Jozé Candido é um arquiteto e urbanista carioca com uma vasta experiência no setor público, em especial na área dos transportes. Seu projeto para estações de BRT (Bus Rapid Transit) no Rio de Janeiro foi premiado como "BRT Padrão Ouro" em 2013 pelo ITDP. O BRT é um sistema de transporte público que atravessa a cidade no sentido centro-oeste e foi implantado no Rio de Janeiro entre os anos de 2012 e 2024.
A arquitetura da mobilidade urbana, com seus equipamentos — estações e terminais, passarelas etc. — são espaços de uso coletivo e cotidiano pela população das metrópoles brasileiras. Visando ampliar o conhecimento e repertório sobre esses espaços, essa entrevista explora os desafios técnicos, políticos e logísticos enfrentados durante a concepção e implementação do BRT na cidade e o legado de Jaime Lerner. A entrevista a seguir destaca o impacto dessa obra no desenvolvimento urbano, a integração de modais e o papel da arquitetura na funcionalidade e sustentabilidade de sistemas de transporte.
Luísa Gonçalves: Sobre a obra do BRT no Rio de Janeiro, qual foi a sua função? e qual foi o período de projeto? O escritório desenvolveu todas as etapas de projeto?
Jozé Candido: Contando a história do início, eu tenho o escritório desde 1985, e fui funcionário público desde 73, na Prefeitura do Rio (no antigo Estado da Guanabara). Mas em 2009, eu me aposentei. Aí, quando me aposentei, eu fui convidado para desenvolver as estações do BRT.
Dentro da prefeitura eu assumi vários cargos, inclusive na época em que o Conde foi prefeito eu era o Coordenador Geral de Projetos. Depois, quando o Conde perdeu a eleição, eu coordenei, durante 8 anos, o programa Favela-Bairro. Depois fui convidado para ser presidente da Riourbe, que é a principal empresa de obras no Rio de Janeiro. Mas fiquei aproximadamente um ano lá, e como eu já tinha tempo para me aposentar, no final de 2009, início de 2010, me aposentei.
O BRT já era uma intenção de projeto, elaborado pela Secretaria de Municipal de Transportes - que na época havia contratado um escritório de São Paulo, para calcular a demanda de passageiros ao longo do traçado. Este escritório determinava mais ou menos o lugar das estações e nos encaminhava para projeta-las.
Criamos um sistema de estações, que seriam expressas e paradoras, na Transoeste -que foi a primeira a ser implantada, ligando a Barra à Santa Cruz.
Existe uma grande diferença entre metrô e BRT, que é o custo de implantação – agora defendendo um pouquinho o BRT: o Rio além de ter um solo instável, é conhecido por suas características imprevisíveis, tornando a implantação uma tarefa complexa também de alto custo, além de nossa cidade ser linear.
Imagina o custo para fazer um metrô da Barra à Santa Cruz, são 44km de extensão? Se torna quase inviável. Então foi por aí que, desde a época do Lerner, já se pensava no BRT. Não para implantar em Santa Cruz, mas na Zona Sul (depois eu falo do plano, que foi feito por ele).
Então fomos projetar as estações. Tivemos, a princípio, uma grande dificuldade em fazer a estação. A gente pensa que é simples, mas você tem primeiro que criar um tipo arquitetônico que seja agradável, sustentável e de fácil montagem, que seja funcional, e que se ajuste a todos os tipos de ônibus que existam (não as carrocerias, mas os chassis - porque você tinha os chassis da Volvo, da Mercedes, da Scania, entre outros - além de combinar com os tamanhos, como ônibus de 18,60m, de 21,00m, de 23,00m e de 28,00m - esse bi-articulado). Então tínhamos que fazer uma estação que funcionasse para qualquer marca e tamanho de ônibus, para não priorizar uma determinada marca.
LG: O projeto é de uma "estação tipo" ou mais de uma "estação tipo"?
JC: É de uma estação-tipo, porém com algumas diferenças, sendo que a maior delas é uma estação tipo que é desenvolvida com duas unidades, que é a expresso-paradora: são duas estações ligadas por cobertura entre elas. A estação também se caracteriza (a entrada inclinada onde você entra, e a parte reta, só saída de emergência), então basicamente é mesmo estação. Depois teve a da na Avenida Brasil, que é outra história.
