As cidades grandes como organismos vivos: entrevista com Ana Aragão

No País dos Arquitectos é um podcast criado por Sara Nunes, responsável também pela produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, que tem como objetivo conhecer os profissionais, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa contemporânea de referência. Com pouco mais de 10 milhões de habitantes, Portugal é um país muito instigante em relação a este campo profissional, e sua produção arquitetônica não faz jus à escala populacional ou territorial.

Neste episódio da quinta temporada, Sara conversa com a designer Ana Aragão sobre suas ilustrações dedicadas aos temas da arquitetura e cidades. Ouça a conversa e leia parte da entrevista a seguir.

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Sara Nunes: Fazemos este podcast com o objectivo de construir melhores cidades e hoje vamos estar à conversa com alguém que não constrói cidades, mas que tem desenhado centenas, senão milhares, nestes anos em que tem estado a trabalhar como desenhadora.

São cidades imaginárias e algumas delas estão aqui à nossa volta.

Nós estamos a gravar no teu atelier, Ana, e temos aqui à volta ­(isto para os ouvintes perceberem) uma série de desenhos, de papéis, de canetas com cores diferentes. E estamos, inclusivamente, a gravar numa mesa, que eu acredito que seja também o teu lugar de trabalho e onde desenvolves algumas dessas cidades. Para os ouvintes que ainda não tiveram o privilégio de conhecer o teu trabalho, como é que o tu descreverias, Ana?

Ana Aragão: O meu trabalho, de facto, é, como eu gosto de dizer “arquitectura de papel”, ou vem, pelo menos, na linhagem de muitos arquitectos que fizeram desenhos, mas que não tinham intenção de os concretizar (tal como eu também não tenho). No fundo, o papel basta-me. Fazer qualquer coisa que se relacione com a arquitectura... o meu trabalho, eventualmente, questiona os limites da arquitectura porque são construções ficcionais. Faço coisas que não existiam antes, portanto existe também, tal como na arquitectura, um processo de criação e de autoria, mas elas são apenas para serem habitadas pela...

SN: Pela nossa imaginação...

AA: Pela nossa imaginação, precisamente. O Juhani Pallasmaa dizia isso acerca da ideia do que é mais importante... [Dizia] se até os espaços que nós habitamos com a imaginação são tão fortes como aqueles que habitamos com o corpo. Eu tendo a concordar que, de facto, há lugares habitados só pela imaginação que têm uma validade grande. São capazes de criar memória, tal como os lugares reais. 

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"I was looking everywhere for you". Image © Ana Aragão

SN: Sim, muitas vezes até os lugares associados às nossas memórias de infância que depois são importantes para desenhar... tal como os arquitectos que depois constroem espaços... também são importantes para eles os desenharem...

Sinto que tens um fascínio não só pelo Japão, mas também pela Ásia, até porque já tens duas exposições sobre o Japão. Eu tive oportunidade de ver a exposição que esteve no Museu do Oriente. A do Japão ainda não, mas talvez, quem sabe... Não sei se há planos para essa exposição voltar a vir a Portugal... Também já vi uma exposição tua sobre Macau na Galeria Ap'Arte, se não estou enganada. Pergunto-te de onde é que veio esse fascínio pela Ásia?

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"Tange meets Miyazaki". Image © Ana Aragão

AA: O fascínio vem de viagens que eu fiz e dos convites que foram surgindo. E há algo que me interessa – e sempre me interessou muito, mesmo antes de conhecer paisagens... as paisagens que conheci, nomeadamente de Macau ou do Japão, por exemplo, que depois motivaram, efectivamente, essas duas grandes exposições individuais que aconteceram, felizmente, tanto cá como lá. É bonito haver este espelho espacial, sobretudo a questão da alta densidade. Interessam-me muito os edifícios, as arquitecturas, ou as paisagens urbanas do excesso, de qualquer coisa que não tem limite. É um bocadinho como as pessoas que gostam muito de olhar o mar porque há muito...

SN: Engraçado. Isso está muito visível nos teus desenhos: esse excesso, essas várias camadas, esses vários layers. O teu desenho não é compreensível... Não conseguimos ver todos os detalhes à primeira. Estou a olhar aqui para um desenho e quando me aproximar de certeza que vou descobrir muitos outros objectos que estão escondidos e que, no primeiro olhar, não são visíveis.

