Nas linhas abaixo tentaremos elucidar algumas associações e relações entre a obra de Rem Koolhaas e o filme Pulp Fiction (Tempos de Violência), de Quentin Tarantino. Todavia, cabe antes uma breve explicação do porquê do confronto entre o arquiteto e o diretor – e mais, da arquitetura e do cinema.
Os questionamentos que unem esses dois campos aparentemente distintos são muitos, como já mostramos nos artigos sobre os vídeos de arquitetura e vídeos de cidades. Buscaremos suporte desta vez nas ideias de Roemer van Toorn em seu artigo Architecture Against Architecture. Radical Criticism Within Supermodernity, que nos diz que um filme captura o tempo, o espaço e o movimento em uma representação fictícia, mas que pode também oferecer instrumentos para a discussão da realidade.
É na discussão da realidade através da linguagem cinematográfica que confrontaremos Koolhaas e Tarantino.
O interesse de Rem Koolhaas na cidade contemporânea é evidente tanto na sua obra escrita quanto em seus edifícios. A metrópole e suas periferias são tema de profundos estudos onde Koolhaas analisa a interferência da lógica capitalista na construção das cidades. O livro Nova York Delirante explicita esse interesse do arquiteto pela cultura da congestão, na qual os cidadãos metropolitanos vivem “presos em seus superestimulados sistemas nervosos e com a perpétua ameaça de serem dominados pelo tédio” [1]. O arquiteto usa a cidade contemporânea como referência primeira em sua arquitetura, e é o cidadão metropolitano quem Koolhaas pretende atingir com seus edifícios.
São esses mesmos cidadãos que protagonizam o filme Pulp Fiction (Tempo de Violência), de Tarantino; pessoas que habitam a periferia e os subúrbios da cidade grande e que – como mostram suas ações – estão presas aos seus superestimulados sistemas nervosos. Tarantino, assim como Koolhaas, encontra interesse na vida e na população da cidade contemporânea – a metrópole.
Pulp Fiction é uma acumulação de pequenas estórias que não se apresentam ligadas a uma narrativa linear. São, na realidade, múltiplas narrativas que se interseccionam no decorrer do tempo, suprimindo, em parte, a importância deste. Arrisca-se dizer que em Pulp Fiction o que importa é a cena e o que acontece nela. Vale destacar que Tarantino dá suporte para que possamos nos desapegar da noção de tempo; cada sequência é tão densa de informações a ponto de se tornar uma estória em si.
Essa espécie de esquizofrenia [2] observada em Pulp Fiction é também vista na obra de Koolhaas por Toorn que nos diz o seguinte:
“Koolhaas escreve roteiros arquitetônicos. Seus edifícios oferecem um teto sobre nossas cabeças, e representam e condensam as muitas narrativas que caracterizam a vida na metrópole contemporânea. Ele acelera o super-agora.”
Os edifícios de Koolhaas são, segundo Toorn, uma acumulação de muitas narrativas presentes na metrópole contemporânea – da mesma forma que o é Pulp Fiction. De modo similar, as narrativas se condensam para compor um filme ou um edifício. A “montagem” [4] dos edifícios de Koolhaas também se desapega da noção de tempo, a partir do momento que o arquiteto acumula narrativas presentes na metrópole, a única noção temporal que passa a ter importância é o agora.
O interesse pela cultura de massa é outro tema compartilhado por Tarantino e Koolhaas. Em Pulp Fiction a ação muitas vezes de desenrola em lugares banais, provavelmente já frequentados por nós mesmos: um restaurante, um hotel barato, uma cafeteria… “O espaço em que freqüentemente estamos, mas não experimentamos conscientemente.”[5] Tarantino utiliza a iconografia pop na montagem de seus filmes (sobretudo, mas não somente, em Pulp Fiction) e trabalha a mis-en-scene de modo a refletir caricaturalmente personagens banais da sociedade (ladrões em um restaurante, assassinos, traficantes de drogas, etc.).
Toorn comenta que da mesma forma que Andy Warhol mantinha-se distante de sua obra através da reprodutibilidade técnica e dos temas abordados, Koolhaas não está tão interessado no projeto, ele trabalha com elementos que recebe prontos da cultura popular que estão incrustados na cidade contemporânea. Tanto Warhol quanto Koolhaas e Tarantino preservam a iconografia existente e se dirigem à sociedade de forma agressiva, insistindo em refleti-la em seus trabalhos.
Entretanto, podemos observar uma diferença significativa entre o cineasta e o arquiteto na forma de assimilar a cultura de massa. Este a utiliza para fins de experimentação enquanto o primeiro não rompe com a representação. Em outras palavras, Koolhaas usa a cidade contemporânea e sua iconografia como referencia para sua obra, porém está preocupado em garantir a qualidade da arquitetura para o cidadão metropolitano, uma arquitetura que não o faça ser dominado pelo tédio e que incite a discussão sobre a própria cidade. Já Tarantino em Pulp Fiction se inspira na cultura pop, tanto na mis-en-scene quanto na montagem, porém seus personagens não conseguem fomentar a discussão sobre a mesma, apenas permanecem em sua representação.
Percebemos, então, algumas similaridades entre as obras de Rem Koolhaas e Quentin Tarantino, porém, estas são apenas aproximações temáticas (a metrópole contemporânea e sua periferia, a cultura pop) e de “montagem” (acumulação de várias narrativas não lineares, esquizofrenia). Contudo, as semelhanças não se estendem ao campo propositivo, ou seja, àquilo que ambos pretendem com suas obras. Koolhaas, ao usar a iconografia da metrópole, busca a reflexão dos temas abordados em sua obra escrita e construída; Tarantino, por sua vez, parece não se preocupar com isso, reservando-se apenas a representar na tela tais temas.
1 R.Koolhas, “Life in the Metropolis or The Culture of Congestion” Architectural Design, 5/77, p. 320
2 Em seu livro “Condição Pós-Moderna”, David Harvey nos diz que, segundo Lacan, esquizofrenia é uma desordem lingüística, uma ruptura na cadeia significativa de sentido que cria uma frase simples. Quando essa cadeia se rompe, temos um agregado de significantes distintos e não relacionados entre si. Identidade é certa unificação temporal de passado e futuro com o presente diante de mim. Se as frases seguem a mesma trajetória, a incapacidade de unificar passado, presente e futuro na mesma frase assinala a incapacidade de unificá-los na nossa própria existência. O resultado é uma série de presentes puros não relacionados entre si. O mundo surge diante do esquizofrênico com uma intensidade aumentada.
3 Roemer van Toorn, “Architecture Against Architecture. Radical Criticism Within Supermodernity”
4 Aqui a palavra “montagem” apresenta um duplo sentido. Está relacionada à montagem de um filme, etapa na qual e ajustada a sequência de planos para compor o filme como o vemos, e também apresenta-se como um sinônimo de “construção” do edifício.
5 Roemer van Toorn, “Architecture Against Architecture. Radical Criticism Within Supermodernity”