
O que um bacalhau pode oferecer à arquitetura? Ou melhor, que lições sobre meio ambiente e assentamentos humanos podemos aprender com a história da pesca? É esta improvável questão que está por trás do livro Arquitetura do Bacalhau, de André Tavares e Diego Inglez de Souza, publicado pela Dafne Editora e recentemente lançado no Brasil.
Na entrevista a seguir, conversamos com Tavares sobre as infraestruturas ligadas à pesca do bacalhau e sua relação com o território, o trabalho e a produção arquitetônica. A partir de uma abordagem original — que conecta arquitetura, ecologia, fisiologia dos peixes e história industrial —, os autores propõem uma leitura do espaço construído ancorada nos ecossistemas que o sustentam. Longe de ser um olhar nostálgico sobre o passado, a pesquisa aponta para a urgência de repensar a arquitetura no contexto das transformações ambientais em curso, evidenciando como as construções humanas moldam e são moldadas pelos ecossistemas naturais marinhos.
Romullo Baratto (ArchDaily): Por que falar sobre bacalhau hoje? Indo além: o que despertou o teu interesse nesse tema? Foi algo ligado à culinária, à identidade nacional de Portugal? E como essa pesquisa se relaciona com a agenda ecológica contemporânea? É uma pergunta um pouco longa, mas acho que é um bom ponto de partida.
André Tavares: A resposta, tanto no começo quanto no fim, é a mesma. Esta pesquisa me parece importante justamente por essa relação com os ecossistemas. Ela propõe a possibilidade de construir uma história da arquitetura que não parte da história da arte ou da sociologia, mas sim dos animais, dos ecossistemas — e com isso, criar outro entendimento sobre o que a arquitetura faz ao planeta, aos seres humanos e, antes deles, aos animais e às plantas.
Se queremos transformar o futuro da arquitetura, precisamos transformar sua história. Essa é uma convicção que tenho: se não formos capazes de reinterpretar o passado a partir daquilo que queremos para o futuro, não conseguimos, de fato, abrir novos caminhos.
Por isso, olhar para o modo como os peixes transformaram o ambiente construído — como geraram formas específicas de organização e produziram diferentes paisagens — é fundamental para entender como as nossas ações impactam os ecossistemas marinhos. O desenho de determinadas fábricas de processamento de peixe, a construção de certos portos, os padrões de urbanização costeira… tudo isso tem consequências diretas sobre os ecossistemas do Atlântico.
Essa relação entre os ecossistemas marinhos e a paisagem terrestre é o que justifica, para mim, essa investigação. Ela não surgiu de um plano previamente traçado para estudar a ligação entre mar e terra, entre peixe e paisagem. O ponto de partida foi mais intuitivo: havia — e ainda há — algumas ruínas do que no Brasil se chamam estaleiros de seca e, em Portugal, se conhecem como secas de bacalhau. Esses lugares sempre me fascinaram. Eu os conhecia desde criança e os achava estranhos, singulares. Como ruínas, tinham também aquele encanto do que é deixado para trás.

Em determinado momento, propus-me a fazer uma comparação entre as secas de bacalhau portuguesas, as da Terra Nova, no Canadá, e as norueguesas. Essa comparação permitiu construir uma percepção sobre trânsitos, relações, transformações — e, assim, delinear uma história da arquitetura que não é nacional, mas sim uma história do Atlântico. Novamente, uma história dos ecossistemas.
Outra motivação importante foi a identidade nacional. O que me permitiu dar o próximo passo nessa pesquisa foi a leitura de um best-seller do New York Times, escrito por Mark Kurlansky, intitulado Cod: A Biography of the Fish That Changed the World. É uma história muito bem estruturada, muito bem feita, gostosa de se ler — e que toca em temas relacionados à arquitetura sem nunca mencioná-la diretamente.
Isso, por um lado, evidenciou uma lacuna: havia ali uma história da arquitetura por fazer — e que ninguém ainda havia feito. Por outro lado, nesse livro que era relevante e abrangente, Portugal aparecia apenas em duas notas de rodapé, como um país que "também pescava". Isso me causou estranhamento. Porque em Portugal somos constantemente bombardeados com a ideia de um "Portugal do bacalhau", uma construção material, simbólica e identitária. E essa imagem não coincidia com aquela história global.