LG: A equipe no seu escritório fez todas as etapas, do preliminar ao executivo? E teve alguma relação de acompanhamento com as obras?
JC: Isso, fizemos todo o projeto. Acompanhamento de obra não teve, mas o meu escritório é persistente, então fizemos questão de acompanhar tudo, mesmo que esteja fora do contrato. É um problema nosso de defesa do nosso projeto, e quando era possível reclamávamos sobre o que estavam mudando. "Não, vai ter que ser assim", discussão com o empreiteiro, discussão com o fiscal, mas isso é normal, quase sempre chegávamos a um bom acordo.
LG: Sim, é muito importante a gente entender esse "desenho institucional" da contratação. Foi uma licitação, certo?
JC: Foi uma licitação de gerenciamento do projeto e da obra, e a gerenciadora vencedora nos contratou, pois eu já tinha uma expertise, comprovação técnica, porque eu tinha trabalhado no escritório do Jaime Lerner.
LG: Havia outras empresas do Rio, escritórios, que o senhor conhecesse, arquitetos, que concorreram também?
JC: Tiveram alguns que quiseram fazer, mas não tive muito conhecimento, mais tarde fizeram alguma estação, mas a ideia era você ter uma estação que fosse marca do Rio, não é mesmo? Não ser cada uma de um tipo.
LG: E sobre o programa de necessidade/demanda/briefing, ele chegou através da prefeitura? Havia possibilidade de alteração?
JC: Chegou da prefeitura, que tinha contratado uma empresa de São Paulo, que nos dava o cálculo da demanda, e a prefeitura já nos orientava onde deveriam ser as estações — sempre tentamos nos basear nessas indicações. Nós não fizemos apenas as estações, fizemos todo o Urbanismo e Paisagismo do seu entorno.
LG: Então o seu diálogo ao longo do desenvolvimento do projeto era mais com a prefeitura, mas qual parte?
JC: Normalmente com a Secretaria de Transportes.
LG: E como foi esse o diálogo? Foi bom?
JC: Foi bom.
LG: Tinha profissionais preparados?
JC: Tinha, a gente conhecia todo mundo porque eu tinha trabalho na prefeitura. Então era bem fácil, todos colegas.
LG: Tem um problema muito sério que tem acontecido lá em São Paulo, que é: o metrô é uma empresa pública, pertence ao Estado. Só que o Estado vem enxugando as empresas públicas, né? Ela era uma empresa de 50 anos que tinha um acervo técnico, um histórico de conhecimento. Pois é.
JC: Aqui metrô também era público, depois que virou a operação privada.
LG: Lá estão privatizando a operação também. Mas aí chegou num ponto que a empresa Metrô lá começou contratar uma gerenciadora para analisar os projetos, e acaba ficando um processo caótico. Então, no seu caso, foi direto mesmo com essa equipe da Secretaria?
JC: Sim, praticamente.
Experiência com Jaimer Lerner
LG: E em relação às suas referências, o trabalho com o Jaime Lerner, como foi ter essa base para fazer o projeto?
JC: Nós fizemos o estudo que resultou no Plano Transporte, que tem até o volume, que era para o Rio "ano 2000" - era o que se estava pensando na década de 80 para o ano 2000. O Lerner montou um escritório aqui no Rio através do Governo Brizola. Aí como eu era da prefeitura, eles me requisitaram, com mais algumas pessoas, para desenvolver o trabalho aqui junto com a equipe dele, que era uma equipe fantástica. Elaboramos o que na época era chamado de Metro de Superfície: como cobrança de tarifa antecipada, estações fechadas e embarque no nível da plataforma. Isso virou o BRT no mundo.
LG: E isso foi simplesmente engavetado?
JC: Não foi engavetado. Isso virou Curitiba. A estação tubo foi projetada para ser utilizada aqui e acabou indo para Curitiba. Estou falando de 82. E esse modelo de transporte de Curitiba foi reproduzido em mais de 200 cidades, conforme estimativa do IPPUC. Lerner quando foi prefeito lá implementou a maioria dos elementos que se associaram ao BRT.
LG: Mas não virou no Rio, porque? Mudou o prefeito?
