Lamentavelmente, a única imagem que geralmente brota no ocidente ao referir-se a Dharavi, Bombaim é a cena posta do filme Quem Quer Ser Um Milionário do diretor britânico Danny Boyle. A este prejuízo midiático, que delineia a apocalíptica informalidade – mediante quadros superficiais que não alcançam o retrato a sua dinâmica interna – se chegou a classificar como “pornografia da pobreza”. No outro extremo, o cinema escapista “bollywwodense” geralmente foge da realidade por temor a dar sinais do estado de vulnerabilidade a que estão expostos milhões de habitantes da Índia. Intermediando estes dois, não existe nenhum canal que capture a unicidade auto suficiente da mais favela do continente asiático, onde se poderia chegar a discutir que reside a maior e mais densa quantidade de empreendedores investindo progressivamente em seu capital social.
Este assentamento se encontra hoje ameaçado de desaparecer sob o olhar dos especuladores imobiliários. Mas antes de descrever este advento, Dharavi merece ser retratado como uma entrada ao desenvolvimento das comunidades locais, junto com levantar a injusta e paralisante marca da estigma.
No século VXIII se conhece a Dharavi como uma ilha dentro das seis grandes Koliwadas de Bombaim, ou seja, os mais importantes centros de pesca que permitiu aos Kolis desenvolver esta atividade produtiva. Uma represa no povoado de Sion acelerou os processos de drenagem, impossibilitando a pesca, mas dispondo terrenos para novas migrações. Povoações de Gujarat chegaram a estabelecer uma colônia que trabalhou a cerâmica, enquanto chegaram povos com cortumes de Maharashtra e outros especialistas em tecidos de Uttar Pradesh. Hoje, a diferença de outros assentamentos informais que buscam oportunidades de trabalho fora, a aglomeração de atividades gerada pelos mesmos imigrantes os permite sustentar uma cultura de trabalho no interior da comunidade. É esta consolidação de redes internas a principal ferramenta para torna-los resistentes frente a vulnerabilidade do território.
Parece que, ao mesmo tempo que construiu independência a respeito do resto da cidade, esta mesmo o esqueceu com o mesmo esforço que investiu no cinema bollywoodense. Auto estradas atravessam o bairro formalizando os limites do tecido formal, o trem passa com uma frequência de três minutos, mas não conta com nenhuma parada em seu interior. Impressiona ver como se estende uma pilha de barracas no acostamento coma esperança que no súbito transito, os passageiros do trem conheçam, reconheçam e se tentem com algum dos produtos locais. é evidente a falta de atenção por aprte das autoridades ao ver que dois coletores de dois metros de diâmetro atravessam Dharavi para prover de água a capital, sendo que estes não contam com água corrente.
Entre a preguiça das autoridades e a autogestão dos residentes, tem surgido criativas estratégias para manter o desenvolvimento comunitário. Não figura em Quem Quer Ser Um Milionário o capítulo que descreve o principal capital desenvolvido no interior das comunidades. A característica de aglomerado urbano permitiu traduzir na maior rentabilidade a partir do intercâmbio desde seu interior e de maneira automática, sem o apoio externo uni direcional em que se esforçam muita políticas urbanas para gerar sinergia nas comunidades e assim resgatar bairros vulneráveis. É assim como tem brotado mercados consolidados, escolas clandestinas, templos religiosos, hospitais e até um sistema de permuta que os permite auto abastecer-se. todos os habitantes se converteram em empreendedores: não trabalham nas proximidades da cidade formal, mas desenvolveram a cultura de trabalhar para eles mesmos.
Se calculam 15.000 fábricas informais e seus produtos tem sido distribuídos ao mundo inteiro. Dado que as atividades produtivas ocorrem em quase cada lar, a economia se encontra descentralizada,a escala humana e gera trabalho intensivo com seus produtos artesanais, carentes de tecnologia e muitas vezes reciclados. curiosamente, este modelo econômico deriva em uma morfologia urbana que muitos espaços locais de alta renda hoje promovem. Trata-se de um bairro orgânico, de pedestres, de uso misto e alta densidade, que, devido a falta de infra estrutura e comodidades públicas, os estigmatizou como outra população favelada qualquer.
A ameaça de Dharavi
Esta capacidade de empreendimento – a partir da energia da sobrevivência – está para desaparecerem um anunciado plano do governo municipal para arrasar com o setor e converte-lo em terreno para os especuladores. Enquanto os panos se venderão para as empresas privadas para construir centros comerciais, cinemas e supermercados, prometem erguer edifícios que acomodariam a população atual do bairro (“vocês nos deixam trabalhar e prometemos que vão ter uma casa segura, limpa e barata”). É assim como a metrópole financeira busca posicionar-se através de uma imponente estratégia de reconstrução, alinhando-se com os grandes expoentes de planejamento urbano nas grandes capitais do mundo.
Mas a resistência que manifestou a população de Dharavi provem da mesma organização social que pretendem eliminar. Este impacto atacaria com a maior força a mesma arma que lhes permitiu lidar com a drenagem culpada da obsolescência pesqueira. a população potencializou as redes internas em sua incapacidade de acessar e estabelecer contato com o resto da cidade. Bombaim excluiu Dharavi por não ter poder de demanda sobre ela. É por isso, que na suposta intenção de aderir a população ao tecido formal, paradoxalmente se desmembra a única possibilidade de integração de seus habitantes.
Um projeto que relocaliza os habitantes em torres de milhares de apartamentos de 30m², os privaria de manter certas atividades que tem contribuído para a economia local, principalmente pela sua capacidade de reciclagem e produção de novos materiais. Ao mesmo tempo, o inevitável processo de gentrificação os expulsaria não somente de acessar o solo urbano, mas de consumir os bens e serviços que ali se oferecem.
Para o caso de Dharavi, uma estratégia de desenvolvimento urbano deveria trabalhar em conjunto com o principal capital que se forjou localmente. A qualidade da regeneração urbana reside no feito de considerar as pré existências de maior valor que permitem perpetuar o desenvolvimento em um tempo. Em Dharavi, as redes sociais territorializadas em um grande bairro denso, ativo e de uso misto, sustenta a capacidade de autogestão de seus habitantes. Na medida em que se investem recursos em infra estrutura pública e nos espaços comunitários, se incentivará a ação de um povo que está capacitado para reconstruir-se a si mesmo, estendendo os benefícios mais além dos limites da intervenção. Temos que lembrar, ante tudo, que não se está lidando com uma população favelada qualquer, já que todas estas possuem características distintas. A particularidade de Dharavi é precisamente o feito de gerar o maior e mais denso conjunto de empreendedores do planeta.