Este texto, escrito por Danilo Eric, integra uma série de artigos a respeito das principais experiências desenvolvidas pela assessoria técnica USINA CTAH, que completa 25 anos em 06 de junho de 2015. Publicaremos até a data dois artigos semanais que contarão, a partir da perspectiva de alguns projetos selecionados, a história do grupo.
"Quando eu entrei aqui, era só um terreno. A gente fez tudo, desde a fundação, os prédios foram levantando, hoje eu olho e acho isso tudo muito bonito." Maria das Dores (Dora) – Mutirante
Depois de um longo e árduo processo – que incluiu manifestações, ocupações e diversas rodadas de negociação com a Prefeitura de São Paulo –, em 1999 finalmente, desde o fim da gestão Luiza Erundina (1989-1992), um grupo de moradia do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Leste 1 (MST Leste 1) – vinculado à União dos Movimentos de Moradia (UMM) –, conquistou um lote para produzir habitações em sistema de mutirão.
Este grupo reunia famílias de 14 grupos de origem (organizações de base do movimento) organizados em diversos bairros da Zona Leste de São Paulo. Fundado em 1998, o grupo adotou o nome de Associação de Construção Comunitária Paulo Freire, em homenagem ao grande educador popular.
O terreno inicialmente destinado à Associação – relativamente pequeno e bastante íngrime – integrava o Conjunto Inácio Monteiro, no bairro de Cidade Tiradentes (Zona Leste de São Paulo). Este conjunto havia sido planejado para comportar aproximadamente duas mil unidades habitacionais e era destinado ao reassentamento de populações removidas por obras públicas. Dessa forma, combinava edifícios com padrão tipico de grandes conjuntos habitacionais executados por grandes empreiteiras – conforme uma certa tradição inaugurada com os conjuntos financiados pelo BNH –, e o loteamento para a construção de unidades isoladas. Pouco diferia da paisagem de Cidade Tiradentes. Pobre em arquitetura e pobre em urbanidade.
Garantir o direito de escolha do projeto configurou-se como uma nova e difícil etapa da luta para garantir a autogestão no Mutirão Paulo Freire. A prefeitura já contava com um projeto para a área conquistada pelo movimento, que previa a construção de 100 apartamentos de 42m2 de área construída no padrão Cingapura, com metade deles voltados para face sul. Em contraponto, por meio de atividades organizadas pela assessoria técnica USINA e pela Associação, um projeto inteiramente novo foi discutido com as famílias. Por meio desse processo participativo chegou-se a um programa de necessidades que incluía áreas verdes e um centro comunitário, bem como – para contemplar diferentes configurações familiares –, quatro tipologias distintas, com áreas de aproximadamente 56m².
Um outro ponto importante do projeto – e um dos aspectos mais marcantes do Mutirão Paulo Freire – foi a adoção da estrutura metálica em todo o conjunto edificado. A escolha desse sistema construtivo se deve ao desafio de equacionar no projeto a adoção de plantas maiores que o padrão, garantindo, ao mesmo tempo, espaços de uso coletivo e orientação solar adequada num terreno de dimensões exíguas. Ao facilitar grandes vãos, a estrutura metálica permitiu uma solução em que alguns apartamentos ficam suspensos do solo – liberando área nos térreos e diminuindo o sombreamento.
O emprego de uma estrutura independente da vedação abriu também a possibilidade da planta livre e, dentro de alguns limites, cada família pôde configurar os ambientes de acordo com suas necessidades e preferências, como sala e cozinha maiores ou sala e cozinha integradas.
O processo de construção por mutirão também foi beneficiado por esta escolha. Com a pré-fabricação da estrutura, foi possível agilizar o tempo de obra, facilitar a execução das etapas posteriores e diminuir e otimizar o trabalho mutirante, na medida em que a estrutura metálica, além de servir como referência de prumo, esquadro, nível e medidas em gera, também facilitava o transporte vertical de materiais e a circulação dos trabalhadores – tornando mais seguro o trabalho dos mutirantes e trabalhadores contratados.
Se o uso de estrutura metálica na construção civil não era uma novidade, seu uso na provisão de habitação popular produzida pelos movimentos sociais organizados certamente significou uma quebra de paradigma – ou de estigmas. No Mutirão Paulo Freire ocorre uma radicalização do procedimento de uso dessa tecnologia em função do processo produtivo e da auto-organização do trabalho daqueles que, em certa medida, buscavam atender suas próprias necessidades de moradia.
