Todo dia a cidade amanhece envolvida por um ritmo vertiginoso. Sintonizada com a velocidade e guiada pelo paradigma “tempo é dinheiro”, a paciência, a contemplação e o gozo dos atos cotidianos parecem ficar de lado. Em resposta a este frenesi, já existem experiências contestatórias em todo o mundo que buscam recuperar a qualidade da vida urbana.
Sem dúvida, o “fastfood” é o símbolo mais eloquente da cultura do imediatismo. Foi precisamente em oposição a esse ícone da vida pós-moderna que surgiu na Itália, em 1986, um movimento “SlowFood”. Experiência deflagrada após a abertura de uma lanchonete de fastfood ao pé da mítica Piazza di Spagna em Roma.
O seu fundador, Carlo Petrini, propunha gerar uma alternativa que preservasse e revalorizasse a comida tradicional e regional, ao mesmo tempo que fomentava a agropecuária local. O certo é que o movimento contribuiu à ideia de desacelerar o ritmo instalado na cultura contemporânea. E assim surgiu o chamado “SlowMovement”.
Apareceram iniciativas como “Slow Living”, “SlowTravel”, “Slow Design” e “Slow City”, entre outras. “Em algum momento escolhi fazer as coisas com mais tempo, apostando em menos coisas, mas com maior desfrute”, conta Silvina Ozzu, de Las Heras na Patagônia argentina. E continua: “Muitas vezes alguém corre sem entender se é realmente necessário impor essa voracidade aos seus dias”.
A favor das cidades mais lentas
O “Slow City”, ou “Cittaslow”, surge na Itália em 1999 e congrega 176 cidades em 27 países, entre eles: Alemanha, França, Gra-Bretanha, Itália, Holanda, Portugal, Finalândia, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Turquia, China, Canadá e Estados Unidos. Cada cidade se compromete a trabalhar para alcançar diversas metas, como:
· Melhorar a qualidade de vida pessoal no ambiente urbano
· Proteger o meio ambiente
· Resistir à homogeneização e globalização dos povos
· Promover a diversidade cultural e singularidade de cada cidade
· Oferecer condições para uma vida mais saudável
Para tornar-se membro, a cidade deve avançar na garantia de um estilo de vida calmo. E uma vez inscrita, pagam anualmente pela participação. Considerando a singularidade de cada cidade, elas são divididas em três categorias:
· Povoado Cittaslow: para menos de 50 mil habitantes;
· Partidário Cittaslow: para mais de 50 mil habitantes; e
· Amigo Cittaslow: a indivíduos e famílias que promovam seus princípios.
Para Pier Giorgio Oliveti, Diretor e Secretário Geral da Cittaslow Internacional, o movimento representa uma comunidade viva que subverte a si mesma. As chaves são: identidade, ambiente e responsabilidade. Considera que “uma Cittaslow é uma cidade com alma, que trata de maneira holística a vida tranquila. Também é uma cidade que recupera a importância da memória. Em mundo globalizado, corremos o risco de perder nossa identidade, nossa história, nossa perspectiva de caminho em longo prazo. De modo que Cittaslow constitui também um projeto para as próximas gerações”.
De acordo com esses princípios, Oliveti afirma que “nossos principais inimigos são: a ‘desertificação social’ (a tendência de abandonar um vilarejo e migrar para as grandes cidades) e a erosão dos princípios de cooperação e solidariedade entre as pessoas, coisas raras quando existem outras prioridades, como a segurança e o acesso a serviços básicos”.
Sem dúvida, é frequente encontrar pessoas que, buscando uma vida menos estressante, abandonam grandes cidades em busca de pequenos povoados que ofereçam o que a cidade não tem: tranquilidade e serenidade. Sobre isso, Ozzu agrega: “Muitos amigos do interior viviam lá pela situação geográfica do relativo isolamento e me pareceu oportuno adotar isso para mim”.
Já Gabriela Hassan, do município de Balcarce, explica: “O ritmo atual conduz a uma desconexão com a natureza e o ritmo biológico, e nos submete a uma carreira frenética de cumprir obrigações e rituais muitas vezes desnecessários”.
Dado que as cidades são cada vez maiores e mais aceleradas, as comunidades perdem identidade e liberdade para administrar seu tempo e desejos. É por isso que Hassan considera que “é cada vez maior o número de pessoas que optam por morar em lugares longínquos em contato com a natureza. Essa busca permite desenvolver atividades mais contemplativas e empreender objetivos familiares e pessoais. O contato com a natureza torna a vida mais prazerosa”.
Dos Apeninos aos Pampas
Em Orvieto, a 131 km de Roma, está a sede do Movimento Cittaslow. Sob o lema: “Pequena cidade, grande história”, esse povoado soube aproveitas seu contexto regional, salvaguardando as características que o destacavam: paisagem, arquitetura, campo e gastronomia.
