Sérgio Ferro é um arquiteto, artista, historiador e crítico de arquitetura brasileiro que, devido à sua atuação política durante a ditadura militar, foi preso e exilado na França na década de 1970. Ao longo de sua carreira, observou e interviu nos espaços de produção da construção civil, desenvolvendo uma crítica à produção das artes plásticas e da arquitetura baseada no processo de construção e seus agentes: o canteiro de obras, as tecnologias, os materiais e o construtor.
Em um contexto histórico dominado por referências eurocêntricas e masculinas, Ferro, junto aos arquitetos Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, formou o Arquitetura Nova, um grupo que propunha debates pautando a produção da arquitetura, o papel social do arquiteto e as relações de produção no canteiro de obras, contrapondo os pensamentos e produções hegemônicos, seja na prática projetual ou na academia. Após exílio, impossibilitado de atuar como arquiteto, dedicou-se à docência na École Nationale Supérieure d'Architecture de Grenoble.
Desde a década de 1970, sua crítica incentiva a reflexão a respeito da função política da arquitetura, não enquanto objeto no espaço, mas enquanto cadeia produtiva, subvertendo o lugar do arquiteto, a importância do desenho e as tecnologias construtivas. Recentemente, a partir de uma parceria entre o Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e a Universidade de Newcastle na Inglaterra, foi criado o grupo de pesquisa TF/TK, Traduzindo Ferro/Transformando conhecimentos, dedicado a consolidar um novo campo de estudos de produção, difundindo a obra escrita do arquiteto.
Giovana Martino: Ao longo do tempo os canteiros de obra passaram por importantes transformações que refletem no edifício final construído. Hoje, a paisagem urbana é tomada por grandes arranha-céus padronizados, uniformes e pouco dinâmicos, ao mesmo tempo que seus canteiros são lugares violentos e de exploração. Você acredita que, na escala como constrói-se hoje, é possível encontrar outras formas de trabalho que reflitam em cidades mais humanas? Retomar a alegria perdida do trabalho?
Sérgio Ferro: Não acredito que, na escala como constrói-se hoje, seja possível encontrar outras formas respeitáveis de trabalho. A própria escala da produção é, em si, manifestação do capitalismo neoliberal dominante: seu gigantismo implica quase obrigatoriamente violência e exploração. Mas, violência e exploração são inerentes ao modo de produção. A relação salarial que é sua essência as tem em seu fundamento. Marx a chama de escravidão. Na verdade, é pior que a escravidão, pois o proprietário de escravos tem interesse em que continuem vivos e com energia para trabalhar. O mesmo não acontece com assalariados, sempre substituíveis por outros disponíveis no exército de reserva de força-de-trabalho, zelosamente mantido pelo capital. Em Liverpool e Manchester a esperança de vida do assalariado industrial masculino por volta de meados do século XIX era de 17 e 15 anos (não me lembro se nesta ordem), com milhares de imigrantes irlandeses prontos para substituí-los.
Para imaginar outras formas de trabalho, temos que pressupor condições totalmente diferentes das usuais. Ou o fim do capitalismo, da relação salarial e de muitas outras mazelas da atualidade, ou, se pensarmos hoje, a passagem de um outro limite, o que exclui um terço da população do Brasil do mercado, o limite da extrema pobreza. Porque lá, e somente lá, há condições de formação de autêntico trabalhador coletivo com possibilidade de espraiar-se para aquém e além do começo e do término do canteiro. Aliás, a prática da arquitetura nestes casos ultrapassa largamente os limites profissionais atuais.
GM: Em que condições você imagina que a industrialização poderia interferir nas relações de trabalho, visando maior autonomia do trabalhador?
SF: Honestamente, eu não creio que a industrialização, como já sugeri acima, trará maior autonomia para o trabalhador. Nem a tecnologia, considerada em sua generalidade. Em 1978, numa intervenção num congresso do Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNPQ), creio ter demonstrado como o desenvolvimento de certas tecnologias, como as da Organização “Científica” do Trabalho (OST) é fortemente indesejável, se adotarmos, como adoto, o ponto de vista da classe trabalhadora.
