Nós que trabalhamos com as cidades, urbanistas, sabemos que apenas as leis de uso de solo, ordenamento territorial, seus códigos e regulamentações correspondentes e uma participação ativa dos cidadãos é que nos garante não ficar à mercê das conveniências politicas e interesses arbitrários e insaciáveis das incorporadoras.
Vemos, com tristeza, que neste mundo globalizado o destino de nossas cidades está nas mãos do mercado e não dos direitos do homem a ter acesso a uma melhor qualidade de vida.
Os despejos em massa são sucedidos por extensas demolições a fim de construir obras faraônicas de uma voracidade econômica desencarnada, em detrimento de espaços verdes, aéreos; não levam em conta os limites de densidade populacional flutuante e a infraestrutura de serviços necessária, tampouco respeitam as características da paisagem urbana e natural.
Estas ações obrigam grande parte dos cidadãos a viver em áreas marginalizadas e em estado muito precário, ou habitar espaços que não cumprem com suas características sociais e necessidades culturais ou de trabalho.
Pior é quando isso acontece em áreas urbanas consolidadas e de boa funcionalidade, com o único propósito de resolver grandes negociações e desenvolvimentos não sustentáveis.
Enquanto renomados arquitetos se orgulham de apresentar e transmitir para redes internacionais a construção de megaprojetos e torres altíssimas, têm como clientes grandes corporações e aqueles que as comandam.
Desnecessário repetir que não se contemplam nesses projetos o impacto ambiental e socioeconômico causados pelos mesmos. E que, geralmente, os mesmos que fazem grandes campanhas promovendo a sustentabilidade são os que desenvolvem megaprojetos insustentáveis, que comprometem ainda mais as gerações futuras negar-lhes quaisquer direitos.
Portanto, não é de se estranhar que as modificações e exceções aos códigos e planos vigentes sejam algo que tanto habitantes como urbanistas devam enfrentar quase que permanentemente.
A cidade herdada e fragmentada
O século XX deixou nas grandes cidades, por um lado, grandes espaços utilizados para infraestrutura, como as ferrovias e rodovias e, por outro, enormes vazios urbanos onde se assentaram as antigas indústrias que foram deslocadas para as periferias.
Por outro lado neste terceiro milênio na América Latina encontramos três tipologias de empreendimentos habitacionais, claramente definidas: conjuntos habitacionais de luxo, bairros ou comunidades fechadas e habitação social.
Todos esses se instalam sobre o território exercendo um domínio claro sobre o espaço. Alguns fragmentam a cidade enquanto outros invadem e usurpam as localizações preferenciais, os espaços verdes e públicos, gerando uma exclusão e segregação social dos setores economicamente mais vulneráveis.
O restante, os interstícios, são “terra de ninguém”, frações isoladas, e mesmo que existam leis que protegem o patrimônio edificado, este tende a desaparecer nas mãos dos especuladores imobiliários.
Assim vão sendo gerados processos que os especialistas chamam de "gentrificação", que não é mais do que um termo na moda que encobre a especulação imobiliária, a "urbanização selvagem".
A "urbanização selvagem"
A "gentrificação" é o processo mediante o qual áreas degradadas "ficam na moda” e as classes de maior renda passam a se instalar lá. Essa é a maneira como se "disfarça" a lavagem de dinheiro, a corrupção e a especulação imobiliária.
As áreas com localizações privilegiadas são agraciadas com instalações de luxo para as classes mais privilegiadas ou para o turismo, ao mesmo tempo em que vão expulsando a população original, que tendo sua propriedade valorizada pode vendê-la a preços melhores e ter acesso a uma propriedade das mesmas ou melhores características gerais, em uma área mais degradada e/ou distante.
Este processo de usurpação privilegiada, que desloca uns e outros, vai criando um círculo vicioso onde quem tem menos acaba sem outra alternativa que não migrar para outro lugar, onde tenha supostas possibilidades de emprego, ou acabar em algum assentamento precário e ilegal.
Essas novas construções se implantam sobre a estrutura urbana preexistente, contando com serviços altamente sofisticados e deixando relegados os serviços da cidade antiga que tentam, sem sucesso, competir com aqueles. O espaço físico se esgota, as soluções são cada vez mais custosas e a cidade se converte em uma massa antieconômica de metal e cimento.