JC: A política, isso. O problema nosso todo é política, é o que eu falo. Antigamente você tinha um planejamento, existia uma Secretaria de Planejamento e Coordenação Geral. Você tinha um sistema plurianual. Que planejava a cidade, então as coisas têm que ter continuidade. Eu trabalhei nessa coordenação na época que foi feito o PUB Rio, sabe o que foi isso?
LG: Sim, o Plano Urbanístico Básico. Mas então nesse trabalho do Lerner, nas suas referências, quais foram as principais condicionantes para esse projeto do BRT, digo princípios de projeto?
JC: As principais condicionantes foram as mesmas desde aquela época, que eram a cobrança de tarifa antecipada, estações fechadas e embarque no nível da plataforma.
O que aconteceu na modificação de agora nas estações, foi que a gente tinha uma preocupação em relação aos vidros. Então especificamos vidro laminado e temperado. E a ideia do vidro para mim é fundamental (agora eles tiraram os vidros das estações, porque dizem que roubam - isso é outro problema). Então a gente tinha que ter o vidro para dar transparência. Acho isso fundamental, principalmente no Rio de Janeiro, mas qualquer lugar, em São Paulo também. Você estando dentro da estação, você olha quem está em volta, e se o ônibus está chegando - principalmente de noite. E você estando de fora, consegue saber quem está na estação. Então, se você bloqueia aquilo, não é bom. A ideia do vidro é isso.
E por que do telhado curvo, e comprido? Não só para proteger o usuário da entrada do ônibus. Mas era principalmente para não deixar o sol bater no vidro para não virar uma estufa. Por isso foi criado.
Criamos também o que a gente chamou de captador eólico, que era uma peça de fibra voltada para o vento predominante. O vento entra, joga dentro da estação e como ela tem uma área de lambri perfurado, circula o ar para fora, então o vento entrava e saía. Isso funciona bem. Você entra numa estação hoje no BRT, ela é mais fria que o lado de fora, dando um conforto térmico agradável mesmo sem ar-condicionado, porque não tinha condição de colocar.
Na época sugerimos ao prefeito da época que as estações deveriam ser "adotadas". Fizemos um desenho, por exemplo "Estação BarraShopping" - porque a minha preocupação é que existe pouca manutenção, mas se você "adota", você dá uma área de propaganda, dá algum benefício para ele, pagamento de IPTU, qualquer coisa, eles mantêm a estação com segurança, mantêm funcionando, tudo arrumado - você só vai ter o trabalho de cobrar. Tudo bem, em alguns lugares você poderia não conseguir ter a doção, tipo em algumas áreas de Santa Cruz, aí a prefeitura entrava e conservava - mas aqui na Barra você tem rede, supermercado, shopping etc.
LG: Ou seja, você tinha uma preocupação também com a manutenção da obra construída.
JC: Claro, isso eu aprendi com o Jaime Lerner. Qualquer obra pública você tem que colocar o melhor material possível. Porque a manutenção será sempre difícil ou praticamente inexistente.
Então a minha primeira defesa foi para a gente botar aço inox em toda a estação. Se você olhar uma estação hoje você verá o que está inteiro, e é só o aço inox. Isso desde 2011, eu estou falando há 13 anos. Mas o custo seria muito elevado.
LG: Eu acho muito importante isso que você está falando e insisti nisso com os meus alunos. É, às vezes existe uma certa ideia de que o arquiteto é um grande criador, quase que é "dono" daquilo que foi construído, mas na realidade existem outras forças que vão interferir no projeto. E aí você precisa de uma firmeza e uma noção do que é uma responsabilidade, seja técnica, seja da autoria em si, de delimitar o que não pode mesmo ser alterado. Então eu reconheço muito isso que você está falando, porque isso acho que às vezes se perde.
JC: Isso já me prejudicou muito, mas eu não me importo, vou fazer o que a minha consciência manda. Eu sempre disse para os meus alunos também que arquiteto é uma coisa, o urbanista é outra completamente diferente. O arquiteto, faz a casa da fulana x, se ela não gostar, contrata outro, ok. Agora, e se você faz uma estação ou qualquer projeto de urbanismo na cidade e a cidade não gosta? Aí a preocupação é 10 vezes maior. Então a nossa consciência, é quando você faz qualquer coisa na cidade, ela deverá ser sempre perfeita.
