Na região metropolitana de Buenos Aires, devido a crise do transporte público de passageiros, nos últimos anos tem crescido exponencialmente a oferta de serviços não convencionais. Trata-se dos charters (vans, micro-ônibus), que consolidam um sistema alternativo de mobilidade. Qual papel assumem na cidade, a quem beneficia e de que modo complementam a rede já composta pelos ônibus, trens e metros, são as principais questões a serem respondidas.
No começo dos anos 90 se aguça a crise do sistema de mobilidade metropolitana de Buenos Aires. Desde então a desestruturação dos serviços públicos urbanos e o consumo extensivo do solo na extrema periferia fizeram do automóvel particular o meio de transporte dominante na cidade.
E enquanto por um lado se melhora e se estende a rede de autopistas urbanas, por outro, se renega ao transporte público motorizado e ferroviário. E tal situação afeta diretamente a qualidade do serviço em termos de: áreas de cobertura, frequências efetivas, tempos de translado, grau de conforto oferecido.
Frente a este cenário, a cidade parecia organizar-se em três velocidades: a primeira, formada por 15% da população, que se desloca por autopistas; outra, formada por 60% restante, que se move por ruas e avenidas; e a última permanece imóvel, com cerca de 25% dos habitantes sem possibilidade de transladar-se.
Com isso, quem não pode enfrentar os custos que implicam deslocar-se com automóvel próprio, optam por suportar as condições que hoje oferece o transporte público. Frente a esta polarização crescente, tem surgido alternativas intermediárias no sistema de mobilidade: se trata dos charters (vans), que hoje atropelam a cidade.
Surgiram a partir de serviços “porta a porta” que algumas empresas privadas começaram a oferecer aos seus empregados para assegurar sua presença a tempo. E a medida que os serviços urbanos se deterioravam, seu uso se foi expandindo para outros usuários e cobriram cada vez maiores distâncias e quantidade de viagens.
As qualidades do serviço
Os charters (vans) são utilizados para percorrer – geralmente – distâncias maiores que 10km. De modo que a maior demanda se encontra nos municípios dentro da área de conturbação da grande Buenos Aires do segundo e terceiro cordão. San Isidro, Morón, Tigre y Pilar constituem alguns dos lugares chave de origem-destino.
São distritos que foram povoados e consolidaram-se conforme a extensão dos trilhos da primeira linha e os eixos viários posteriores, recheando os interstícios ou criando novos eixos de expansão ao longo dos traçados das autopistas. É notável o caso do oeste, onde a autopista e as vias ferroviárias se encontram muito próximas e entretanto, as deploráveis condições em que se viaja nos trens tem impulsionado a grande quantidade de usuários demandando charters.
Contudo, muitos dos serviços diários chegam a cobrir raios de até 100 km, com foco no Microcentro da cidade de Buenos Aires, tal como: La Plata, Luján, Las Heras y Lobos. Em alguns casos se conta com transportes exclusivos a partir das principais urbanizações fechadas (Nordelta, santa Bárbara, etc).
O sistema de cobrança frequentemente repete-se: o preço se combina entre as partes e se premia ao passageiro frequente com descontos de até 40%. De modo que com talões de cheques ou abonos mensais cada viagem se torna sensivelmente mais econômica. Segundo distância e destino, uma viagem eventual frequentemente custa entre 7 e 10 dólares.
Os trajetos que realizam tendem predominantemente a sobrepor-se com as rotas já cobertas pelo transporte público motorizado. Mas, dado que adentram nos bairros periféricos e chegam a área central da cidade, os usuários procuram evitar lotações, longas esperas e não cumprimento de horários.
O tamanho dos veículos foi crescendo com o tempo e hoje convivem kombis, micro ónibus e oônibus. Mesmo tendo 350 empresas habilitadas pela comissão Nacional de regulação do transporte (CNRT), a prestação de serviço expandiu informalmente de maneira exponencial.
O marco regulatório
Em 1994 a CNRT definiu pela primeira vez o marco regulatório destes serviços alternativos de transporte de passageiros, denominando-os como “oferta livre” através do Decreto 656/94: “Os charters são Serviços Urbanos Básicos destinados a transladar regularmente um contingente entre um número limitado de origens e destinos predeterminados pelo preço que livremente se acerte”.
Por sua parte, a Resolução 362/94 estabelece que os charters deverão transladar unicamente passageiros sentados e deverão contar com uma identificação externa. Para a inscrição na CNRT, deve-se apresentar uma lista de passageiros a qual poderá ser alterada em até 40$ sem intervenção do órgão.
Assim mesmo, para os serviços de oferta livre na Cidade de Buenos Aires se determinaram 14 centros de embarque: Constitución, Obelisco, Correo Central, Retiro, Once, Chacarita, Plaza Italia, Caballito, Barrancas de Belgrano, Cabildo y Juramento, Liniers, Puente Saavedra, Plaza de los Virreyes y Nueva Pompeya.