AA: Precisamente. Eu gosto muito dessa articulação e elasticidade entre olho e cérebro e mesmo a questão do corpo. Ou seja, temos de nos aproximar para perceber os detalhes.

SN: Temos de fazer um percurso pelos teus desenhos.

AA: Exactamente. Um percurso em torno que, no fundo, corresponde ao percurso que eu também fiz para os desenhar. O meu trabalho é muito físico. Trabalho no estirador, mas os trabalhos grandes são feitos no chão, portanto acaba por haver uma espécie de cubismo do meu corpo, de tentar perceber um objecto que, neste caso, não é tridimensional, mas é outro tipo de construção plana...

SN: Sim, eu gosto muito daquelas tuas fotografias que tu de vez em quando partilhas do teu processo em que estás deitada no chão a desenhar.

AA: Eu mergulho completamente. É um trabalho super físico e interessa-me essa questão do muito, do excesso: questionar quanto é que cabe num pequeno espaço. E também é uma espécie de teimosia. Os meus trabalhos têm sempre uma carga grande de ironia, portanto [existe] esta questão do excesso de informação dos vários layers, do desgaste, do edifício que parece ser habitado. Embora nós não vejamos as pessoas que estão lá dentro ou que saíram, há sempre um lado um bocadinho irónico. Eu digo muitas vezes que – olhando para este tipo de desenhos que têm a ver, por exemplo, com Macau e com o Japão – felizmente nós não habitamos assim. Nós não habitamos aqueles edifícios e, felizmente, eu não faço arquitectura. (risos)

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"The delirious story of the Capsule Tower". Image © Ana Aragão

SN: Agora estavas a dizer uma coisa e realmente é verdade. Poucos são os teus desenhos que têm pessoas. Parece que as pessoas desapareceram nas tuas arquitecturas. Porque é que é assim?

AA: É uma boa pergunta. Eu acho que gosto muito da narrativa. Se olharmos para um desenho meu, ele acaba por ter uma narrativa. Alguém fez aquele scratch, aquele arranhão, aquele entalhe, aquele graffiti naquele edifício, mas desapareceu, portanto é uma espécie de estória que eu não sei contar e por isso mesmo as pessoas também não estão lá porque não é uma narrativa diacrónica que eu possa contar com início, meio e fim. É qualquer coisa que fica em suspenso, portanto se quisermos tem mais a ver com um ensaio. Eu acho que o ensaio faz mais sentido olhando apenas para a arquitectura que, de algum modo, está personificada... ou percebemos que, pelo menos, ela é habitada, ainda que invisível...

SN: Sim porque todas elas têm muitos objectos. Têm estores, têm ventiladores, têm até objectos da cultura pop. Claramente percebemos que nestes edifícios existe vida ou existiu, não é? Poucas vezes existem pessoas. Por acaso nunca tinha pensado nisso. É quase como se as pessoas estivessem abandonadas ou então estivessem escondidas e nós tivéssemos vontade de mergulhar dentro do desenho para conhecer as pessoas. Quem são estas pessoas que habitam, não é?

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"I climbed a bamboo". Image © Ana Aragão

AA: Exactamente. Eu gosto muito dessa ideia da vida em suspenso. Ou seja, nós não sabemos bem. Nós somos voyeurs, um bocadinho como ‘A Janela Indiscreta’. Este atelier tem isto mesmo. Estamos perto de janelas de outras pessoas e assistimos um bocadinho à vida quotidiana delas.

SN: Escolheste bem o atelier, Ana!

AA: Sim. Temos uma vista para um Porto ainda típico. E existe esta ideia de que estamos a espreitar para a vida das pessoas e para qualquer coisa que elas deixaram em suspenso, ou desarrumado, ou por limpar, ou por compor, ou por recuperar, mas elas saíram e não nos contam o que andam a fazer. Acho piada a esta ideia do segredo. Existe uma certa cumplicidade que se estabelece.

Ouça a entrevista completa aqui e reveja, também, a quarta temporada do podcast No País dos Arquitectos:

Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e Melanie Alves e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "As cidades grandes como organismos vivos: entrevista com Ana Aragão" 02 Jul 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1003085/as-cidades-grandes-como-organismos-vivos-entrevista-com-ana-aragao> ISSN 0719-8906

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