Nos últimos anos o tema mobilidade tem entrado com força no debate intelectual. De maneira pouco usual, tem sido instalado um consenso sobre a necessidade de exceder os paradigmas estáticos do estudo do social, impulsionando a produção de um pensamento da mobilidade. A sociedade não se organiza mais entorno do não móvel e estável, mas sim entorno da circulação de fluxos de bens, tecnologias, objetos, imagens, textos, saberes, infraestruturas, etc., cada vez mais globalizados. O sociólogo inglês John Urry é, sem dúvida, o autor que melhor tem representado esse projeto, chegando a propor a mobilidade como principal objeto de estudo das ciências sociais contemporâneas. As mobilidades -nos diz Urry – estão na base de novas formas sócio-espaciais de interação e coordenação, baseadas em movimentos e conexão múltiplas, em redes e circuitos que se tornam obsoletos (estáticos) como estrutura ou Nação. A natureza do social reside em seu caráter maleável e mutável e não mais em sua solidez e permanência. A perspicácia dessa perspectiva tem que correlacionar a aparição de uma série de conceitos (sociedade em rede, modernidade líquida, ambientes móveis, Homem móvel, hipermobilidade, nomadismo,entre outros), que buscam dar conta do surgimento de uma “vida móvel”.
É difícil contestar a situação sobre a qual repousam estes enfoques. É um fato que atualmente os principais debates políticos-intelectuais têm a mobilidade como um de seus temas preferidos, onde se incluem problemas ligados aos deslocamentos transnacionais, a imigração, ao direito à circulação, às infraestruturas de transporte, entre muitos outros. Não é por acaso, por exemplo, que os grandes industriais da Peugeot–Citroën estão ligados à criação da plataforma acadêmica internacional, “Instituto para a cidade em movimento”.
Entretanto, o enfoque da mobilidade pode ser algo enganador, se aplicado sem certa atenção metodológica. É geralmente o problema que se gera quando a chamada mudança de paradigma vem acompanhada de um efeito de moda e emitida através de grandes conceitos com fundamentos que buscam, exatamente, resistir aos casos locais para poder estabelecer-se como gerais. Um dos perigos é transformar-se em advogado de um paradigma sem alcançar e dar conta do que implica, concretamente, este movimento, nomadismo e circulação de objetos e pessoas. Se a chamada “sociedade móvel” existe, necessita ser demonstrada empiricamente, através de métodos de acordo com sua natureza, e examinada através de ferramentas que permitam fazer seus efeitos mais inteligíveis.
O estudo do uso da bicicleta urbana
Se há um campo que precisa ampliar seus instrumentos de investigação, é o do uso da bicicleta urbana. Com a referência de cidades como Amsterdã e Copenhague, a promoção desse meio de transporte se transformou em um dos temas fetiches dos policy-making de todo o mundo, um verdadeiro sonho para as metrópoles que desejam inscrever-se na chamada cultura da ‘mobilidade sustentável’. O projeto de ‘cidades inteligentes’ e interconectadas, eficientes em termos de energia e com cidadãos sensíveis em relação ao meio ambiente, tem a bicicleta como filho privilegiado. Uma ilustração clara, que evidencia essa ideia é a rápida mundialização dos sistemas de bicicletas de uso livre, hoje presentes em mais de 120 cidades de todo o planeta. Como mostra Dennis e Urry, um mundo pós-automobilista construído em torno de uma ecologia política impulsionada pela presença cada vez mais importante da bicicleta e outros meios de transporte.
Ao mesmo tempo, mais e mais cidades se dizem sensíveis ao desenvolvimento do uso da bicicleta como meio de transporte. Estudos acadêmicos sobre a matéria parecem, no entanto, receosos em reconhecer a bicicleta como objeto de estudo em si. Hoje as investigações predominantes sobre o uso da bicicleta tendem a enfatizar a identificação de macro-variáveis que expliquem fatores incidentes na massificação de seu uso. No geral trata-se de perspectivas em engenharia, economia e sociologia em transporte, onde o interesse é compreender as causas institucionais, comportamentais e infraestruturais viáveis que causam impacto na circulação da bicicleta, colocando ênfase especial na dimensão funcional e utilitária. Assim, níveis baixos de uso da bicicleta podem ser explicados por uma escassa ou inadequada infraestrutura para sua prática na cidade, por ausência de informação sobre seus benefícios, por estigmatizações ou hábitos culturais que ridicularizam seu uso frente ao ideário dominante do automóvel. Em outras palavras, em matéria de investigações sobre a bicicleta, existe um privilégio claro de perspectivas funcionalistas, orientadas pela quantificação e caracterização de sua prática.