E tais atributos são difundidos para captar potenciais visitantes e residentes que buscam uma vida “intensamente simples”. “Mas além das diferenças de cada cidade, o enfoque Cittaslow é o mesmo”, diz Oliveti. “As cidades que optam por um modelo “Slow” tornam-se mais respeitosas em relação a seu patrimônio cultural e ambiental e definem-se pelo princípio da resiliência, ou seja, a capacidade de seu coletivo social de sobrepor-se às condições adversas do entorno, com o máximo de sabedoria local”.
Do outro lado do atlântico, na Califórnia, os habitantes do Valle de Sonoma também aderiram ao movimento. “Sonoma resolveu manter os próprios valores em vez de ser uma cidade genérica”, expressa Gary Edwards, presidente da associação local. “Nosso povo apostou em sua singularidade para crescer, independente de tendências e atento à sua história”.
Barcarce, a 40 k de Mar del Plata, elaborou recentemente o Plano “Balcarce 2020”, onde coloca em prática os princípios do Movimento Slow em uma região chamada Villa Laguna Brava. O propósito é realizar – junto aos vizinhos – um desenvolvimento urbano compatível com o turismo sustentável, focado no respeito à integridade cultural e aos processos ecológicos essenciais.
Trata-se de uma vila turística com meros 600 habitantes e um entorno único que combina águas navegáveis e serras. Para capitalizar esse refúgio natural, a proposta favorece a diversidade biológica; não explorar, mas crescer junto ao lugar, valorizando o que é genuíno.
Neste sentido, pretende consolidar-se como área residencial sustentável, com um “buffer” em torno da costa. Para incentivar o turismo responsável, emprega guardas florestais e guias, promovendo alternativas como cultivos orgânicos e artesanais. A iniciativa apela à revalorização de um modo de vida mais humano, natural, produtivo e solidário.
Da vertigem à contemplação
O arquiteto Manuel Ludueña – um dos responsáveis técnicos da equipe do plano de Balcarce – reitera que o Movimento Slow “é uma das manifestações socioculturais mais apropriadas à sustentabilidade, centrada no uso do tempo social”. Entre suas vantagens destacam-se a incorporação das pessoas em uma comunidade e a revalorização dos bens naturais. Evidentemente, para a cidade representa uma mudança significativa dado que o tempo torna-se uma experiência vivencial e a velocidade uma aspiração ausente.
Ludueña caracteriza essas cidades como “territórios sem ruídos, com circulações pausadas, conversas e encontros amenos em espaços públicos adequados, com ruas não asfaltadas e solo permeável, sem automóveis, com agricultura urbana e fauna associada, abundante auto-produção artesanal, baixa densidade populacional, infraestrutura e transportes compartilhados”.
“Era-nos muito interessante aderir a este movimento, para proteger o ambiente e a paisagem e promover uma forma de vida alternativa aos habitantes e visitantes”, diz Gabriela Hassan. E complementa dizendo: “Aderimos para fugir do stress urbano. Em nossa cidade temos vocação para seguir o caminho slow”.
A cidade balneária de Mar de las Pampas foi a primeira da Argentina a se tornar uma comunidade lenta em 2006. Desde então conseguiu aprovar a adesão oficial, garantindo mais turismo. “Naqueles lugares pequenos nos quais não chegou o ritmo das grandes cidades, o movimento garante ferramentas para promover um desenvolvimento turístico capaz de proteger a identidade local”, aponta Hassan.
Mas para quem habita nas cidades modernas, é possível ter uma vida desacelerada? Para Oliveti, a resposta é afirmativa, embora destaque que o trabalho é mais árduo. Depende das condições do processo e da força de vontade de seus habitantes. “Atualmente trabalhamos em cidades como Barcelona, Bruxelas, Busan (Coréia do Sul) e Viena, para compartilhar nosso modelo em alguns de seus bairros”.
Ludueña explica que muitos vizinhos que hoje residem em comunidades slow defendem esses princípios; negam-se a pavimentar as ruas para não impermeabilizar o solo, separam e reciclam os resíduos sólidos, constroem casas ecológicas, trocam o carro pela bicicleta e aderem à permacultura.
Com o movimento slow, as cidades desfrutam do silencio, preservam as tradições, o patrimônio e o ambiente, privilegiam o lazer e a calma. É uma aposta coletiva em favor de uma vida mais aprazível, que rechaça a velocidade como noção de progresso. Além disso, promove-se a produção artesanal, hortas, controle da emissão de gases, o respeito à natureza e o cuidado com a paisagem.
Esse modelo que defende a vida sem pressa se popularizou em muitas cidades como uma alternativa aos incisivos processos de ‘metropolização’. Trata-se de comunidades que decidiram se tornar refúgios contra a velocidade, longe do ruído, do trânsito e da ideia de cidade como espaço de consumo. Em suma, uma vida que oferece tempo, tão escasso nas metrópoles modernas.
Por Guillermo Tella, via Plataforma Urbana. Tradução Murilo Arruda, ArchDaily Brasil.