Vou te contar o exemplo da Transbrasil. A ideia sempre foi a gente manter a mesma unidade de projeto nas estações. Aí chegou o governo e queria mudar. Disseram para cortar o telhado da estação, porque teria duas pistas, por conta dos ônibus intermunicipais, caminhão e etc.
Eu expliquei que estávamos criando um sistema de transporte, que aquela proposta não ia funcionar. Até que, no final, a empreiteira contratou um outro arquiteto para fazer o que eles desejavam. Só que eu já tinha feito as passarelas, e disse que se outra pessoa fosse fazer o projeto, que fizesse tudo de novo, sem as passarelas. E como tinha o negócio de compliance, eu teria que concordar, mas eu não concordei e aí acabamos fazendo as estações da Transbrasil com exceção de duas que não estavam no nosso contrato.
Projeto do BRT - Estações e urbanização do entorno
LG: A respeito da fragmentação administrativa, como acontece no Rio? Em São Paulo, muitos problemas decorrem da perda de centralidade dos projetos e obras na Companhia do Metropolitano de São Paulo.
JC: Aqui acontece quase da mesma forma. É o que eu te falei, isso é falta da Secretaria de Planejamento e Coordenação Geral, que é fundamental. Antigamente, cada Secretaria tinha um assessor de planejamento, que era subordinado à Secretaria de Planejamento. Então a Secretaria de Obras tinha uma Assessoria de Planejamento que era subordinada à Secretaria de Planejamento. É fundamental para garantir a continuidade dos projetos, independentemente do político. Isso aconteceu no metrô aqui, obras abandonadas por mudança de prioridade política.
LG: E você acha que isso gera mais problemas nessa parte de obra ou essa parte de correlação com [sistema] viário? Tem muita interferência da equipe de engenharia de tráfico?
JC: Não, como disse a você, eu fui Coordenador Geral de Projeto, que foi uma coisa que o Conde criou. Dentro da minha coordenação você tinha um Diretor de Projeto Viário, um Diretor de Estrutura, etc. Então toda a parte viária ficava com a gente. Eu acho fundamental você ter uma Diretoria de Projeto Viário. Eu sempre combati muito com a CET Rio, porquê pra mim ela vê trânsito, é sinalização viária. Sinalização não tem nada a ver com a geometria da via. Isso é uma expertise que a gente tinha que ter. E tem muita coisa que a geometria é errada e você interfere na vida da cidade.
LG: E pro BRT, como é que era essa situação?
JC: No BRT a gente bolou essa situação. No BRT da Transoeste, a gente estudou isso junto com a própria Secretaria de Transporte para definir o sistema expresso-parador. A estação tem a capacidade para dois ônibus, mas quando chega perto da estação, a gente abre mais uma faixa, para que o expresso (que não para ali) pudesse passar direto. Isso, para mim, tinha que ser feito na Av. Brasil, e não duas pistas ao longo de tudo, entendeu? Era só na área da estação, como foi feito na Transoeste, na Transcarioca e na TransOlimpica.
LG: Certo, mas insistindo no ponto dos tipos de serviços, quando vocês foram contratados pela Gerenciadora, era para fazer projetos das estações ou incluía reurbanização dos entornos? Então qual era a relação contratual com o sistema viário?
JC: Nós fizemos apenas as estações e a urbanização do entorno, mas não fizemos o projeto geométrico das vias.
LG: Certo, então ele chegava pra vocês e aí isso era compatibilizado?
JC: Isso. Então a gente fazia a entrada na estação, a estação, fazia a urbanização do entorno e fizemos os terminais, que é fundamental. E urbanizávamos os terminais.
LG: E aí a parte da geometria viário era outra empresa ou dentro da Secretaria de Transporte?
JC: Não lembro exatamente se era outra gerenciadora.
LG: Mas aí quando vocês estavam fazendo as estações, esse projeto do viário, ainda estavam em andamento? Vocês tinham um diálogo com essa equipe?
JC: Não, chegava mais ou menos pronto. Eu às vezes pedia algum ajuste, muda aqui, muda ali.
LG: E em relação às principais limitações do projeto, você diria que foram mais de ordem técnica, orçamentária, de gestão ou outra coisa?