Rumo a metodologias sensíveis do andar na bicicleta
Com a força que está tomando a bicicleta na paisagem urbana, tudo indica que seria saudável complementar essas perspectivas predominantes sobre o uso da bicicleta com outros enforques que permitam aprofundar a compreensão desse fenômeno. Pesquisas do tipo “Origem e Destino” (amplamente predominantes nesse assunto) são, sem dúvida, necessárias para conhecer e caracterizar os deslocamentos, e seus resultados são fundamentais na hora de se executar políticas adequadas a respeito de transporte e planificação urbana. Contudo, esses tipos de pesquisas oferecem somente um panorama geral dessa realidade, tornando invisível outros aspectos da ação de andar de bicicleta, que se tornam igualmente importantes, considerando o trabalho político de instaurar uma cultura da bicicleta em nossas cidades.
Em seguida, gostaria de desenvolver certos elementos consideráveis no estudo da prática urbana da bicicleta. Essas observações não são, em nenhum caso, excludentes em relação aos estudos quantitativos tradicionais na área. Pelo contrário, são complementares, ainda mais quando a evidência continua nos mostrando – e não somente no campo da bicicleta, mas também na educação, saúde, etc. – que a única maneira de incidir na “agenda” pública é dispondo de códigos e gráficos contundentes sobre a mesa. É o monopólio dos códigos no mundo político. Todavia, abordarei aqui outra dimensões menos evidentes e espetaculares, não por isso menos importantes na hora de interrogarmos sobre o que significa concretamente andar de bicicleta na cidade.
Estudar o andar de bicicleta num situação
Andar de bicicleta não se reduz à execução de um plano preestabelecido que consistirá em se deslocar de um ponto A para um ponto B. É também uma experiência que acontece no tempo e no espaço, onde de desdobram acontecimentos antes, durante e depois de sua prática. O desafio metodológico é não se limitar a identificar a lista de razões pelas quais as pessoas sobem em uma bicicleta, mas também compreender o que se sucede durante esse deslocamento.
Nesse sentido, é uma prática que não pode ser estudada independentemente do lugar da onde se realiza, das emoções que vão se desencadeando, dos automóveis, pedestres, caminhos, do calor e da chuva, entre outros fatores que podem acompanhar ou criar obstáculos em sua execução. O uso da bicicleta é uma ação ativa e é, sobretudo, imerso em uma ecologia, em emoções e materialidades, rodeada de ruídos e outras entidades que habitam o território urbano.
Se assumirmos que se trata de uma atividade essencialmente ativa e situada, concluímos evidentemente que se requerem instrumentos de registro in situ, que acompanhem seu desenvolvimento em vez de objetivá-lo. Requerem-se metodologias móveis – como são chamadas por Watts e Urry (2008) -, técnicas de investigação que permitam o “andar com”, observar o movimento desde seu âmago, em seu processo de provocação e realização.
Essas técnicas têm tido um desenvolvimento original no campo de estudo do caminhar,(ver aqui), encontrando, entre suas linhas mais radicais, os passeios comentados. Esta técnica consiste em acompanhar a experiência e o corpo do passante (ser a sombra de seu caminhar) de onde o investigador interrompe tudo para deixar-se levar pelas aplicações, descrições e emoções das pessoas que acompanha. Busca-se se manter aberto ao desdobramento do acontecimento em processo de atuação, incluindo, por consequência, a dimensão móvel e corporalizada da ação. Essa metodologia permite não somente acompanhar o trajeto, mas também participar do mesmo, através de perguntas, apreensões, reflexões e digressões. O pressuposto dessa metodologia é que as pessoas que se acompanham em seu itinerário dispõem de competências urbanas, e sejam capazes de perceber as ações, emoções e situações que vão vivendo no ato de caminhar. Em outras palavras, é um método que se apoia na capacidade reflexiva das pessoas que estuda. Dessa forma, o futuro urbano se escreve ao mesmo tempo que se experimenta. Um interessante trabalho nessa perspectiva é o que realizou a arquiteta chilena Karen Andersen (2009), que realizou um estudo sobre transeuntes cotidianos de uma praça pública com o fim de traçar os contornos sensíveis e expressivos desse lugar antes de sua renovação urbana.
Atualmente diferentes autores estão desenvolvendo estudos sobre a bicicleta através de perspectivas similares as utilizadas já há anos para o estudo do caminhar. Talvez a referência mais importante no assunto é o livro Cycling and Society (2009) editado por Rosen, Cox e Horton, no qual é possível encontrar alguns artigos que indagam – através de diferentes técnicas ( diário de tempo e espaço, observação participante, rastreamento de pessoas..) o uso da bicicleta dentro da dimensão experimental e pragmática. Na mesma linha, pode-se mencionar o trabalho de Phil Jones, que mostra – inspirado em perspectivas performativas de espaço – como o ciclista, ao mesmo tempo em que se desloca, vai explorando seu próprio corpo e como que o espaço-do-ciclista vai se emergindo a medida que se desloca.
A bicicleta como tecnologia do corpo
Isso nos leva ao segundo aspecto a ser desenvolvido. Assim como caminhar, a atividade de andar de bicicleta pela cidade é uma prática essencialmente corporal e consequentemente política. O antropólogo francês Marcel Mauss descreveu o caminhar como uma técnica do corpo que se aprende, desenvolve, gesticula, encena e modula segundo as possibilidades e as circunstancias que o entorno providencia. A história da humanidade começa nesses primeiros passos. Em seu livro Sociologia e Antropologia (1955), Mauss grifa que o caminhar é uma atividade específica de cada cultura, uma atividade que se aprende e não pode tomar-se como natural e idêntica a si mesma em todas as partes. As pessoas não só são reconhecidas por aquilo que dizem ou como se comportam, mas também pelo modo que caminham. É por isso que Mauss propõe uma verdadeira topologia antropológica das motricidades do pedestre.
