolvido em conjunto com o poder público ou privado(e aprovadopor um órgão técnico responsável).
O respeito pelas tipicidades locais
Assim, perante o desafio de reconstruir a ordem urbana de São Paulo, se desmarcam áreas em zonas centrais para implantar conjuntos habitacionais para a baixa renda. Apoia-se em um novo paradigma que privilegia a cidade real, aceitando nela a presença permanente do conflito e tomando a gestão cotidiana como ponto de partida.
A aplicação do Estatuto da Cidade estabelece novos princípios e ferramentas para um novo paradigma jurídico-político, postulando a função social da propriedade. A lei de usos aparece como complemento a outras normas já estabelecidas e estabelece duas macrozonas complementares como referência espacial para o uso e ocupação do solo na cidade.
A implementação do "solo criado", promove a distribuição de usos e intensificação do aproveitamento do solo de forma equilibrada em relação à infraestrutura,ao transporte e aomeio ambiente, de modo a evitar sua ociosidade ou sobrecarga, otimiza os investimentos coletivos e estimula a requalificação de imóveis e bairros protegidos.
Também propõe estimular doações de terras para o desenvolvimento da agricultura urbana como uma forma de combater a exclusão social. Neste sentido, destacam-se osterrenos públicos ou privadasque se encontram abandonados ou subutilizados. E propõe-se o desenvolvimento de urbanizações consorciadas como uma forma de cooperação entre o poder público e a iniciativa privada, buscando a promoção de investimentos em áreas desprovidas de infraestrutura sobre as quais pesam uma pressão de ocupação.
Com uma gama de ferramentas deste tipo, São Paulo procura reequilibrar o seu território, aumentar a produção de habitaçõesde interesse social e proteger os interesses da população mais pobre que vive nas favelas e loteamentos irregulares. Por fim, garante o tratamento legal e urbanístico específico para realidades diferenciadas, garantindo a recuperação de áreas de habitação em condições precárias e respeitando as tipicidades locais.