Reabilitar a reabilitação e continuar inovando
Lições dos anos sessenta: Cabeça Padrão, José-Augusto França e Fernando Távora
O texto é parte da segunda edição do jornal Homeland: News from Portugal, publicação que representa a participação portuguesa na 14a. Bienal de Veneza de 2014.
Tanto a Arquitectura como a Reabilitação, enquanto novo paradigma de projecto, defrontam hoje fenómenos de mundialização, de normalização, de amnésia forçada, que se traduz (na opinião de Francoaise Choay) numa perda da nossa competência no edificar (e de reutilizar). Um predomínio do consumismo cultural (arquitectónico e da arquitectura icónica de archistars) que promove uma descomplexificação semântica no ordenamento espacial, a descontextualização e a atomização da produção arquitectónica, ao mesmo tempo que promove a reabilitação do património urbano como parques temáticos de um consumo turístico massificado: o património tornou-se uma apressada alternativa ao cinzentismo de um mundo cada vez mais monossómico (Choay, 2005).
Percebe-se, neste quadro, um novo fetichismo patrimonial suportado numa ideologia reaccionária (do quando eramos tão religiosos, patriotas, puros e bons e de como hoje somos tão amorais, cosmopolitas, misturados e maus) e a despudorada mercantilização patrimonial: o património explora-se como qualquer outro recurso, toma-se como bem de consumo, na nova e massiva industria que explora as experiências do passado, os “centros históricos” tornam-se novas disneylândias, ou parques temáticos com feiras medievais, ou do chocolate.
As revistas arquitectónicas exaltam o egoísmo dos ícones autorais quando se confrontam com o património urbano. A presente discussão sobre paisagem urbana histórica é o melhor cenário deste confronto (aqui ao lado estude-se a Caixaforum de Madrid, ou “Las Setas” – Metropol Parasol – ou, ainda, a torre de Pelli em Sevilha, como notáveis exemplos, entre nós sempre mais encobertos e medíocres, como o fachadismo do Heron Castilho, ou das Cardosas). E tudo isto resulta numa fundamental injustiça (com algum revanchismo, se seguirmos o raciocínio acutilante de Neil Smith): um acelerado processo de segregação social (gentrification) que quase todos os países europeus, e não só, promovem (Neil Smith cita os EUA , o Canadá, Nova Zelândia, Japão e Brasil), expulsando os mais pobres dos “centros históricos” e negando-lhes o direito à cidade [Henri Lefébvre]. A reabilitação do património urbano (e cultural) orienta-se para palatos plenos de capacidade económica, numa fruição exclusiva, selecta: e eis o novo sonho dos vendilhões imobiliários, os “centros históricos” como um condomínio privado e a angustiante perda da identidade colectiva que se lhes segue!
Nos processos contemporâneos de segregação e as preocupações com a paisagem urbana, enquanto problemas maiores da conservação de património urbano, importa relembrar aqui as lições de três pioneiros dos anos 60 (Fernando Távora, Cabeça Padrão e José-Augusto França) autores de três propostas ainda pouco conhecidas. Três visões, cujo confronto com o contexto internacional da época trouxeram Portugal, no curto espaço de meia década, para a linha da frente da reflexão sobre conservação de património urbano (e das arquitecturas não eruditas) ao proporem modelos inovadores contra a pretensa inevitabilidade da renovação urbana substitutiva e higienista do Moderno. Propostas que tiveram o propósito adicional de integrar os princípios da salvaguarda do património urbano nos instrumentos de projectação, de planeamento e ordenamento do território.
No Algarve o arquitecto português Cabeça Padrão desenvolveu pioneiros, mas quase desconhecidos, estudos de “Prospecção e defesa da paisagem urbana do Algarve”, realizados entre 1965 e 1970 sob a alçada da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização (DGSU) onde pioneiramente foi também criado, em 1968, um Serviço de Defesa e Recuperação da Paisagem Urbana e dos Serviços de Ordenamento da Paisagem Rural. A ideia essencial consistiu em estudar e delimitar núcleos urbanos e vernaculares do Algarve com significativo valor enquanto património, procurando protegê-los do intenso processo de renovação urbana que se iniciara (Padrão et al., 1965-70). Previam-se 45 publicações documentando os valores patrimoniais, arquitectónicos e paisagísticos de outros tantos núcleos ….e produziram-se 38 volumes, depois esquecidos (o que facilitou milhentas negociatas) nos arquivos da administração central.
Em Lisboa, o “Estudo das zonas ou unidades urbanas de carácter histórico-artístico” da autoria do historiador José-Augusto França, promovido pelo Município, em 1967, propôs a delimitação e preservação de diferentes núcleos pombalinos integrados num programa de reabilitação da arquitectura iluminista do pombalismo surgida no pós-terramoto de 1755, núcleos entendidos no seu conjunto enquanto “documento” de leitura da “’imagem global” dos diversos planos produzidos no século XVIII (França 1967: 35), redesenhando “zonas privilegiadas para preservação” a estabelecer através do Plano Director de Urbanização de Lisboa.