Voltemos à industrialização. Ela “quebra a oposição do trabalhador, cuja virtuosidade, ainda dominante na manufatura e agora vencida, não tem mais permissão de se rebelar, sendo, antes, permitido ao capital substituir os trabalhadores habilidosos por não habilidosos e, por isso, mais subordinados ao seu controle. Pois a nova classe de trabalhadores [os trabalhadores industriais] (...) modifica o caráter do ateliê inteiro e, segundo sua natureza, é mais dócil ao despotismo do capital.”[1] Em outro local, Marx precisa: “(...) Somente no [sob o domínio do] capital essa relação [de compra e venda da força-de-trabalho] é despojada de todos os adornos políticos, religiosos e outros adornos ideais. Ela é reduzida – na consciência dos dois lados [do capitalista como do trabalhador] – à simples relação de compra e venda”.[2]
No Grundrisse[3], entretanto, Marx havia salientado como esta “simples relação de compra e venda” é, na realidade, extremamente mediada e complexa. “ao tornar-se valor-de-troca um produto (ou uma atividade) não é somente metamorfoseado numa relação quantitativamente determinada (...) mas é preciso que seja ao mesmo tempo metamorfoseado qualitativamente, transposto num outro elemento a fim que duas mercadorias se tornem grandezas [determinadas], possuindo a mesma unidade, que se tornem portanto comensuráveis. Para poder em seguida, enquanto quantum determinado de tempo de trabalho, de grandeza de trabalho determinado , ser comparado a outros quanta de tempo de trabalho, a mercadoria deve primeiro ser transposta em tempo de trabalho, portanto em alguma coisa que difere dela qualitativamente (...): 1) porque ela não é tempo de trabalho enquanto tempo de trabalho, mas tempo de trabalho materializado; tempo de trabalho não sob a forma de movimento, mas de repouso, não sob a forma de processo, mas de resultado; 2) porque ela não é a objetivação tempo de trabalho em geral que não existe senão na representação (que não é ele mesmo senão trabalho separado de sua qualidade, trabalho cuja única diferença é quantitativa), mas o resultado determinado de um trabalho determinado, determinado naturalmente, diferente qualitativamente de outros trabalhos.”[4]
Marx aponta, portanto, a maior “docilidade” do trabalhador industrial, em comparação com o trabalhador manufatureiro (“habilidoso”) e a espessa artificialidade da relação salarial que consideramos “normal”... Não vejo como a industrialização e a permanência do trabalho assalariado podem favorecer a autonomia do trabalhador. Ao contrário, elas o desarmam, enfraquecem e desmobilizam por não possuir mais o monopólio do saber e do saber-fazer, uma característica da subordinação somente formal do trabalho típica da manufatura. O trabalhador manufatureiro tem ainda alguma coisa a perder, seu tesouro secreto, arma de resistência à avidez ilimitada do capital. O que “não tem mais nada a perder” mencionado no último parágrafo do Manifesto do Partido Comunista, é o trabalhador industrial assalariado por sua simples desqualificação. Por isto Marx concentra sua esperança revolucionária na “Grande” indústria dos países desenvolvidos da Europa Ocidental, isto é, quando a massa reunida de trabalhadores não “habilidosos” num local atinge um limite crítico em que, somente em função do número, torna-se apta a um salto qualitativo de tipo revolucionário. Vale lembrar a lição de Benjamin: “ é (...) necessário ‘escovar a história a contra pelo’, para trazer à tona os momentos obnubilados, nos quais apresentam-se possibilidades de rumos distintos daqueles adotados. Desviar a história da barbárie é uma tarefa que implica mudar seu curso.”[5] Foram trabalhadores manufatureiros da construção as principais forças das revoluções de 1848, da Comuna de Paris de 1871 e do sindicalismo revolucionário da passagem do século XIX ao XX. Este sindicalismo, se tivesse sido convocado para uma aliança igualitária com o ecletismo técnico, teria alterado o rumo desencantador da modernidade.