Dentro do correspondente a serviços de oferta livre, se distinguem distintas categorias: serviços urbanos especiais básicos, executivos, contratados, de âmbito portuário e aeroportuário, serviços escolares inter jurisdicionais, e de hipódromos e espetáculos esportivos e culturais.
Finalmente, a partir da mencionada resolução, cada serviço pode ter um máximo de 5 pontos de embarque de passageiros e 5 pontos de desembarque. Por sua vez, cada empresa deverá dispor de 2 veículos declarados (titular e suplente), e realizar diariamente 3 percursos em horários de ida e três de volta.
Quem os utiliza
Existe uma clara distinção na demanda de serviços urbanos especiais por parte de grupos bem diferenciados social e economicamente. Segundo explica a Lic. Susana Kralich, especialista em transporte, isto também pode associar-se com as características polarizadas da expansão urbana: a suburbanização tradicional protagonizada por classes médias e baixas e periurbanização, por grupos melhor posicionados. No primeiro caso se localizam sobre áreas periféricas de baixa densidade e com provisão deficiente ou diretamente ausente de serviços urbanos, entre os que se conta o transporte público.
Esta carência é sub sanada com a demanda de serviços alternativos, principalmente clandestinos. Assim, os charters e kombis representam para eles uma alternativa, as vezes a única, para moverem-se. Ainda que impliquem maiores custos, se compensam com a redução da lotação e tempos de espera e viagem, assim como por uma maior confiabilidade e comodidade.
No segundo caso, são as classes médio-altas e altas que reproduzem a expansão urbana, sob a modalidade predominante dos bairros fechados. Apoiados sobre acessos rápidos a cidade central, se baseiam predominantemente no uso do automóvel particular, e os serviços urbanos especiais como complemento. Estes se constituem assim em uma alternativa a transporte próprio.
Em quanto a oferta, a Lic. Kralich explica que as altas taxas de desemprego, em especial as registradas na década de 90, converteram-se a estes empreendimentos em uma via de solução para centenas de desocupados e sub ocupados. No caso das prestações clandestinas, a evasão de normas de habilitação, operação e a consequente evasão tributária, os permitem oferecer tarifas baixas, em franca competição desleal com os serviços legais, de forma que põe em risco aos seus próprios condutores e passageiros, convertendo-os em um perigo para o resto dos atores na via pública.
Oportunidades que oferece
Para a Lic. Kralich, os charters representam em muitos casos a única opção para o transporte dos setores populares desde as áreas periféricas. Assim também, oferecem uma alternativa ao uso de transporte próprio par aquelas classes média-altas e altas que predominantemente residem em bairros fechados e demandam acessos rápidos a cidade central. Com o qual, este tipo de serviços ocupou um espaço renegado pelo transporte público tradicional.
Com seu reconhecimento oficial – assinala o Arq. Marcelo Hasse, especialista em transporte do “Centro de Estudos de Mobilidade Urbana e Interurbana de Pessoas” – surgiram critérios restritivos de prestação de serviço, entre os que sobressaíam a obrigatoriedade de não ter mais de 4 paradas de origem e somente 3 frequências.
E tentando limitar sua capacidade de operação, vetaram a sua operação nas zonas centrais estratégicas. Contudo – destaca – tudo resultou em vão ante a ausência de controle por parte das autoridades competentes. Neste contexto, as irregularidades na prestação do serviço constituem hoje uma ameaça certa para os usuários.
A falta de inscrição de muitas empresas na CNRT, o transporte frequente de passageiros não sentados, o excesso de pontos de parada e de serviços diários oferecidos, a ausência de cintos de segurança e de infração nos excessos de velocidade máximas tem sido as principais irregularidades detectadas pelos órgãos de fiscalização.
Como emergente de um sistema de transporte público em crise, os charters se instalaram como meio de mobilidade alternativo para vincular a periferia com o centro da cidade. Dado que trabalham sobrea demanda na modalidade de taxi compartilhado, se regem por um princípio de competitividade e não tem regularidade nem continuidade.
Em consequência, com um trânsito em colapso, os charters oferecem hoje uma oportunidade relevante para contribuir a desencorajar o uso do automóvel particular em horários de pico. Para eles deverão gerar um destaque pleno aos marcos regulatórios e apostar em uma complementariedade com os distintos modos de transporte público.
(*) versão adaptada do trabalho publicado “Las combis ganan los clientes que pierde el transporte público””. En: Buenos Aires, Diario Perfil, septiembre 2010.
por Dr. Arq. Guillermo Tella, Doutor em Urbanismo e Lic. Alejandra Potocko, Licenciada em Urbanismo