JC: Vou te falar sinceramente, eu não tive nenhuma limitação. Ou basicamente de acabamento de projeto, iluminação, coisas assim.
LG: Em relação então à urbanização do entorno, desafios em relação a isso, havia uma demanda da prefeitura pra focar apenas nas passarelas, ou espaço pra desenho urbano?
JC: As passarelas estavam sempre ligadas à estação, quando a gente tinha uma travessia. A urbanização era em volta da estação, pra pessoa entrar num lugar agradável. Então a gente projetava bicicletário, fazia uma pracinha, etc. Nos terminais também fazia um paisagismo marcante. Mas algumas coisas vingaram, outras nãos vingaram.
LG: Me parece que em alguns lugares da Zona Norte, quando BRT passou, ele foi cortando alguns loteamentos e traçado urbano, que geraram certos vazios urbanos, essas áreas não eram incorporadas, dentro desses projetos?
JC: Então, vamos do princípio. Na Transoeste não tivemos problema. A grande ferida que houve foi realmente a Transcarioca, que passou em área urbanizada. Você passar em área que não urbanizada é mole. O metrô é a mesma coisa, passa por debaixo (mas destroi tudo em cima). Na área urbanizada a gente tentou minimizar o dano o máximo possível, inclusive mudamos algumas vezes o traçado original, porque esse traçado remonta ao estudo de 82, que tinha um corredor chamado Tanque-Penha.
Eu fiz esse corredor antes do Lerner chegar, era chamado T5, Tanque-Penha. Depois o Lerner entrou aqui e nós incorporamos isso na administração dele e criamos o corredor Alvorada-Penha. Porque a Barra já tinha crescido em 82. Em 78-79 não tinha, então era Tanque-Penha. Aí o Lerner incorporou o Alvorada, mas não era BRT, era um ônibus comum em via segregada. Chegamos a fazer um estudo disso, mas nunca foi adiante. Depois estudaram botar um VLT nesse T5. E, afinal, alguém teve que assumir essa decisão política, porque foram 3000 desapropriações, e depois como a Transcarioca foi até o Galeão, aí já foi o BRT.
LG: É uma transformação muito impactante.
JC: Sim, como a Linha Amarela foi. Como qualquer coisa que vai segregar - segregar com uma via é muito ruim. A Linha Amarela também teve segregação: por exemplo, uma senhora que tomava café na padaria do outro lado da rua da sua casa, depois da LA, nunca mais ela tomou esse cafezinho - e fazia 50 anos que ela tomava café ali.
LG: É, mas é que me parece que esses trabalhos de intervenção urbana vão ser muito circunscritos a um entorno muito imediato da estação, e aí acaba gerando um monte de vazios, interstícios e coisas que não têm no projeto de reurbanização.
JC: Mas aí você tem toda razão. A gente foi contratado pra fazer a estação e urbanizar o entorno. Mas aí a Secretaria de Urbanismo que tem que correr atrás, mudar gabarito, mudar isso, ajustar as vezes a legislação. Tem que ser isso, é evidente. Tem que ter um trabalho conjunto.
LG: É que é um outro problema de fragmentação também, né.
JC: Pois é, não caberia a mim - e eu não poderia, de fora da prefeitura, fazer intervenção. Tem que ser um trabalho de uma Secretaria de Urbanismo como um todo, e pegar várias partes. E algumas delas fizeram, os lugares foram feitos.
LG: Mas também, eu acho que existe uma divisão histórica disciplinar da arquitetura, que é "arquitetura-edificações" de um lado e "projeto urbano" do outro. E aí fica esse lugar da "arquitetura edificações" para a esfera privada e o "projeto urbano" para prefeituras e esferas públicas. Só que nos transportes é tudo interligado. Essa separação gera prejuízos muito grandes, não é?
JC: É, mas eu acho o seguinte: o transporte, você quando abre uma via, por exemplo, se ela tá obstruída, você tem que passar para ter um sistema melhor, porque é uma população inteira sendo afetada. Então eu acho que vale a pena. Agora, você tem que dar condições também de urbanizar o que você feriu, a ferida que você fez.
LG: O transporte talvez seja a grande arquitetura da cidade, né, nesse sentido.
JC: É, é o que eu digo, não existe você fazer um plano habitacional se você não tiver um plano transporte junto.