Pesquisando mais a fundo, compreendi que o bacalhau é, de fato, um alimento muito importante em Portugal, mas é também — e talvez principalmente — uma construção ideológica do Estado Novo, do fascismo. É uma narrativa histórica moldada com muita violência, tragédia e miséria associada.
Essa compreensão me levou a dividir o trabalho em dois livros: Arquitetura do Bacalhau, que é mais centrado no contexto português, escrito em parceria com Diego Inglez de Souza, e Architecture Follows Fish, que apresenta uma história mais ampla sobre as relações no Atlântico Norte, abordando os ecossistemas marinhos e as paisagens terrestres nos processos que se desenrolaram e ganharam forma ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, envolvendo os Estados Unidos, Canadá, Noruega, Inglaterra, França e Portugal.
RB: Você passou por vários pontos que eu gostaria de aprofundar. O primeiro deles é a hipótese central do teu trabalho: a ideia de que o peixe define a arquitetura. Você começou a esboçar uma resposta, mas queria entender melhor como essa lógica funciona. Como a arquitetura do bacalhau — ou dos pescados, de maneira geral — influencia os ecossistemas marinhos? E, por outro lado, como as transformações desses ecossistemas impactam as paisagens costeiras e suas arquiteturas? Parece uma via de mão dupla…
AT: Sim, é uma via de mão dupla. No livro, a história do bacalhau se desdobra para outros peixes: sardinha, pescada, atum etc., e durante a pesquisa, Diego e eu percebemos algo fundamental: a arquitetura do bacalhau é diferente da arquitetura da sardinha. Porque o bacalhau é um peixe muito diferente de uma sardinha.

O bacalhau é um predador de topo. É um peixe musculoso, de carne branca, com pouca gordura, e essa composição física permite que ele seja pescado, salgado e conservado por muito tempo. Isso possibilitou a pesca em alto-mar, de longa duração: os barcos saíam de um porto, navegavam até os grandes bancos de Terra Nova, ficavam ali durante meses pescando, e o peixe era salgado no próprio porão da embarcação. A secagem do peixe, em terra firme, acontecia depois. Esse modelo gerou uma paisagem costeira muito específica — com estruturas voltadas para a seca e o armazenamento do bacalhau.
Já a sardinha, por outro lado, ocupa a base da cadeia trófica. Alimenta-se de plâncton, é rica em gordura e, uma vez morta, apodrece muito depressa. Por isso, não permite o mesmo tipo de conservação que o bacalhau e precisa ser processada imediatamente. Inicialmente, era salgada em barricas, mas, a partir de meados do século XIX, com o desenvolvimento da indústria conserveira, passou a ser enlatada — o que garantiu mais resistência e durabilidade ao produto.
Esse avanço industrial alterou completamente a forma como o peixe era processado e armazenado. A arquitetura das fábricas passou a refletir isso: as antigas estruturas artesanais deram lugar a edifícios maiores, com outras tecnologias e outra escala. A sardinha, por ser um peixe pelágico que nada próximo da costa, exigia menos investimento em infraestrutura e possibilitava uma ocupação mais pulverizada ao longo do litoral. Isso gerou uma paisagem muito distinta daquela do bacalhau.

Ou seja, a fisiologia de cada peixe constrói uma arquitetura diferente. E, quando essas arquiteturas mudam — como quando se passa das barricas para as fábricas, dos edifícios de madeira para estruturas de concreto —, também muda a escala da produção. A nova arquitetura amplia a capacidade industrial, aumenta a eficiência do processamento e, com isso, eleva a pressão sobre os ecossistemas.
E depois de 20 ou 30 anos de investimento em arquitetura, o que acontece? Os peixes desaparecem do mar.
RB: Você diz uma coisa muito interessante: a arquitetura é o ponto de transformação de um animal em mercadoria. A gente vê isso em muitos outros contextos dentro do sistema capitalista: o minério, por exemplo, transformado em commodity. Queria entender melhor esse momento-chave, em que um ser vivo passa a ser uma mercadoria. Qual é o papel da arquitetura nisso?
AT: Essa é uma questão central para entender a relação entre os ecossistemas marinhos e as paisagens terrestres. Quando falamos em história da arquitetura — e da maneira como ela é contada — muitos dos fatores que informam a arquitetura são fatores "terrestres": mudanças de governo, políticas de investimento, crescimento urbano... E tudo isso ajuda a explicar como e por que certos edifícios são construídos.