Se isso é verdade para o caminhar, no ato de andar de bicicleta isso se radicaliza, posto que o compromisso do corpo é muito maior e está mais intimamente ligado a outro artefato: a bicicleta. O corpo da bicicleta se faz único com o corpo de seu condutor, permutando suas propriedades e compondo uma verdadeira dança estrutural. O ciclista deve por a prova uma série de competências práticas e perceptivas (olfato, ruídos, reflexos, ritmo, etc.) que são as que o permitem circular com segurança. Normalmente o bom ciclista dispõe de formas de comportamento e astúcias necessárias para adequar-se a cada situação – como a imprudência de um motorista, a travessia de uma ciclovia ou uma chuva surpresa. Um exemplo claro disso é o papel que o som ambiente pode exercer. Ele pode se tornar um recurso segundo a maneira individual de conduzir a bicicleta: alguns podem fazê-lo escutando música (abre suas vistas e a música os transporta) enquanto outros, o som ambiente é o equivalente ao espelho retrovisor de um automóvel.
Didier Tronchet mostra que “o sentimento de fragilidade que habita cada ciclista aguça sua atenção ao mundo”. É exatamente esse sentimento que obriga o ciclista a preparar seu corpo ao inesperado e desenvolver competências situadas. Como mostra Michel De Certeau em suas belas reflexões sobre a caminhada, o ato de andar de bicicletas é também político: o ciclista vai desenhando sua própria forma de circular e escrever a cidade, sua própria maneira de transgredir e de se apropriar dos lugares que atravessa.
Em uma metáfora inspiradora, Walter Benjamin diz que deveria “vencer o capitalismo caminhando”. A bicicleta permite ampliar essa metáfora, já que se trata de uma tecnologia equipada do corpo.
Uma forma de promover o uso da bicicleta é multiplicando suas formas de estudo
Os aspectos que acabamos de desenvolver seguem como a “caixa negra” dentro do estudos sobre a bicicleta, acima de tudo comparado à diversidade de investigações que existem no campo de mobilidade automobilizada. A razão é bem simples: a bicicleta é ainda uma prática demasiada isolada para garantir tempo e dinheiro a seu estudo…
Boas políticas sobre o assunto não só necessitam de insumos sobre o número de bicicletas circulando, mas também insumos sobre o que acontece quando estas circulam, como se pode recompor os ambientes e ecologias urbanas. A discussão sobre a mobilidade vai além de gráficos e códigos – senão pode reduzir-se a uma questão de custo-benefício. Deve ser pensada também em termos de acessibilidade, segurança, ambiente, familiaridade, medo, prazer, história, etc. A bicicleta não pode ser considerada uma simples moda que vai se instalar naturalmente: é o resultado de um processo muito mais complexo, que envolvem instituições e infraestruturas, aprendizagens coletivas e individuais, práticas e competências urbanas.
Quando se esquece dessas dimensões, corre-se o risco de aplicar políticas e infraestruturas desconectadas do viver ordinário das pessoas. Trata-se de um campo muito importante para deixa-lo ao arbítrio único de formalizações estadísticas. Uma cultura da bicicleta em nossas cidades requere saberes interdisciplinários; não como elementos acessórios, mas como aspectos construtivos de espaços estéticos, sociais e ambientalmente mais justos. Em outras palavras é crucial se aproximar desse saber encarnado que vão desenvolver os ciclistas e complementa-lo com o saber teórico.
A bicicleta, como meio de transporte, passa principalmente por um compromisso político das autoridades por gerar as condições para sua prática. A tarefa também passa pela ousadia de diferentes disciplinas – como a geografia, antropologia, arte, paisagismo, história, arquitetura, sociologia, psicologia, engenharia, entre muitas outras – de atrever-se a levar a sério a bicicleta como objeto de estudo e exploração. Nesse campo, estão muito mais avançados os diferentes grupos de ciclistas, que se organizam em diferentes partes do mundo.
Se a capital dinamarquesa fez com que mais de 50% dos seus habitantes se deslocassem de bicicleta para o trabalho – transformando-se na “Bike City” por excelência -, é graças às múltiplas ‘agendas’ (políticas, acadêmicas, artísticas, arquitetônicas, econômicas, etc.) que aplicaram em torno desse meio de transporte. A bicicleta é uma responsabilidade política que não somente solicita a atenção de coletivos militantes ou ecologistas, mas também de cidadãos e disciplinas comprometidas com espaços mais limpos e democráticos.
Por Martin Tironi. Membro do Colectivo Labici. Doutorando no no Centro de Sociologia de Inovação, Escola de Minas de Paris.