A Rua da Estrada é um conceito que emerge sobre os escombros da dupla perda da “cidade” e do “campo” e da oposição convencional entre o “urbano” e o “rural”. Da cidade, existe a ideia muito comum de que se trata ao mesmo tempo de uma forma de organização social (a polis ou a civitas) intensa e diversa que ocupa um território densamente construído, com uma forma, um centro e uns limites perfeitamente definidos. Esta imagem da cidade aparece como um “interior” confinado, rodeado pelos espaços extensivos e rarefeitos da agricultura, da floresta ou dos espaços ditos naturais. No mesmo registo, o rural seria o espaço da agricultura; agrícola porque maioritariamente dependente da economia agro-florestal, e rural, no sentido cultural, porque correspondente a estilos de vida e visões do mundo dominadas por um certo tradicionalismo atávico e pelo fechamento sobre si.
Nada mais falso. As transformações da agricultura e do rural são tão radicais, quanto as que se verificam nas cidades.
Hoje a urbanização progride a um ritmo avassalador e já não está exclusivamente dependente da aglomeração e da proximidade física entre as pessoas, os edifícios e as atividades. As infraestruturas – como a as estradas ou as redes de telecomunicações, água ou de energia –, percorrem territórios imensos que tornam possível um sem número de padrões de localização e de formas de organização social. O urbano é um “exterior” desconfinado e instável, por contraposição à imagem da cidade amuralhada.
A Rua da Estrada é a perfeita imagem desta metamorfose. Mais do que lugar, a Rua da Estrada emerge como resultado da relação, do movimento. O fluxo intenso que a percorre é o seu melhor trunfo e a sua própria justificação. Sem fluxo não há troca nem relação, gênese primordial da velha cidade. Dizia-me alguém explicando as manobras de sedução que praticava para tornar o seu negócio visível para quem vai na estrada: “o problema é fazê-los parar”.
Confira abaixo um texto de Álvaro Domingues, autor de A Rua da Estrada.
Em tempos muito remotos, os humanos vagueavam em grupos mais ou menos organizados, caçando e comendo do que havia. Não tinham ainda descoberto como domesticar animais e cultivar plantas; não produziam excedentes e não havia cidades. Um dia, do alto de uma colina um chefe de um desses grupos viu ao longe uma nuvem de pó que avançava e pensou: se matarmos aqueles, toda a caça e mantimentos que eles possuem será um excedente para nós. Assim fizeram e continuaram na colina exercitando armas. Quando avistaram outro grupo, pensaram melhor: matamos a maior parte e escravizamos os mais fortes para ficarem a trabalhar para nós a ver se domesticam aquelas cabras bravas. Tal qual. Pelo sim, pelo não, e porque aquela colina era estratégica e os outros invejavam suas riquezas e posição, fortificaram o lugar e ergueram uma torre no meio. Tinha nascido a primeira cidade.
Os tempos mudaram muito entretanto. Já ninguém quer ficar na mesma colina para todo o sempre, andar a mando dos mesmos e a vida é outra. Fizeram-se estradas e tudo circula de um lado para o outro. Mas, porque se estima muito o passado, conservam-se as velhas torres como relíquias daquela energia primeira que persiste nas novas cidades de agora.
Ficha Técnica
A RUA DA ESTRADA - O problema é fazê-los parar!
ÁLVARO DOMINGUES
Dimensões: (22,5x15,0) 260p.
Edição: Dafne Editora, Porto, Fevereiro 2010
DL: 304670/10
ISBN: 978-989-8217-06-6
Preço: 17 euros e 16 céntimos
Parte da série de textos do livro A Rua da Estrada é publicada no Correio do Porto