Sob ponto de vista produtivo, o projeto de arquitetura do Mutirão Paulo Freire é fruto de um longo processo de trabalho desenvolvido pela USINA que teve como marcos importantes a adoção dos blocos cerâmicos estruturais – no Mutirão Cazuza – e das escadas metálicas – no COPROMO, União da Juta e Juta Nova Esperança; bem como os projetos desenvolvidos para a URBEL – Companhia Urbanizadora da Prefeitura de Belo Horizonte –, como parte da urbanização do Senhor dos Passos e outros assentamentos precários, que embora não se destinassem a serem produzidos por mutirão, foram desenhados integralmente em estrutura metálica.
Tal caráter pioneiro enfrentou muita resistência e obstáculos para obter a aprovação junto à COHAB e ao Corpo de Bombeiros. A obra teve início em setembro de 2003 – e partir daí, sofreu diversas paralisações por atrasos na liberação de recursos por parte da prefeitura, que não tinha a produção de moradia por mutirão autogerido entre suas prioridades. Essa circunstância penalizou muito o processo, fazendo que com a agilidade que a estrutura metálica permitiria fosse perdida.
No entanto, mesmo com todos os percalços que se colocaram, finalmente o processo foi concluído, em novembro de 2010, com uma grande festa realizada pela Associação e pelo Movimento Sem Terra Leste 1.
INDICAÇÕES DE LEITURA
- Mutirão Paulo Freire: movimento popular, arquitetura e pedagogia da praxis
- Entrevistas com cinco mutirantes da Associação Paulo Freire
FICHA TÉCNICA DO PROJETO
Local:
- Cidade Tiradentes, São Paulo – SP
Linha do tempo:
- 1999 – Primeiras conversas/ Fundação da Associação
- 1999 a 2001 – Negociação
- 2002 a 2003 – Projeto
- 2003 a 2010 – Construção
Agente organizador:
- Associação Paulo Freire, filiada ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Leste 1 (MST Leste 1), por sua vez vinculado à União dos Movimentos de Moradia (UMM)
Agente financiador:
- Prefeitura Municipal de São Paulo, através do Programa de Mutirões Autogeridos da COHAB
Atividades desenvolvidas pela USINA:
- Assessoria na discussão e elaboração dos projetos
- Apoio no encaminhamento dos processos de financiamento junto à Prefeitura Municipal de São Paulo
- Organização das atividades de canteiro e gestão da obra
- Acompanhamento e fiscalização da obra de construção em mutirão e por autogestão
- Assessoria na discussão sobre a gestão no pós-ocupação
Escopo do projeto:
- Projeto de arquitetura, urbanismo, paisagismo, fundações, estrutura e infraestrutura para a implantação de cinco edifícios, com cinco tipologias diferentes.
Equipe:
- Arquitetura e Urbanismo: Beatriz Tone, Guilherme Petrella, Heloisa Diniz de Rezende, João Marcos de A. Lopes, Luciana Ferrara, Pedro Fiori Arantes e Renata Maria Pinto Moreira
- Fundações e Estrutura: Flávio Ramos, Irani Braga Ramos e Yopanan Rebello
- Obra: Beatriz Tone, Débora Costa, Eduardo Costa, Heloisa Diniz de Rezende, João Marcos de A. Lopes, Paula Constante e Pedro Fiori Arantes
- Trabalho Social: Eder Camargo, Jade Percassi, Melina Rangel, Sandro Barbosa e Tiaraju Pablo D'Andrea
Principais interlocutores:
- Lideranças da Associação: Cristiane Lima, Djalma, Dora Ferreira, Nazaré e Roseane Pinheiro
- Equipe de Gestão de Obra: Cristiane Lima, Djalma, Roberto e Roseane Pinheiro
- Mestre-de-obras: Ataíde, Batista, Brito e Vilton
Tipo de canteiro:
- Mutirão autogerido com mão-de-obra assalariada complementar
Técnicas construtivas:
- Estrutura e escadas metálicas com vedação em alvenaria de blocos cerâmicos
Famílias: 100