O esforço que temos feito, enquanto pesquisadores, é contar o outro lado dessa história — o lado ecológico e marinho. Nesse contexto, o que determina as mudanças não é uma decisão política ou um plano de governo, mas sim a mudança de temperatura, a alteração nas correntes oceânicas, a subida média das águas, o colapso de uma cadeia alimentar. Por exemplo: o capelim, um peixe fundamental para o ecossistema do Atlântico Norte, começou a se afastar dos bancos de Terra Nova por conta do aquecimento das águas. E como o bacalhau se alimenta dele, a sua recuperação populacional se tornou muito difícil naquela região. Ou seja, não é o Estado que define o futuro da pesca, é o ecossistema.
Percebemos que quando falamos de "terra" — e da arquitetura que se constrói sobre ela — estamos, na verdade, falando de mercadoria. De políticas econômicas, de contextos sociais, e simbólicos. Mas foi preciso entender que a arquitetura ocupa esse ponto de transição, ela está no limiar entre a história econômica e a histórica ecológica, e é crucial na ligação entre as duas.
RB: Parece haver o que você chama de "amnésia ecológica", uma naturalização do desaparecimento das espécies ao longo dos anos e séculos. Como essa degradação da vida marinha se reflete nas arquiteturas e nas paisagens urbanas dessas regiões costeiras?
AT: Isso é algo que se repete em qualquer lugar onde haja pesca. Mas é importante dizer: a consciência sobre a sobrepesca não é recente. Já no século XIX, os próprios pescadores tinham noção de que se estava pescando demais. E, historicamente, são eles os primeiros a denunciar esse excesso. Só que há uma tensão: os pescadores estão, de certo modo, do lado dos animais — porque conhecem o ecossistema, sentem as mudanças no mar, sabem quando há menos peixes. Mas eles trabalham para o capital.
Ou seja, dependem do investimento externo, dos donos das fábricas, dos sistemas de distribuição. E quando esse capital impõe um ritmo de exploração mais agressivo — como frequentemente acontece —, os pescadores são pressionados. A fábrica diz: "ou vocês pescam, ou fechamos as portas". E muitas vezes a escolha é essa: ou se pesca além do limite, ou se perde o sustento. E no fim, a fábrica acaba fechando de todo modo, porque não há mais peixes para pescar.

Há um livro incrível do historiador Jeffrey Bolster chamado The Mortal Sea que mostra justamente isso: já no século XIX, pescadores da costa leste dos Estados Unidos se manifestavam publicamente contra a sobrepesca. Portanto, não se trata de um fenômeno novo.
RB: Isso que você falou sobre os pescadores me fez pensar neles quase como artífices — como o marceneiro que conhece a madeira. Existe um ritmo, uma escala de trabalho que respeita a matéria-prima. E aí, com a pressão por demanda, por produção, isso se perde. O gesto do artífice é substituído por uma lógica industrial.
AT: Exatamente. E essa lógica é extremamente predatória. Ela rompe as relações ecológicas interespecíficas, substituindo-a por uma relação puramente tecnológica com o ecossistema. A pesca de arrasto, por exemplo, é um dos modos mais agressivos de extração que existem — e sua escala nas últimas décadas é absolutamente destrutiva.
O pescador tradicional, em geral, ainda tem uma percepção aguçada do ambiente. Ele põe o dedo na água e sabe dizer se o mar está "bom". Mas isso não é mágica: é leitura do vento, da salinidade, da temperatura, da cor da água. Todos esses são sinais do ecossistema que os pescadores aprendem a decifrar com o tempo.
Essa sensibilidade está se perdendo. Cada vez mais, há um descompasso entre a prática da pesca e o conhecimento ecológico. A industrialização rompe esse laço.
RB: Isso nos leva de volta a um ponto que você já mencionou — o colapso da pesca. Em muitos casos, o declínio ou até a extinção de certas espécies gerou um efeito brutal sobre as arquiteturas costeiras, que estavam numa crescente de investimentos. Com a queda da pesca, essas estruturas se tornaram restos, ruínas. Como você enxerga essas ruínas hoje? Elas ainda guardam algum saber? Foram ressignificadas de alguma forma?
AT: Acho que há duas camadas importantes aqui. A primeira é uma imagem que me marcou muito: a ruína no mar é invisível. O mar, para quem está em terra, é apenas uma linha no horizonte — uma superfície opaca, distante. Mas ele não é isso. O mar é um espaço de muita vitalidade, complexo, e muitas vezes não conseguimos ver sua degradação porque ela não deixa vestígios evidentes.

