Nestes primeiros anos do século XXI a maioria das grandes capitais latino-americanas está sob governo de partidos ou coalisões progressistas ou de esquerda, com um importante apoio popular. São cidades de alta visibilidade, com meios para realizar políticas transformadoras num sentido democrático e de justiça social. Referimo-nos a Cidade do México, Bogotá, Quito, Lima, La Paz, Santiago, Montevidéu, São Paulo, Caracas. Destaca-se a ausência de Buenos Aires, que teve governos duvidosamente progressistas nos anos 90 e início dos 2000 e hoje é governada por uma direita neoliberal que substitui a justiça pela demagogia. Uma experiência (ruim) a ser levada em conta.
Um governo progressista que pretende consolidar políticas de reforma precisa durar, ao menos, dois ou três mandatos. Para fazer progredir a cultura política democrática nos parece muito conveniente realizar uma análise dessas experiências, como começaram suas jornadas, os primeiros resultados de suas políticas e seus atuais desafios. Não pretendemos agora realizar esta análise de todas as cidades citadas, o conhecimento não seria suficiente e não caberia em um artigo de periódico. Exigiria ao menos uma série. Apenas pretendemos propor alguns critérios do que pode ser uma política de esquerda ou progressista a partir de um conhecimento básico dos casos citados. Como avaliar uma política de esquerda? Consideramos três critérios e cada um deles se situa em uma escala diferente.
Em primeiro lugar as políticas sociais, que logicamente supõem priorizar as populações mais necessitadas e mais vulneráveis e os territórios mais deficitários em relação a infraestruturas, habitação e serviços públicos e coletivos. São políticas de redistribuição social com efeitos em curto prazo e que exigem urgência no tempo e proximidade no território. É o aspecto que cabe principalmente aos governos locais, sejam governos da cidade ou delegações, tanto para atuar sobre a base de suas competências ou de suas capacidades, como para reclamar aquilo que cabe ao Governo Nacional. Na maioria dos casos, o resultado é uma multiplicidade impressionante de programas, projetos e atuações que foram promovidas em menos de um ano e com recursos limitados. Destacam-se os programas de educação, cultura e lazer destinados à infância e juventude, à assistência sanitária, à igualdade de gênero, à cultura, à atenção aos idosos e setores mais pobres, à recuperação de espaços públicos, ao apoio às micro e pequenas empresas, à segurança da cidade, ao controle do tráfego de drogas, à disposição de água potável para toda a população, às obras de drenagem e outros serviços básicos, à proteção civil, à melhoria do transporte público, etc. Estas políticas serão mais efetivas à medida que sejam levadas em conta as reivindicações e as propostas dos coletivos da cidade, em especial os críticos. Trata-se de políticas de urgência para responder a necessidades mínimas para ser reconhecido como cidadão, que contribuem para melhorar a qualidade de vida e a diminuição da pobreza, mas que tem pouco impacto na redução da desigualdade social.
Em segundo lugar as políticas de urbanização e intervenção sobre a cidade existente. Trata-se de construir cidade onde haja urbanização falha e tecido degradado; promoção de habitação para os setores de baixa renda; melhorar as centralidades existentes e desenvolver outras novas; renovar e estender todas as infraestruturas e serviços urbanos para que atendam toda a população; generalização de espaços públicos de qualidade em todo o território urbanizado (a cidade é antes de tudo espaço público); regular a construção de habitação de modo a produzir em todas as áreas certa mistura social; garantir o acesso à mobilidade a toda a população através de um sistema de transporte coletivo física e economicamente acessível a todos; atrair atividades econômicas que gerem equilíbrio entre habitação, serviços e emprego; criar uma imagem de cidade que gere autoestima da cidadania. Trata-se de políticas em médio prazo e que não podem depender exclusivamente dos governos locais, por mais fortes que sejam. Exigem a colaboração das entidades descentralizadoras (delegações ou distritos) com o governo da cidade e com o nacional. E é fundamental que sejam instituídos mecanismos participativos que promovam e reconheçam os coletivos sociais, especialmente os mais críticos, e que sejam evitados acordos mais ou menos ocultos entre os organismos públicos e os agentes econômicos privados.
Em terceiro lugar é preciso elaborar uma cultura política urbana alternativa que torne possível evitar os efeitos perversos das mudanças das cidades, como por exemplo quando uma melhoria urbana acaba expulsando uma população de renda mais baixa em função de populações mais ricas, impedindo que o espaço público e o solo em geral sejam mercantilizados e que atribua meios que façam do urbanismo e das políticas públicas um instrumento de transformação social. Isto supõe questionar o princípio da propriedade como é atualmente regulada, como é o caso do solo. Reorientar o crédito ao tornar público o acesso à habitação e a regularização do sistema bancário. Promover uma legislação urbanística que evite a disseminação urbana e organize o território como sistema de cidades compactas. Em resumo, atribuir aos governos o território (em todos os níveis) os meios jurídicos, fiscais e financeiros para tornar efetivo o direito à cidade.
Na medida em que aconteça uma articulação entre as organizações sociais mais combativas, os setores intelectuais e profissionais mais avançados e os responsáveis políticos, será possível promover políticas urbanas que não se limitem a reduzir os custos sociais de desenvolvimento urbano sem interferir nos mecanismos produtores da exclusão e da desigualdade. É o ponto fraco da maioria dos governos progressistas nas cidades latino-americanas. Sugerimos um teste com três perguntas para determinar se as políticas públicas são realmente progressistas. O governo da cidade questiona o regime atual da propriedade do solo? O planejamento urbano impede a dispersão urbana e a segregação social (por exemplo, bairros fechados)? O transporte coletivo e os serviços básicos como água ou eletricidade são de competência pública ou de gestão privada, ou seja, que visa primeiramente o lucro?
Via Plataforma Urbana. Tradução Naiane Marcon, ArchDaily Brasil.