O assalariamento da força de trabalho, esta cascata de abstrações fundamentalmente imaginárias como o Grundrisse o apresenta, é a verdadeira armadilha ilusionista que precede a subordinação levada ao extremo pelo capital em estado de senilidade. Enquanto durar, não há esperança possível de superação do desastre atual. Temos que frear o rumo suicidário tomado pelo neoliberalismo. No nosso campo da construção, a única saída seria talvez “escovar a história a contra pelo” e reinventar alguma coisa semelhante ao encontro perdido entre o ecletismo técnico e o sindicalismo revolucionário. O que pressupõe trabalho autônomo, não assalariado, qualificado, organizado em métiers, e, do outro lado, uma arquitetura que deixa de ser um “outro lado” para se transformar num métier como os outros, o único que falta entre os métiers existentes ou com possibilidade de re-fundação, o que se ocuparia com as interfaces entre os existentes ou restauráveis.
GM: Tanto as artes plásticas quanto a arquitetura são disseminadas e analisadas a partir de sua forma construída finalizada. Você, porém, ao aplicar as leituras d’O Capital de Karl Marx no campo da arquitetura e das artes, se dedicou a analisar o processo de produção e seus produtores. Como você enxerga essa relação entre a arquitetura, seu processo de produção e o resultado final ao longo da história? No que esse processo se assemelha às artes plásticas?
SF: Poderíamos começar citando diretamente Hegel ou Marx, mas vamos atalhar o caminho lembrando a distinção feita entre eles por Adorno:
“Na leitura do existente como texto de seu advir, as dialéticas idealista e materialista se reúnem. Mas enquanto para o idealismo, a história interna da imediatidade a justifica como etapa do conceito [caso de Hegel], esta imediatidade se torna para o materialismo não somente o critério da não-verdade dos conceitos, mas mais ainda da não-verdade do existente imediato” [caso de Marx].” [6]
No vocabulário da arquitetura, diríamos que, para o idealismo, a coisa construída sem dúvida passou por um processo produtivo mas este processo corresponderia à verdade do projeto (na posição de conceito da produção). Mas para a perspectiva marxiana, tanto a obra acabada, como o próprio projeto não têm compromisso imediato com nenhuma verdade. Seu advir, seu modo de vir a ser, encobre a verdade que não é revelada pela aparência. A aparência diz: um agrupamento produtivo de trabalhadores constrói alguma coisa segundo sua capacidade. A verdade é outra: não há agrupamento produtivo coeso, orgânico, mas re-união heterônoma, comandada exteriormente, não de trabalhadores no sentido de indivíduos dotados de vontade própria, mas de indivíduos que venderam previamente sua força-de-trabalho e que no canteiro são movidos pela vontade de um outro, o patrão que comprou sua força-de-trabalho ou seus representantes. Neste segundo caso, as coisas se complicam, nem sempre por bons motivos.
A partir do século XIII e até o fim do século XIX, quase todo o saber-fazer da manufatura da construção estava nas mãos dos trabalhadores. Ele era seu “monopólio” secreto, sua arma de negociação. Evidentemente isto consistia uma aberração para o capital. A partir do segundo período Gótico, todo o classicismo e até os “ismos” do século XIX, a promoção e aceitação da arquitetura como arte liberal foi condicionada inconscientemente, é óbvio, a alguns serviços para grandes deste mundo. Ela deveria ocultar e, se possível desfazer essa dependência. Se não a escondesse, os promotores da arquitetura teriam que pagar a força-de-trabalho segundo as regras do mercado. Isto é, reconhecer a dependência de um saber-fazer custoso para o trabalhador... A taxa de lucro setorial, farta por ser uma produção manufatureira, desabaria.