Em terra, a ruína é visível — são galpões abandonados, estruturas corroídas, edifícios vazios. Mas no mar, a ruína é abstrata, e isso me impressiona profundamente. Um dos desafios dessa pesquisa é tornar visível a ruína marinha.
A segunda camada diz respeito ao que acontece com essas ruínas em terra. Existem dois caminhos possíveis. Um deles é o desaparecimento completo. Muitos desses lugares viviam exclusivamente da pesca e eram de difícil acesso por terra. Quando a pesca acaba — e ela acaba porque o peixe desaparece —, o fator econômico que sustentava a população some. E então, pouco a pouco, esses povoados são abandonados. A madeira se desfaz, o concreto resiste por mais tempo, mas aos poucos tudo vai sendo reabsorvido pela natureza. Restam apenas vestígios arqueológicos. Isso acontece, por exemplo, em várias comunidades da Terra Nova.
O outro caminho é o da transformação, muitas vezes impulsionada pelo turismo. Quando existe infraestrutura de acesso — estradas, ferrovias, aeroportos —, esses lugares passam a atrair outro tipo de ocupação. Isso é muito visível, por exemplo, na Bretanha, ao norte da França, ou em Monterey, na Califórnia, onde o investimento em infraestrutura de pesca criou, posteriormente, condições para o desenvolvimento do turismo.
Em Portugal, esse processo é bem evidente. Por causa do vento norte — que carrega o cheiro da indústria pesqueira, muitas vezes bastante forte —, o turismo se estabeleceu, historicamente, na parte norte das vilas costeiras, enquanto a pesca ficava ao sul. Isso tem consequências urbanas bem marcadas. Quando essas áreas entram em ruína, são rapidamente apropriadas pelo setor imobiliário. Um bom exemplo é Matosinhos, no Porto. Lá, a indústria conserveira da sardinha se relocalizou em certas zonas próximas às ligações rodoviárias e ao aeroporto — e não ao porto marítimo. Com o tempo, as antigas fábricas se tornaram "zonas chiques", com vista para o mar e acesso à praia, e seu valor imobiliário superou o valor industrial.

RB: É curioso como isso se repete em tantas cidades costeiras — o turismo se torna a nova indústria dominante e vai, de certa forma, "fagocitando" esses restos, essas ruínas de outros tempos e de outras economias.
AT: Sim. O mar, que por muito tempo foi um lugar temido, perigoso, passou a ser romantizado, apropriado de outras formas. Antigamente, a sociedade vivia literalmente de costas para o mar. Não havia entusiasmo pela praia, nem pela água salgada, a não ser como canal de comunicação ou fonte de alimento. Isso começa a mudar no final do século XIX, com as teorias higienistas e uma nova relação entre o corpo e o mar. O surfe, por exemplo — o ato de brincar em meio às ondas — seria visto com estranhamento naquela época. Essa transformação é bastante recente e reflete mudanças culturais profundas.
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André Tavares (Porto, 1976) é arquiteto, editor e coordenador da Dafne Editora. Foi programador da Garagem Sul do Centro Cultural de Belém (2017–2023), diretor do Jornal Arquitectos (2013–2015) e, ao lado de Diogo Seixas Lopes, curador-geral da Trienal de Arquitetura de Lisboa de 2016, The Form of Form. É autor de livros como The Anatomy of the Architectural Book (Lars Müller/CCA, 2016), Vitruvius Without Text (gta Verlag, 2022) e Architecture Follows Fish (MIT Press, 2024). Atualmente, é investigador no Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde lidera o projeto Fishing Architecture, financiado pelo European Research Council.