Algumas reflexões sobre a intervenção gráfica Vestígios de Marcha, realizada no espaço público entre as ruas Padre Alonso Ovalle, Nataniel Cox, Cóndor y Eleutério Ramírez (Santiago Centro, Metro Moneda), no contexto das marchas estudantis e da agitação social em Santiago de Chile.
Por Verónica Muñoz, Fotografía – Bertina Pardo, Colaboradora – Karen Schumacher, Artista Visual
O centro de Santiago sofreu os vestígios das multidões que reclamam por reinvindicações sociais. Seu trânsito pelas principais ruas do centro da cidade, arrasou com tudo, lixeiras, pichações, publicidade e sinalização, entre outras coisas. Estas últimas são o ponto de partida para a intervenção Vestígios de Marcha; desenhos sobre o pavimento que ilustram as pegadas de uma manada composta de várias espécies e que em seu rastro semearam a falta de sinalização.
Vestígios de Marcha nasce da observação do trânsito dos espectadores pelas ruas Padre Alonso Ovalle, Nataniel Cox, Cóndor y Eleuterio Ramírez, área de caráter residencial cujo maior fluxo de transeuntes está determinado pelos horários de trabalho, de início e término das jornadas, mais passeios ou caminhadas dominicais, devido a sua proximidade com o Parque Almagro. O objetivo, fazer presente a falta dos elementos informativos característicos da cidade, a partir de grafismos, cujo processo permite interagir com os espectadores, como uma oficina ao ar livre.
A erupção de obras no espaço público tem inevitáveis elementos característicos estrategicamente relacionados entre si: em primeiro lugar a localização que dá subsídios ao contexto físico da obra e com cujos elementos que os constituem, deve dialogar visualmente para uma maior eficácia na operação, fruto disto, muito das intervenções urbanas ligadas à área gráfica e ao objeto tem o caráter de local específico. Outro elemento importante é a presença e a relação com o transeunte-espectador, para quem este formato (no geral) oferece possibilidades mais amplas de relação com os produtos artísticos. Tal como coloca Nicolás Bourriaud no seu livro Estética Relacional, a partir das obras de Félix González-Torres: (…) Nos dois casos incitava “ ao que vê” a encontrar seu lugar em um dispositivo, a viver, completar o trabalho e participar da elaboração do sentido”. (Bourriaud, 2008).
Finalmente, resgatando a característica dinâmica da obra no espaço público, cujo encontro com o real, fora do asséptico espaço das galerias ou dos museus, permitindo atuar muitas vezes como catalizador de cenários e reações sociais impensadas, e em cuja encenação se instalam no plano estrutural da obra, elementos não contemplados que destacam na fricção dos três elementos anunciados anteriormente.
Contudo, a pesar das reflexões em torno ao seu contexto e os elementos que em maior medida a compõe (localização, transeunte-espectador, dinamismo) realizaremos desta vez, uma nova reflexão em torno a outros elementos que se põe em jogo na dinâmica das obras em espaço público, e como a estas se incorporam também, os já revisados.
Sobre o Espaço Público
Sem adentrarmos nas teorias que refletem sobre seus usos ou sua natureza (Habermas ou Foucault, por exemplo) tomaremos o espaço público como âmbito que contêm o conflito social, que tem distintas posições dependendo da conjuntura e da cidade que se trata (Carrión, 2004) cuja utilização como localização de uma obra, consequentemente, deve incorporar na sua estrutura as possíveis variáveis no sentido da intervenção a partir dos estímulos do meio, considerados ou não.
Por espaço público nos referimos também, em oposição ao espaço urbano, cuja localização na cidade o define, sem que por ele seja necessariamente um espaço de acesso público ou que contenha as dinâmicas em torno das relações que se desenvolvem nos espaços de livre acesso, exemplo disso é um caixa eletrônico ou o hall de um edifício de apartamentos ou de escritórios.
Vestígios de Marcha se realiza na calçada, cujo primeiro significado da RAE corresponde a caminho estreito, formado usualmente pelo trânsito de pedestres e gado. Não é tão distante então, a relação entre sua localização, a linguagem e o representado.
Sobre a Materialidade
A urgência do trabalho no espaço público, devido ao seu caráter ilegal, geralmente obriga a buscar soluções onde a rapidez e a eficiência sejam os pilares de sua confecção. A pintura foi comprimida em uma lata e é expulsa com pressa e eficácia sobre qualquer superfície, em poucos segundos, graças ao spray. Porém, muitos artistas que desenvolvem seu trabalho em espaço público tem mantido o pigmento acrílico como meio de produção, onde a elaboração da obra necessita, por força e em relação a complexidade da proposta, um tempo de permanência no lugar da intervenção.
