No País dos Arquitectos é um podcast criado por Sara Nunes, responsável também pela produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, que tem como objetivo conhecer os profissionais, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa contemporânea de referência. Com pouco mais de 10 milhões de habitantes, Portugal é um país muito instigante em relação a este campo profissional, e sua produção arquitetônica não faz jus à escala populacional ou territorial.
Neste episódio da quinta temporada, Sara conversa com os arquitetos Teresa Novais e Jorge Carvalho, do escritório aNC arquitectos, sobre a Estação Biológica e Galeria da Biodiversidade de Mértola. Ouça a conversa e leia parte da entrevista a seguir.
Sara Nunes: O projecto sobre o qual vamos falar hoje é um projecto que estabelece uma forte relação com o sítio em que se insere: Mértola, o rio Guadiana e o Parque Natural do Vale do Guadiana (PNVG). Imagino que por causa deste projecto já fizeram até Mértola inúmeras viagens. Desafiava-vos a fazerem uma descrição desta paisagem que envolve a região onde o edifício se insere, Jorge.
Jorge Carvalho: Sim, realmente, são muitos quilómetros.
SN: Estamos a falar de quantos quilómetros?
JC: Do Porto são 600 quilómetros, parece-me, sim. Pensando no rectângulo que é Portugal, estamos quase nos vértices, entre Porto e Mértola.
SN: Passam por muitas paisagens diferentes até lá chegarem, não é?
JC: Sim, por um lado, [existe] sempre a paisagem de auto-estrada que é uniforme e em segundo plano as sucessivas paisagens. Isso é sempre um certo esforço, até fisicamente e de tédio. Mas, por outro lado – quando se chega àquele contexto e às tantas sai-se da auto-estrada – mergulha-se ali no contexto do Baixo Guadiana e depois entra-se na zona do Parque Natural. Realmente estamos a entrar num ambiente sonoro, olfactivo e visual, evidentemente, que é diferente do ambiente em que trabalhamos todos os dias.
SN: Sendo um Parque Natural houve algum encontro com animais, não é? É uma zona protegida que tem espécies que só são daquela zona. O próprio Guadiana permite que haja ali quase um microclima e que se desenvolvam ali uma série de espécies.
JC: As excursões são muito balizadas profissionalmente. Ainda não fomos a esses locais onde isso pode acontecer, mas à noite saindo do centro de Mértola só a esfera celeste já nos dá outras regras.
SN: Conseguem ver as estrelas, algo que é mais difícil num contexto urbano.
JC: Sim.
SN: Falando agora deste projecto em concreto: a Estação Biológica e Galeria da Biodiversidade está ainda em desenvolvimento e situa-se num edifício já existente, os antigos celeiros da Empresa Pública de Abastecimento do Cereal (EPAC), que já está abandonado há mais de 40 anos. Pergunto-vos como encontraram este edifício e o que é que decidiram manter e alterar, Teresa?
Teresa Novais: Em bom estado. Encontrámo-lo belissimamente do outro lado do rio. Quando se está em Mértola, ele tem uma presença muito forte na paisagem e temos os celeiros que são os edifícios que estão ao lado. E a estação, a fábrica e os silos são os que têm maior presença na paisagem, mas no fundo são um conjunto muito estável, muito potente que se vê na parte daquela zona que é muito bonita, que se chama Além Rio. Fica em Além Rio porque fica depois do Guadiana. Tem Mértola e depois tem o Além Rio. Só o nome em si é muito inspirador. Nós encontrámos o edifício com uma presença tão forte que praticamente não vamos fazer nada ao edifício. Fazer a arquitectura daquele edifício era, no fundo, fazê-lo reviver da forma como está, sem grande transformação. É um grande exercício de esforço, de contenção, de tirar o melhor e acrescentar muito pouco.
SN: Este edifício — como os ouvintes já tiveram oportunidade de ouvir — é a Estação Biológica e Galeria da Biodiversidade. É um título bastante grande porque ele também inclui em si próprio uma série de valências e uma série de programas aqui que se cosem entre a Arte, a Ciência, a Investigação e o Turismo. Pode-nos contar um bocadinho mais de como é que estas diferentes áreas se cosem dentro do edifício?
JC: Sim. Quando fomos abordados acerca da possibilidade de fazer este projecto pelo Nuno Ferrand, do Centro de Investigação em Biologia (CIBIO), ficámos impressionados com um organigrama que ele fez do programa que não se tratava de um organigrama das partes funcionais do edifício. Tratava-se de um organigrama das valências e das ramificações que o seu funcionamento pode ter no território porque, de facto, é um programa com uma ambição interdisciplinar e de ligação profunda às actividades que existem e que se desejam para este território. Isto enquadra-se também numa estratégia do município de abordar problemas da nossa época na medida em que houve uma fase em que Mértola acolheu o Cláudio Torres. Houve uma fase em que Mértola, a partir da Câmara Municipal, teve uma relação muito forte com a Investigação, em Arqueologia e História.
SN: Mas ligado ao castelo?
JC: Todo o centro histórico por baixo tem vestígios arqueológicos.
SN: Tem história, não é?