Projeto do BRT - Programa e usos das estações
LG: Tem uma outra temática importante que é o uso comercial que aparece de maneira informal nessas estações. Voltando à questão do programa de necessidades, isso não entra? Por quê?
JC: A minha estação recebeu críticas, "ah, tem que ter banheiro". Não, não tem que ter banheiro nenhum. A estação do BRT é um ponto de ônibus. Não tem que ter banheiro, não tem que ter venda, não tem que ter nada. O antigo governo autorizou camelô ficar dentro da estação, aí é muito ruim. Então você acabou com qualquer tipo de estação para transporte. Aquilo é um ponto de ônibus coberto pra você demorar o menor tempo possível lá dentro. É igual terminal - terminal urbano é uma coisa, rodoviária é outra. Terminal urbano, para mim, só funciona se você ficar o menor tempo possível. Se você passar uma hora dentro, ele é um péssimo terminal, alguma coisa está errada. A sua integração com os ônibus não está funcionando. Uma Rodoviária, você vai lá, toma cafezinho, pega a mala, funciona. Terminal urbano tem que ficar o menor tempo, no máximo usar um serviço, mas o usuário tem que sair de um ônibus e entrar no outro. É fundamental que a integração seja rápida, senão não funciona. A gente já não tinha consciência de integração? Se você faz uma integração e ela demora 10, 15, 20 minutos, meia hora, aí já reclamam o tempo todo, e com toda razão.
LG: Mas você não acha que numa escala metropolitana, essas estações, que já são um pouquinho mais robustas, não se tornam quase que subcentros ali, por que?
JC: Não, não tem subcentro nenhum, é um ponto de ônibus. Não pode ter subcentro, senão você terminou com ponto de ônibus. Você pode ter qualquer coisa comercial, seja propaganda externa, letreiro, não me incomoda se a gente organizar pra não ficar uma poluição visual. Se for projetado, ok, mas colocar coisas na plataforma, sou contra.
LG: Você acha que é o contrário, então assim, o terminal tem que ser tão eficiente que ele está totalmente aberto e integrado à cidade e todos esses outros usos vão acontecer na cidade. Seria isso?
JC: Vou te contar o caso do Alvorada - mais uma intervenção que a gente sofreu, pois projetamos com duas passagens subterrâneas pois nossa preocupação era com a travessia dos usuários pois quando visitei os terminais em São Paulo, eu vi uma senhora quase ser atropelada quando atravessava de uma plataforma para outra. Então a minha preocupação no Alvorada era fazer um caminho subterrâneo para não ter nenhuma travessia em cima. Então a gente fez isso. Como o Alvorada é enorme, nós fizemos dois subterrâneos. Nesse subterrâneo, teria administração, teria o vestiário de quem trabalha, algumas lojinhas no subterrâneo, banco 24 horas, loja de conveniência e tal. Ou seja, nós criamos uma área para loja, era no subterrâneo, não era nas plataformas do terminal.
As plataformas do Terminal eu queria livre, eu não queria nada na plataforma, seria apenas para os usuários entrarem nos ônibus.
Aí quando foram executar, fizeram só um subterrâneo, aí para chegar nesse ponto tem que dar a volta. Então ficou faltando administração, faltando serviços, vestiários etc... Aí não tinham lojas suficientes, começaram a fazer em cima - acabando todo o conceito.
LG: É impressionante como pedestre é a última na categoria a ser considerada nesses lugares.
JC: Por isso que eu acho que não pode ter nada a plataforma, apenas os passageiros.
LG: É, o que eu estou entendendo que você está falando não é nem contra o comércio em si, é contra ele atrapalhar o fluxo.
JC: Isso, sou contra a interferência do comércio nas plataformas de embarque e desembarque. Então, lá embaixo, ok, e se você quiser fazer um mezanino tudo bem. Nós fizemos um estudo uma vez para um terminal lá do centro, em que o empresário chinês queria ter 50 lojinhas de 10 m2. Eu falei, tudo bem, o usuário sobe, vai na lojinha e desce, sem problemas.
LG: Mas e quando a gente está falando das passarelas? Porque você tem aquelas situações tipo na Pavuna em que tem um verdadeiro comércio popular, quase uma feira pública acontecendo as passarelas de acesso aos transportes. Elas não poderiam ser projetadas para incorporar esse uso?
