O texto a seguir faz parte da segunda edição do jornal Homeland: News from Portugal, publicação que representa Portugal na 14ª Bienal de Veneza de 2014.
“ Queremos o mesmo tipo de liberdade que tem o homem da cidade; salva-nos da fuligem da velha lareira, sinal da nossa condição primitiva: as nossas faces grelhadas pelo fogo, as costas geladas pela humidade da casa; queremos radiadores e mataremos quem nos vier com aquela conversa do amor ao campo pitoresco e com tagarelices poéticas acerca “das nossas vetustas lareiras e tardes pacatas em frente ao fogo”, sem saber nada sobre isso! Queremos casas sobre pilotis. Sim! Porque já estivemos demasiado tempo com os pés metidos em esterco e lama, demasiado tempo em chão de terra batida que nos aleijou com reumático. Dá-nos janelas, janelas largas, para termos sol na nossa casa. Leva o esterco da frente da nossa mesa. Dá-nos os meios para sermos limpos e saudáveis como as pessoas da cidade…”
Bem ao estilo do modernismo utópico de Le Corbusier, eis a solução higiénica, racional, moderna de acabar com a velha agricultura; uma solução sobre pilotis, evidentemente, invertendo e radicalizando a própria condição do agricultor enquanto cultivador da terra com as mãos e os pés na terra. Da poesia profunda da “condição primitiva” do camponês, nada resta neste relato: nem do agricultor enquanto bom selvagem (ao jeito de Rousseau); nem do povo mítico dos campos que Jules Michelet, algumas décadas depois de Rousseau, celebrava enquanto entidade quase sobrenatural, fora do embrutecimento e da privação da sua pobre condição material; nem do romantismo alemão de J.G. Herder, louvando a simplicidade, a generosidade, a verdade do volkgeist como qualidade essencial de um povo e referente cultural genuíno, por oposição ao saber letrado, refinado, rebuscado e “artificial” do modelo cultural herdado do iluminismo francês.
Todo o discurso de Corbusier está nos antípodas desta “descoberta do povo” associada à construção ideológica dos nacionalismos e à exacerbação das identidades nacionalistas durante o séc.XIX, ao “primitivismo” (enquanto proximidade à natureza e défice de contacto com a educação e o conhecimento eruditos), ao “comunitarismo” (enquanto criação colectiva, partilhada, e não centrada no indivíduo, como nos círculos da alta cultura) e ao “purismo” (próprio do campesinato, imerso na natureza, menos influenciado por culturas cosmopolitas e próximo das tradições primordiais dos seus grupos sociais de pertença e respectivos territórios).
O genius loci é a expressão dessa colisão mística onde coincidem, a terra, a língua, a tradição, a identidade, a espontaneidade, a autenticidade, a raíz,… a alma de um povo, em suma, os camponeses. Na língua francesa, o sentido das palavras pays, paysan, paysage, demonstram claramente esta associação entre uma identidade geográfica (pays), uma condição sócio-cultural (paysan) e um território de pertença (paysage). Os camponeses seriam os jardineiros da paisagem, como escreve Alain Roger para nos falar da artialização da paisagem, da sua estetização e da sua manipulação enquanto dispositivo de produção de mitologias sobre os campos e os camponeses.
Em total ruptura com este tipo de construção de factos e ficções sobre a ruralidade, a modernidade constrói a sua utopia de futuro, liberta do passado, e fundada nas suas racionalidades tecno-científicas que encaminhariam os humanos para o espírito novo do progresso sem retorno. Claro que o camponês era uma figura do passado, do embrutecimento, do obscurantismo e do mundo mágico do natural e do sobrenatural. Havia que polir essa rusticidade, era necessário reciclar o camponês para uma condição de empresário-agrónomo, mecanizado e mercantilizado.
No entanto, os mecanismos de massificação decorrentes da modernização agrícola – universalidade, racionalidade, homologação ...-, provocariam, ao mesmo tempo, diversos e contraditórios julgamentos: uma nova mitologia sobre o cleantech (hoje enunciado em termos de eco-tech, após a entrada triunfal da mistificação ambiental); uma sucessão de desastres resultantes dos efeitos não esperados da hiper-tecnologização intensiva da agricultura; os pesadelos dos transgénicos e da manipulação de uma natureza sintética e…, um grande desencantamento acerca daquilo que Max Weber entendia ser o mundo encantado das sociedades pré-modernas, agora metido na gaiola cibernética da racionalidade moderna com a estreiteza das suas visões do mundo tecnológico, científico, capitalista… - desmagificado, numa palavra.
O azedume anti-moderno reuniu tudo isto numa imensa nostalgia do regresso aos campos (elíseos). O “jardim da Europa à beira-mar plantado” que era Portugal para a retórica da propagando do Estado Novo, passou nos últimos 40 ou 50 anos por modificações e acelerações brutais. Empurrados pela fome e pelo mau viver, os camponeses emigraram; uns ainda foram voltando mas agora Portugal é um país de velhos e o despovoamento prossegue a largos passos.
As marcas e as memórias desse Portugal Rural vão-se decompondo com a desruralização e o seu rastro de efeitos colaterais: o despovoamento, o envelhecimento, o abandono da produção agrícola e dos campos, o desaparecimento de certos estilos de vida, saberes e práticas culturais – o interior, no dizer mais frequente sobre estas coisas. Os poucos que vão ficando vivem de uma economia assistida entre pensões, reformas, poupanças, ou remessas de familiares e quem pode sai porque são escassos os empregos, e a miragem do bucolismo e dos paraísos perdidos é mais de quem está de fora e pensa que o rural e natureza são lugares para passar férias e turismo.
Não há forma de arranjar futuro para o passado mitificado do país dos agricultores pobres mas honestos. Perdidos os seus jardineiros, as paisagens rurais do velho Portugal entraram num ciclo de metamorfose profunda onde a maioria só vê degradação e feísmo. Nem as paisagens (hiper)modernizadas pelas agriculturas intensivas fogem a este desencanto: são monótonas, assépticas, plásticas e, desconfia-se que, envenenadas; além do mais criam pouco emprego e muito mal pago. Há quem seja recrutado na Tailândia para trabalhar aqui por menos de 500 euros/mês.
Dada a intensa estereofonia a que o assunto se presta, não interessa muito questionar o que é a ruralidade, a pós-ruralidade e outras ficções. Pergunte-se, antes, para que serve e a quem se dirige o discurso nostálgico sobre a terra, a agricultura biológica (há alguma que não o seja, tirando a FarmVille electrónica do Facebook?), os novos rurais, o turismo rural e outras ruralidades.
No início, a produção agrícola era para matar a fome dos homens; depois, o pão e o vinho, o leite e o mel, também passaram a alimentar os deuses. Agora tudo são “mercados” e a agricultura em brasileiro chama-se agro-negócio e produz energia verde. Tanta retórica!
Também o rural era verde: veio uma cabra e comeu-o!