JC: Sim. E isso foi uma fase de dezenas de anos muito importante em Mértola e que continua, no entanto – perante os desafios que se colocam às populações e à biodiversidade naquele território – a Câmara de Mértola entendeu também que precisava agora de um outro tipo de conhecimento a trabalhar com os agentes no território. Esse outro tipo de conhecimento tem a ver com o conhecimento em ecologia e investigação científica sobre o território.
SN: Há esta parceria, não é? Entre a Universidade do Porto e a própria…
JC: É o Centro de Investigação em Biologia e a Câmara Municipal de Mértola que fundaram a associação Estação Biológica de Mértola. Os desafios têm muito a ver, por um lado, com a crescente mobilidade e a crescente centralização no litoral das populações; e, por outro lado, com as alterações climáticas que se sentem todos os dias em Mértola, a ameaça de desertificação e, portanto, isto introduz grandes desafios num território que, à partida, já tem uma baixa densidade populacional e uma grande dispersão. Ora isto, por um lado, são qualidades em termos de conservação de ecossistemas; por outro lado, são desafios grandes em termos sociais. E algo que o empreendimento equaciona é como é que o conhecimento científico pode ter um contributo...
SN: Para o desenvolvimento também daquela região, não é?
JC: Exacto.
SN: Ou seja, vocês não estão apenas a construir um edifício. Quando se constrói um edifício, constrói-se com ambições maiores, não é?
JC: Exactamente.
SN: Não só apenas de investigação, mas que essa investigação também possa produzir desenvolvimento económico, maior conhecimento da população e, eventualmente, até atracção para que mais pessoas fiquem em Mértola.
JC: Exactamente. Essa atracção já começou.
SN: Em que sentido?
JC: Porque a Estação Biológica já funciona em instalações provisórias.
SN: Mesmo antes do edifício já houve essa…
TN: Já. Já está lá localizada.
JC: E há missões científicas que vêm ao Parque Natural. E há uma região até mais vasta do que o Parque Natural para estudar, portanto isto já está em marcha. Isto acerca da atracção de outras pessoas que, de certo modo, se deseja fixar, mas que será provavelmente uma população flutuante com missões de trabalho de alguns meses.
SN: Mas vão lá fazer investigação de campo, não é?
JC: Sim.
SN: O edifício serve de apoio a essa investigação…
JC: Exacto. Serve de epicentro a esse trabalho num território de certo modo vasto. De qualquer modo, não se deseja que este complexo seja uma Torre de Marfim onde estão uns cientistas que vêm de fora, não é? Pretende-se que tenha uma relação, de facto, com a comunidade, por um lado, na transmissão de conhecimentos, com os agentes das reservas de caça, da agricultura da região, que podem ter uma aplicação mais directa desse conhecimento; e, por outro lado, numa vertente educativa sendo um centro de acolhimento de visitas muito aberto à população. Procuramos até que isso tivesse reflexo na arquitectura, nomeadamente na forma como há uma zona de encontro dos investigadores que tem também acesso público e é um percurso…
SN: Ou seja, fizeram com que esses percursos se cruzassem, com o público de fora e o público de uma forma mais privada.
JC: Sim. Há uma série de terraços no edifício. Um desses terraços acolhe quem pretender circular pelo edifício sem controlo porque isto também é um comentário, digamos, ou uma situação actual que nós vivemos de uma forma mais geral em que estamos constantemente a ser confrontados com barreiras ao usufruto de determinados espaços públicos e naturais, não é? Através de concessões… Tem de se ir para a esplanada e está música a tocar para usufruir de uma praia. Tem-se uma zona ribeirinha, não é? E aqui, felizmente…
SN: Queria-se retirar esses obstáculos, mas de que maneira é que, por um lado, permitem que o edifício esteja aberto e, por outro, que haja aqui uma questão de segurança, não é?
TN: Sim, mas há percursos exteriores que podem-nos levar… Quer dizer, os terraços do edifício vão ser acessíveis pelo exterior dentro dos percursos públicos que nós tentamos dinamizar à volta do edifício [para que] também seja acessível chegar a esses terraços e ver Mértola do outro lado, portanto não ficar só ao nível térreo, mas, no fundo, ir desenvolvendo várias plataformas. Essas plataformas estão dentro dos próprios edifícios. [Por causa da privacidade], claro que depois a partir de determinado ponto não poderão entrar, mas podem usufruir desses espaços de coisas tão simples como até uma escada de emergência, uma série de emergência, mas que depois está tratada de forma a que possa ser usada como ponto de subida e que faz contraponto com uma série de escadarias que existem do outro lado.
Ouça a entrevista completa aqui e reveja, também, a quarta temporada do podcast No País dos Arquitectos:
- Tomás Salgado do ateliê Risco
- Filipa Guerreiro e Tiago Correia
- Teresa Nunes da Ponte
- Pedro Campos Costa
- José Carlos Nunes de Oliveira
- Pedro Bandeira
- Correia/Ragazzi Arquitectos
- Samuel Gonçalves, do atelier SUMMARY
- Diogo Brito do OODA
Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e Melanie Alves e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.