Estes estudos, ainda que diferenciados pela abordagem propositiva e profundidade da investigação académica que enquadra as respectivas propostas – muito mais desenvolvidas por J. A. França para Lisboa – partilham a nova importância conferida às questões da imagem urbana, o que nos remete para os estudos de Gordon Cullen (1984) e de Kevin Lynch (França, 1967: 49). Em Lisboa, França, invocando uma aproximação realista (França, 2012: 33) e apoiada “num conceito histórico de vida urbana respeitoso dos seus valores contínuos tanto quanto dos seus valores mutáveis”, propõe distintas abordagens para a conservação das diferentes zonas pombalinas, em função daquele que era então a autenticidade do seu estado, i.e. restituindo a “traça primitiva” aos edifícios das áreas praticamente intactas e vivendo com a alteração das zonas mais profundamente modificadas (França, 2012: 48).
Diferentemente, nos estudos de Cabeça Padrão para o Algarve propõe-se uma forte componente correctiva e cenográfica das alterações detectadas, obrigando a um considerável volume de trabalhos, ditos de terapêutica, conferindo alguma inexequibilidade económica e reduzidos efeitos práticos, a que também não é alheio um sintomático apagamento, ou provocado esquecimento, a que os estudos de “Prospecção e defesa da paisagem urbana do Algarve” foram votados durante décadas. Mas a relevância e pioneirismo destes estudos deve ser destacada pelo: i) carácter alargado dos propósitos colocados à escala de (quase) toda uma região; ii) esforço em contrariar o processo de desaparecimento de um património construído que não se circunscrevia exclusivamente aos elementos de maior valor histórico-monumental; iii) na importância conferida ao conhecimento, através do levantamento e inventariação (prospecção) como ponto de partida fundamental para fundamentar a salvaguarda e conservação patrimoniais; iv) relação da salvaguarda do património construído como o contexto (a paisagem urbana ou rural) em que o mesmo se inscrevia.
Nos estudos de França e de Cabeça Padrão a definição das prioridades da reabilitação não se inscrevem ainda, no entanto, num modelo integrado conservação patrimonial, como o que viria a ser proposto por Távora para a área do Barredo no Porto e que encontra estreitas afinidades com o plano de salvaguarda, seu contemporâneo, proposto para o centro histórico de Bolonha em Itália (Cervellati e Scannavini, 1973: 7).
Fernando Távora, integrando de forma pioneira as ciências sociais num verdadeiramente inovador “Estudo da Renovação urbana do Barredo”, desenvolvido para o Município do Porto em 1969 [e importa apontar que, ao tempo, não se utilizava o vocábulo “reabilitação”, só muito depois – através das iniciativas do Conselho da Europa, nos meados dos anos 70 - tornada corrente] recusa as intenções de demolição sistemática com lógica Moderna dos bairros históricos do Porto até então considerados como insalubres – e hoje, sublinhe-se, já inscritos na lista do património mundial -; Távora propõe um novo desígnio, o de uma reabilitação integrada e mais cautelosa, procurando um modelo passível de ser alargado a toda a cidade (Távora, 1969).
É sobretudo a proposta de Távora, numa concepção da reabilitação de absoluta contemporaneidade e pela visão própria do (e de) arquiteto, que hoje adquire de novo particular relevância: pelo carácter inclusivo que assume ou propõe (ao associar a acção física à intervenção social); pela dimensão social e cultural de que se investe: «Os homens valem infinitamente mais do que as casas …» (Távora, p.32); pela ênfase que coloca na importância da participação (activa, e não simplesmente aquiescente); e, sobretudo, pelas «lições permanentes que o passado garante ao futuro» ao estabelecer o princípio que postula e sintetiza todo o seu programa, desse«...continuar-inovando, num movimento constante de modificação para melhores condições, mas respeitando os valores positivos que porventura possam existir e que não deverão, portanto, ser destruídos.» (Távora P.33), o que engloba a superação da tradicional dicotomia artes maiores/artes menores e a recusa do pastiche. Princípios que no início da década de sessenta Távora havia já enunciado no seu livro Da Organização do Espaço, de 1962. Inventava-se assim, entre nós, a reabilitação integrada!
Referências:
Francoise Choay, Património e mundialização: Problemáticas e estratégias. Évora: Editor Licorne/CHAIA, 2005 (2ª edição).
Fernando Távora, Estudo de Renovação Urbana do Barredo. CM Porto: Direcção Serviços de Habitação, 1969 (policopiado).
José-Augusto França, Estudo das zonas ou unidades urbanas de carácter histórico-artístico” (primeira edição CML, 1967). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2013.