JC: Não, você está querendo fazer uma ponte Rialto, mas não tem condição. Passarela é apenas para atravessar.
LG: Nem é isso que eu estou querendo fazer, é um pouco diferente. Ao invés de fazer uma passarela que absorva esse comércio, que dá problema, é o contrário, é pensar um edifício que tenha comércio e que absorva esse fluxo de circulação, que ele possa acontecer num lugar livre, mas que você reconheça que existe uma demanda de mil outras coisas que estão acontecendo ali, exatamente porque eu tenho um terminal, uma estação de trem, um ponto nodal metropolitano.
JC: Uma Rodoviária é uma coisa, aí eu concordo com você, você vai na rodoviária, você tem que ter todos os comércios, a pessoa vai lá, espera o ônibus 1 hora, 2 horas. Terminal urbano, não, você tem que ficar o menor tempo possível. Se você ficar meia hora no terminal urbano, aquilo não está funcionando, entendeu? Então eu não posso permitir que vendam algodão doce na uma plataforma, amendoim, etc. Pois acaba sempre prejudicando o funcionamento.
LG: Como as estações foram recebidas pela população quando foram inauguradas?
JC: Foram muito bem recebidas, não só as estações, mas como todo o sistema. As pessoas vinham trabalhar, diziam "nossa, eu levava 4 horas agora levo 1h".
LG: Como se passou por toda essa parte governamental anteriormente, como você acha que essa parte de arquitetura, dessa parte de transportes, é vista pelo poder público? Porque eu estou dividido entre duas apreensões, uma no sentido de "isso é engenharia. Isso tem pouca arquitetura, isso tem que servir a sua função e fazer o transporte acabou". E do outro lado me aparece esse caso que você contou da pessoa que queria fazer a passarela magnânima monumental para colocar uma imagem pública. Você acha que tem mais essa vertente do poder público querendo usar essas arquiteturas monumentais ou mais a leitura de engenharia?
JC: Não, não. Isso foi exceção. Normalmente é ao contrário. A arquitetura de um sistema de transporte teria que ser mais simples possível. Eu que inventei tudo, comecei a criar terminais e fui aceito, não é?!
Quando fiz aquele o Terminal Olímpico, então, foi uma coisa enorme, muita inovação, estudo, estrutura metálica e ficou muito bonito, a gente até ganhou o prêmio com ele.
Então são coisas que nos enriquecem, e eu agradeço também ao prefeito por ter me deixado ousar e permitir fazer um belo projeto. Nós projetamos com o mesmo conceito o Terminal Deodoro, chegamos a fazer o projeto básico, mas infelizmente, mudaram, deram para um outro arquiteto fazer um projeto mais simples e mais comum. A lógica do empreiteiro é essa.
LG: Então você acha que menos por uma desvalorização ou desconhecimento do papel da arquitetura e mais por uma questão orçamentária, é.
JC: Isso aí, com certeza.
LG: E antes desse trabalho, o que tinha desse tipo de arquitetura de transporte no Rio? Porque o metro também é relativamente recente, tinha a Rodoviária. De resto, isso é novo?
JC: Não tinha nada. A rodoviária também passou por uma transformação.
LG: O interesse para trabalhar com esse tipo de projeto, veio do Jaime Lerner?
JC: Ah, com certeza. O Lerner despertou toda a parte de transporte. E mais do que transporte, foi quando o Conde me chamou para "tomar conta" de viaduto, passarela, túneis, ou seja, as obras de artes especiais - no começo foi muito estranho, mas hoje adoro.
LG: Última questão – porque no Rio as estações não são "intermodais", ou seja, em geral as estações de modais diferentes, mesmo quando tem conexão, são feitas separadamente. Esse conceito não é discutido?
JC: São sim: ali no Jardim Oceânico com o metrô, em Madureira com o trem, o Terminal Gentileza com o VLT, etc.
LG: Pra fechar, como você avalia os demais projetos de mobilidade urbana no Rio? Há planos de expansão da rede? Você vai participar?
JC: Não sei. Eu fiquei meio por fora, mas estou sempre disposto a contribuir — principalmente com a cidade maravilhosa.