Em janeiro, publicamos o evento Transição, promovido pela Galeria Leme, que aconteceu entre os dias 4 de janeiro e 15 de fevereiro em São Paulo. Para comemorar a reconstrução e ampliação da nova galeria, um grupo de artistas propuseram uma série de obras com diferentes abordagens ao tema.
Apresentamos a seguir, o vídeo realizado pela artista plástica Patricia Osses e um diálogo com Ozino Esteván.
Parecia um conto: diálogo sobre um diálogo
[Patrícia Osses] Parecia um conto. Transpor um edifício inteiro a cem metros de seu lugar original. E com ele a forte identidade da sua arquitetura, uma densidade respeitável e algumas toneladas de concreto e ferro.
[Ozino Esteván] Um dia acordei ouvindo a música sob a qual iria a morrer (ou cujo primeiro acorde me faria nascer). Não se sabe muito bem que momento pretérito era aquele, mas que era o único possível, tempo flutuante entre dois pontos que são um só e não são nada.
[PO] Pensei que um edifício precisava ser destruído pra que o outro, exatamente igual, existisse. Se eles pudessem conversar, durante aquele breve momento em que chegaram a existir ao mesmo tempo, suas vozes talvez assumissem a forma do timbre de um violoncello, de densidade igualmente respeitável.
[OE] As palavras que escrevo estão para exorcizar alguma iminência de renascimento ou por alguma pretensão de já estar morto. Não me refiro ao desenho geométrico invisível aos olhos corriqueiros e semânticos, senão ao murmulho que os rejeita a favor do ouvido (del olvido), ao sussurro que de sua aspereza e gravidade não é nada que não linguagem, compreensível enquanto tal.
[PO] Vivaldi redigiu esse diálogo em seu “Concerto em Sol menor para dois violoncellos”. Repetição, sobreposição, ecos, reflexos, perguntas e respostas emprestadas aos edifícios durante o breve momento em que foram simultâneos.
[OE] Os dois pontos, que não são mais que sentidos opostos de uma mesma direção, nos enfrentam encarando-nos aos olhos e golpeando-nos às costas. No entanto, nenhum dos dois está de todo presente. O primeiro se esvai sob uma névoa de impossibilidade de memória (apesar de fatos fictícios que comprovam seu acontecimento) e nos deixa abertas apenas as portas de um sonho ideal que é a realidade. O segundo se diz capaz de existir e nos obriga a uma aproximação indeterminada, que quiçá já haja ocorrido. O desejamos inalcançável, o humilhamos com letras solitárias e o pintamos de cores inconcebíveis, como, por exemplo, o bórgio.
[PO] Uma igreja, na sua função mais nobre, serve de caixa de ressonância a órgãos, vozes, instrumentos. A caixa de concreto do(s) edifício(s), ascendente como uma igreja, finalmente cumpre sua função sonora, estendendo a caixa do violoncello à escala arquitetônica.
[OE] A factibilidade (a realidade) do segundo nos faz criar (nos faz sonhar) o primeiro. Ambos existem a todo momento, que dura um só instante. Há quem diga que são idênticos e que todo esforço para com eles é estéril. Há quem diga que são similares, talvez sincrônicos ou consecutivos. E há torpes que dizem serem semelhantes.
[PO] Realizar a primeira ação na nova galeria, antes desta ser ocupada.
Realizar a última ação na original, momentos antes de sua destruição.
Esse aspecto, apesar de invisível, era muito importante: os dois edifícios se tangenciam levemente, pelo roçar dessas ações.
O concerto se realiza finalmente no vídeo, quando músicos/edifícios/instrumentos se encontram em telas paralelas, e unidos pela onipresença de um piano, também invisível, ao fundo.
[OE] Acordei ouvindo algo inexplicável, indescritível; tentei pensar, então, com uma linguagem primeira um acontecimento último, irredutível a uma mera imagem. Me disse ridículo. A minha frente podia ver a mim mesmo e podia ouvir o que ouvia. Já não sabia mais se ouvia ou se ouvia o que ouvia.
[PO] É como se a primeira galeria existisse permanentemente dentro da segunda, mas em forma de fantasma, sombra ou passado.
Há o benefício da dúvida para os que têm memória. Se se está em um lugar ou em outro. Se são realmente dois lugares ou um. E o da melancolia inerente a toda destruição, ainda que acompanhada de uma reconstrução simultânea. Para isso devem servir os adágios e lentos de um concerto, neste caso quase transmutado em réquiem.
[OE] Num instante, que é eterno, voltei a ser um, mas entendi algo inverificavelmente verdadeiro: que ambos devem existir para que eu possa continuar existindo.
- Ficha técnica
- Projeto e realização: Patricia Osses
- Músicos: Daniela Paciello – violoncello
- Guilherme Faria – violoncello e piano
- Captação e finalização: Caio Polesi
- Câmera: Samira Alves
- Concerto para dois violoncellos em Sol menor
- Antonio Vivaldi (1679 – 1741)