A arquitetura foi induzida pela força das coisas, como diria Simone de Beauvoir, e sob a cobertura dos “estilos” mencionados acima, a inventar artifícios para evitar tudo o que pudesse revelar e tornar aparente esse saber-fazer. Encobrir o que seria a aparência espontânea desse saber-fazer com outra aparência fantasiosa. Esta manobra provocou, evidentemente, por desarranjar a lógica construtiva a decadência das técnicas construtivas. Foi um dos recursos mais perversos, longos e persistentes para dominação da força-de-trabalho que se arrastou desde o período dito de acumulação primitiva do capital até, como disse, o fim do século XIX. Os trabalhadores foram forçados a degradar ou deixar degradar seu próprio saber-fazer; destruir ou assistir à destruição de sua própria arma de negociação com seus empregadores.
Este processo provocou a ruína e a degradação dos métiers tradicionais, a base desse saber-fazer. Seus restos foram apropriados pelo brain staff da construção a partir do modernismo. Ao mesmo tempo foram promovidos materiais, como o concreto e o ferro, que não faziam parte do saber-fazer histórico dos trabalhadores. Com a possibilidade a partir de então de dominar quase inteiramente a tecnologia de todo o campo da construção, a arquitetura poderia voltar a dialogar francamente com o canteiro de obras e não mais escondê-lo e desgastá-lo. Entretanto por diversos motivos não o fez, salvo no curto e restrito movimento do ecletismo técnico no século XIX. Um destes motivos foi que a vanguarda midiática achou por bem imaginar uma arquitetura que seria produzida com uma tecnologia inexistente, em geral sonhada como industrial e a partir dos novos materiais. Isto é, tecnologias e materiais inutilizáveis como armas de resistência por eles. Uma espécie de science fiction mais ou menos acentuada e bastante irracional – mas muito eficaz na luta de classes. Esta tendência resistiu até praticamente o fim da Segunda Grande Guerra mundial.
A outra razão decorreu das diferenças entre classes sociais. O canteiro de obras das construções, como disse, decaiu drasticamente com a destruição dos métiers tradicionais. Esta decadência pode ser percebida nas construções destinadas às camadas inferiores das sociedades desenvolvidas. A burguesia e a alta classe média, as classes clientes da arquitetura, não aceitariam evidentemente que esta decadência transparecesse nas obras a elas destinadas. Pediram à arquitetura que transfigurasse de algum modo aquilo que, se fosse fiel ao modo real de construção, não se distinguiria dos produtos de massa de baixo. E as diferenças entre classes não apareceriam nos mais expostos dos bens sociais, as propriedades imobiliárias. Inclusive as que distinguem a grande burguesia da pequena burguesia e esta da alta classe média e ainda de todas as nuances hierárquicas permitidas pela “igualdade” democrática.
As artes plásticas hesitaram entre copiar o modelo da arquitetura e proclamar ser seu oposto. Copiaram na estruturação também manufatureira dos grandes ateliers quando a produção envolvia muita gente. Mas, quando a individualização do grande mestre tornou-se dominante, surgiu a necessidade de diferenciação dele, do artista de elite, com relação aos outros trabalhadores manuais. Todos sabem que o arquiteto não constrói, ele desenha somente. Pode, portanto, pretender ser mais facilmente elevado à condição de intelectual liberal, pois desenhar não suja, esfola, deforma as mãos. Mas o pintor que quiser destacar-se no mesmo caminho dos arquitetos não tem como evitar estas marcas do trabalho manual, mesmo que se esconda nos ateliers. A única saída foi então inverter a falsa aparência do trabalho manufatureiro (na construção, sobretudo, atividade da qual participava anteriormente). Ou seja, reivindicar ostensivamente as marcas do trabalho manual do saber-fazer, em oposição ao trabalho social em geral... Naturalmente estas marcas a serem exibidas seriam preparadas para sê-lo. É claro que não poderiam nem podem ainda serem iguais ou semelhantes às do trabalho manufatureiro corriqueiro. Tinham e têm que mostrar origens mais sofisticadas, especiosas, elegantes. Ostentar um virtuosismo extremamente sublimado, leve, raro. Ou seja, o que ficou conhecido como non-finito, sprezzatura, touche, aura e coisas do gênero. O não acabado, o feito com desprezo pelo próprio fazer. Chegar a esta saída exigiu tempo e astúcia, pois o virtuosismo do super artesão que consegue dar ilusão do não produzido, do fetiche, continuou a embasbacar boa parte da clientela, sobretudo a dos novos-ricos. Mas o time da sprezzatura, do enfastio aristocrático resultante da familiaridade com o luxo, foi o mais prezado pelos frequentadores do topo da pirâmide social. Ou seja, a demonstração prezada de (falso, posado) desprezo pelo luxo novinho demais dominou a moda desde o Renascimento.