Durante a intervenção, apesar de ser realizada durante o final de semana, vários transeuntes se aproximaram para perguntar e conversar sobre a intervenção. Além de identifica-la como um benefício à comunidade, alguns perguntaram pelo receptor, quem era? O município? As pessoas? Bom, todos aqueles que transitarem por ali são os receptores destes vestígios. Um homem de aproximadamente 45 anos, que estava a caminho da sua casa, se aproximou para perguntar se somente haviam desenhos nos espaços onde não faltavam as sinalizações, ao escutar uma resposta afirmativa da nossa aprte, não só sentiu uma satisfação por ter sido capaz de dar-se conta, como isto também provocou tamanha felicidade que foi para a sua casa buscar sua esposa e voltou com ela para explica-la o que havia deduzido.
Se Vestígios de Marcha não se destaca pela sua especificidade na construção da imagem e tão pouco necessitava de uma excessiva presença em cada uma das 10 locações (de 10 a 15 minutos em média) sua materialidade estava sujeita a duas questões estruturais relacionadas com sua localização. Por um lado, o pigmento acrílico permite a permanência da imagem sobre a calçada, resistindo durante vários dias, ao trânsito de pedestres, conseguindo estender seu potencial relacional. Por outro lado, seus objetos de questionamento, o restante da sinalização arrancada e a localização da mesma, determinaram sobre a decisão cromática, cores e tonalidades ausentes nos territórios da intervenção.
Sobre os Receptores
A obra relacional, considera como parte fundamental na construção do sentido aos receptores, destaca o feito de que não se proponha criar objetos mas sim situações e encontros. A chamada “estética relacional” é necessária – disse Ranciere – quando a política fracassou precisamente na tarefa de criar sociabilidade: “mediante pequenos serviços, o artista corrige as falhas do vínculo social.” (Polanco, 2007).
Contudo, devido a que a localização da intervenção se encontre no meu próprio trajeto cotidiano, desde o lar até o transporte público e vice-e-versa, cada dia por cinco quadras observo a efetividade e fracasso do potencial relacional que sua localização e materialidade teoricamente asseguram.
Durante sua construção geramos cinco instâncias de trocas entre os espectadores e a intervenção, que a reconheceram ainda como “um aporte ao bairro”, logo ao terceiro dia, o vínculo chegava ao seu apogeu máximo quando três dos dez vestígios sofreram intervenções da comunidade (supostamente, já que não há clareza sobre o autor) removendo o restante da sinalização que dava origem aos vestígios da nossa intervenção. Porém em cada trajeto, observo o reconhecimento e atenção que gera a intervenção, em sua maioria nas crianças, que dedicam um tempo ou brincam com ela. Enquanto que o resto dos transeuntes a ignoram, desconhecem ou dedicam um olhar furtivo sem mover nem um pouco a cabeça. Onde fica sua dimensão relacional? Onde está a geração de lugares de convívio?
No terreno plástico, de onde sou proveniente, minha intervenção tinha um alto potencial relacional durante seu processo, o que usualmente, e esta não foi exceção, variam entre a indiferença e a incompreensão, como no interesse e a participação. Qualquer que seja a missão artística, se faz presente de maneira evidente na comunidade.
Contudo, a relação com a operação foi impensada, três dias após Vestígios de Marcha, sem ter clareza sobre que foi ou quem foram, nem suas razões, sofreram intervenções de terceiros. Isso nos remete a natureza dúctil da intervenção. No espaço público, o início e o sentido estão claros, mas o resultado ou o desfecho estão abandonados a própria sorte. Um corte rente ao solo em três dos vestígios correspondentes a mesma quadra, foi a resposta dos espectadores a estes desenhos que alarmavam sobre a ausência de um elemento da cidade e metaforizavam sobre os autores. A materialidade da cidade se dispõe com os passeios dos usuários, os que, ao mesmo tempo portam em suas corporalidades as marcas que os preparam a certos tipos de administração de pedestres (Plaza, 2009), uma extração que responde a relação do espectador com sua obra, em um terreno que também lhe é pertencente e sobre ele que possuem algo a dizer.
A questão ausente na produção talvez não somente nesta intervenção, parece relacionar-se com o encontro cotidiano com aquele que “intervém” e que a causa de sua naturalização, perde aquele status e passa a formar parte do entorno. Mas também parece estar na sua materialidade, pertinente ao espaço público, e que a distância de ser um elemento que distrai e até disfuncional da ordem estabelecida na cidade (Plaza, 2011). Onde fica sua dimensão relacional então? Bom, na realização-processo e na resposta-recepção, e não no objeto em si.
Bibliografia
Bourriaud, N. (2008). Estética Relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora S.A.
Plaza, P. R. (Segundo semestre de 2009). Estética, cultura popular y masiva en la ciudad. Revista Imago. UPLA, págs. 87-96.
Carrión, F., 2004. Espacio Público, punto de partida para la alteridad. En: Ciudad e Inclusión: por el derecho a la ciudad. Colombia: Corporación Region, pp. 55 – 79.
Plaza, P. R., 2011. Pintura Callejera Chilena. Manufactura estética y provocación teórica. 1° ed. Santiago de Chile: Ocho Libros Editores.
Polanco, A. F., 2007. Resonancias: Arte y Vida. Una lectura de Jacques Rancière. Revista 10, Issue http://issuu.com/websicons4u/docs/revista10, pp. 47 – 56.