Este é o momento de nos mobilizarmos socialmente dizendo: é preciso fazer algo com o já construído e com as grandes densidades existentes para as quais nossas estruturas urbanas não estavam preparadas.
Os processos de gentrificação provocados pelo capital especulativo geram o que poderíamos chamar de “círculo vicioso da urbanização selvagem”, que expulsa populações para as periferias degradadas.
Tem-se falado muito sobre este processo desumanizado do crescimento urbano especulativo, onde as edificações não estão voltadas ao uso dos futuros habitantes, mas apenas à venda ou aluguel por entidades intermediárias que buscam unicamente o proveito econômico.
A este capital especulativo não interessam nem os habitantes, nem a saúde, nem o meio ambiente nem as mínimas necessidades humanas. Constroem para que o dinheiro que tem se reproduza e gere renda e, portanto, mais dinheiro.
Cidades do futuro e “exilados urbanos”
Nessas condições o futuro é verdadeiramente desanimador.
Temos assistido, sobretudo nos últimos dez anos, a lutas dos movimentos sociais urbanos pela posse da terra, pelo direito legítimo a moradia, água e saneamento, pela regularização da propriedade da terra, etc.
Essas lutas são reivindicadas há muito tempo por nossas organizações sociais, suas demandas reiteradas lhes permitiu influenciar a evolução legislativa e a abordagem de políticas públicas de habitação, direitos contra os despejos, gestão urbana e ordenamento territorial.
Estas novas políticas urbanas, geradas de forma comunitária e participativa, fizeram com que muitos governos latino americanos tomassem sérias medidas a respeito através da emissão de legislações urbanas e ambientais atualizadas, intervenções diretas no território e/ou de controles específicos, com a ajuda de medidas inovadoras quanto ao financiamento do solo urbano, procurando moldar a cidade para todos, o descontroladamente construído e o déficit habitacional.
Embora os dados de crescimento populacional e de futuras migrações sejam alarmantes, uma vez que se estima que a maioria desses novos habitantes urbanos sejam provavelmente de baixa renda, tendo como resultado um fenômeno chamado pela Agenda Hábitat de "Urbanização da Pobreza", ou seja: assentamentos precários – favelas.
Estes assentamentos serão caracterizados por problemas de acesso ao transporte público, condições de moradia inseguras, acesso inadequado a água potável, saneamento básico e outros serviços, moradias de baixa qualidade estrutural e superlotação.
E há ainda pessoas e famílias inteiras à margem do sistema, tornando-se exilados urbanos que não tem sequer acesso a estes assentamentos. Essas áreas irregularmente ocupadas são geridas por grupos de indivíduos que produzem mercados informais da terra ou das edificações ocupadas, cobrando também uma renda para acessar as mesmas, em troca de proteção e de uma futura continuidade do assentamento.
Essas pessoas vivem nas ruas, sujeitos às intempéries, cobrindo-se com plástico e papelão, comendo o que lhes é dado, não tem vida ou espaço próprios: são exilados urbanos ou não-cidadãos, excluídos da sociedade.
Considerações finais
Diante deste panorama desanimador nos perguntamos: o que podemos fazer? E para encontrar uma resposta nos dirigimos ao documento que vem sendo elaborado e atualizado em sucessivos Fóruns Sociais Mundiais na última década, a Carta Mundial pelo Direito à Cidade que diz, entre outras coisas:
“O direito à cidade se define como o usufruto eqüitativo das cidades dentro dos princípios da sustentabilidade e da justiça social.Entendido como o direito coletivo dos habitantes das cidades em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que se conferem legitimidade de ação e de organização, baseado nos usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado. (...) A cidade tem como fim principal atender a uma função social. (...) Os cidadãos têm direito a participar das rendas extraordinárias (mais-valias) geradas pelos investimentos públicos que é capturada pelos privados, sem que estes tenham efetuado nenhuma ação sobre esta propriedade.”
Já que a cidade nos muda - e ultimamente é mais para mal que bem - devemos ter o direito de mudá-la, mudando a nós mesmos.
O direito à cidade é um dos mais negligenciadas e isso é algo que temos que reverter, reconquistando a cidade para seus habitantes.
Por Graciela Mariani, Arquiteta, Planejadora urbana e regional (UBA). Fundadora do blog Nuestras Ciudades. Via Plataforma Urbana. Tradução Archdaily Brasil.
Publicado originalmente em laciudadviva.org