A definição conveniente de arte plástica não tem nada com isto. A verdadeira definição formulada por W. Morris, a partir de J. Ruskin, é “art is man’s expression of his joy in labour”. Ou seja, arte é manifestação de felicidade, alegria no trabalho, de um trabalho necessariamente não subordinado e opressivo A arte da burguesia se define, ao contrário, como artefato inútil, mas caro e raro. Por isto, a arte tornou-se selecionada pelo mercado de colecionadores, como bem afirmam tanto David Ricardo como Karl Marx. Segundo eles, arte tem preço, mas não tem valor, pois seu preço é determinado pela raridade e não pelo número de horas socialmente médias gastas em sua produção tal como é medido o valor. A raridade (artificial) tem outra função social: se poucos são os eleitos, é porque a grande maioria deve continuar a produzir como todo mundo... E se, como consequência, a obra considerada como de arte pelos colecionadores é altamente valorizada, tanto melhor, pois serve então como forma de reserva na qual o capital que não encontra aplicação rentável engorda sem nada fazer, graças à especulação permanente e crescente em torno de obras de arte em geral.
No presídio Tiradentes pudemos criar um atelier de atividades plásticas com outras finalidades. Sem dúvida, parte de sua produção destinava-se à venda a companheiros ou apoiadores para o sustento de famílias dos prisioneiros. Mas, mesmo assim, a atividade plástica tinha para seus produtores um sentido humano e de resistência ampla e difusa contra, não somente o cárcere e sua violência, mas também contra a sociedade que permitia e acolhia como pena merecida a tortura e o aviltamento dos prisioneiros cujo crime teria sido resistir contra a ditadura.
As artes plásticas podem ser interpretadas como um modo indireto de protestação contra a subordinação do trabalho social pois os artistas trabalham como os trabalhadores não podem trabalhar. Isto seria mais do que simples recurso de distinção social: seria a demonstração segundo a qual outro trabalho é possível... A atual mercantilização total da arte, entretanto, escanteia esta possibilidade. Como tudo mais, somente no campo daquilo que é excluído do âmbito da sociedade “normal”, como os canteiros dos despossuídos de tudo, pode pretender à dignidade de uma atividade livre. Paradoxalmente, independentemente de qualquer consideração estética, hoje aliás totalmente corrompida, são os trabalhos de artes plásticas feitos na prisão os que ainda merecem ser considerados como manifestações de liberdade. Alípio Freire teve a sensibilidade de colher algumas destas produções, hoje, espero, guardadas convenientemente em um museu paulista.
GM: Você tem uma trajetória de vida ativamente política, tendo vivido importantes, apesar de lamentáveis, momentos da história brasileira ao lado de importantes figuras como Marighella e Lamarca. Isso influenciou a forma como você decidiu praticar arquitetura e as artes plásticas?
SF: Os momentos em que convivi com a ALN (liderada então por Carlos Marighella) e com a VPR (liderada então por Carlos Lamarca), ao contrário, foram totalmente coerentes com as condições implícitas em minha prática da arquitetura e das artes plásticas. Tanto numa como noutra, o fundamento sempre foi a defesa da autonomia absoluta de todos os envolvidos. A definição de arte que repito sempre é a de W. Morris citada acima. A alegria no trabalho é incompatível com qualquer autoritarismo, quanto mais com uma ditadura. Minha crítica à arquitetura visa diretamente a subordinação do trabalho no canteiro de obras e a das artes plásticas defende a posição do artista plástico contrária, avessa à mutilação da liberdade de produção pelo capital. A resistência contra a ditadura foi e é implicitamente libertária, apesar das enormes e monstruosas consequências que pode acarretar para quem lutou. Ainda hoje sou invadido constantemente por pesadelos que trazem de volta a barbaridade da tortura. Mas, em compensação, sou também cada dia mais radical e intransigente contra a violação do direito a uma vida digna e melhor para todos. Estas coisas, ditas assim, parecem pomposas e convencionais. Mas parecem ser porque nos desacostumamos da simplicidade das posições essenciais, das que provêm das exigências éticas elementares. “Escovar a história a contra pelo” é enfrentar o conformismo, recusar o caminho que o mundo tomou, não ter vergonha de reconhecer que nos falta o principal e que ele é da família das coisas óbvias raramente ao nosso alcance.
GM: Recentemente você fez uma fala no Centro Maria Antônia onde apontava que é importante procurar "atrapalhar o capital sempre que possível". Alguma ideia de como fazer isso hoje em dia?
SF: Atrapalhar o capital sempre que possível é nosso dever elementar. O dever mais exigente é lutar, mesmo quando parece impossível, para acabar, dar fim ao capital, a pior peste já inventada. Sou contra o termo “antropoceno”: o que está conduzindo o mundo ao desastre final não é o homem, mas o capital. Basta, para demonstrar isto dar uma olhada no presente. Pelo que nos anunciam os que conhecem a questão, já não temos mais tempo para evitar desastres climáticos inimagináveis. Mas em vez de tomar urgentemente medidas indispensáveis para evita-los, os capitais privados de um lado e estatais de outro, para roubar os mercados que destroem um do outro, pois nem um nem o outro tem mais outra oportunidade de aplicar com o lucro costumeiro as gigantescas massas de mais-valor acumuladas entre os 0,01% da população de um lado e a cúpula dos estados do outro, os dois lados, repito de novo, se aplicam criminosamente em alimentar uma guerra idiota cuja única perspectiva é se transformar no thriller do apocalipse que ela mesma torna definitivamente inevitável. Atrapalhar somente não basta mais, esta é uma obrigação em tempos comuns. Hoje em dia precisamos de um levante mundial, simultâneo dos dois lados contra os capitalistas dos dois bordos. É urgente deixar de apoiar um ou outro lado. As guerras aparentemente entre nações inimigas são sempre na verdade disputas entre um grupo reduzidíssimo de iguais para decidir pela força qual deles se apropriará da nobre tarefa de explorar a maior fatia do resto da população. A esquerda autêntica foi e continua sendo intrinsecamente, obstinadamente oposta às guerras do capital e de seus representantes políticos. Elas são meras disputas de mercado entre semelhantes, cujo resultado imediato é regularmente a morte ou a mutilação de grande parte dos que, qualquer que seja o vencedor, serão os perdedores, os que continuarão a ser cada vez mais explorados pelos dois lados do mesmo poder. A grande mídia, é preciso não esquecer, é propriedade do grande capital “liberal” ou do capital do estado dito socialista. E é ela que quer nos dividir entre eles, atiçando o belicismo igualmente imbecil de um ou outro.
Temos que atrapalhar, mas atrapalhar veementemente e por todos cantos e meios, o cretinismo militarizado e servidor do capital em todas suas formas. Nossa sobrevivência está em jogo.
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Notas
1. Karl Marx, Para a crítica da economia política, Manuscrito de 1861-1863/ Cadernos Ia V, Terceiro capítulo – o capital em geral, Autêntica, 2010, p. 381
2. ibdem, p. 146.
3. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie (em português: Elementos fundamentais para a crítica da economia política, conhecido simplesmente como Grundrisse) é um manuscrito de Karl Marx concluído em 1858.
4. Karl Marx, Manuscrits de 1857-1858 dits “Grundrisse””, Éditions Sociales, 2011, p. 100. As passagens destacadas o foram por mim.
5. Imaculada Kangussu, Sobre obras de arte e centelhas de esperança, in Walter Benjamin: barbárie e memória ética, org. Ricardo Timm de Souza e outros, Editora Zouk, 2020, p. 80.
6. Theodor W. Adorno, Dialectique negative, Payot, 2003, p. 70.