Este texto, escrito por Isadora Guerreiro, integra uma série de artigos a respeito das principais experiências desenvolvidas pela assessoria técnica USINA CTAH, que completa 25 anos hoje, 06 de junho de 2015. Em comemoração, estamos publicando uma série de artigos que contam, a partir da perspectiva de alguns projetos selecionados, a história do grupo.
A Comuna Urbana Dom Hélder Câmara se insere na discussão da Regional Grande São Paulo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) sobre o conceito de Comunas da Terra, experimentado no Assentamento Dom Tomás Balduíno, onde se discutiu uma nova forma de ocupação do espaço, com propriedade coletiva e produção cooperada.
No Dom Tomás Balduíno, a proposta era conformar um assentamento estruturado em núcleos, onde cada lote tivesse espaço para uma produção doméstica. Ao redor destes núcleos estariam as terras maiores, onde se produziria de maneira comum e cooperada. O processo de discussão de projeto foi realizado por um grupo de estudantes da USP e depois finalizado, organizado e executado em canteiro pela USINA. Foram adotadas tipologias bastante diferenciadas e experimentais – como, por exemplo, as casas em abóbadas.
Já na Comuna Urbana D. Hélder Câmara, o desafio colocado era a transposição desta forma de ocupação do espaço para o contexto urbano – no município de Jandira (SP). Primeira ocupação urbana do MST, a Comuna D. Hélder Câmara foi formada a partir do encontro de famílias despejadas pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e organizadas pela Pastoral da Moradia com o MST. Deste encontro, experimentado ao longo de um ano na ocupação de um edifício abandonado, foi formulada a proposta de uma comunidade que seria organizada no espaço através de um conjunto em propriedade coletiva que incluía moradia, emprego, lazer, educação e cultura.
Foi realizada uma negociação com o governo federal, que aportou recursos do Orçamento Geral da União para a Prefeitura comprar o terreno, fazer infraestrutura e construir uma creche. Em paralelo, as famílias contrataram a construção das casas junto à Caixa Econômica Federal, através do Programa "Operações Coletivas - Resolução 460 do FGTS", que aportava um recorde de subsídios naquele momento.
Após a experiência no Assentamento Dom Tomás Balduíno, as famílias e o movimento rejeitaram o projeto fornecido pela CDHU e contrataram a USINA para elaborar um projeto coletivamente que fosse a expressão espacial da discussão sobre as Comunas. Enquanto experimentavam este morar coletivo em um terreno alugado pela Prefeitura – onde ficaram por seis anos durante o processo de projeto e obra –, as famílias elaboraram, com apoio da assessoria, um projeto novo e o construíram de maneira autogerida.
Organizado em escalas crescentes de relação público-privado, as moradias conformaram-se em núcleos conectados com cerca de 10 unidades, desenhando pracinhas sem acesso de carros e com varandas voltadas para elas – disposição que materializava a própria organização do movimento em núcleos. Nesta escala, conforma-se a vida cotidiana partilhada – materializada durante a finalização da produção das casas em pequenos mutirões locais. Depois de ocupadas, tais praças expressam esta partilha nas portas abertas onde crianças transitam de casa em casa e vizinhos compartilham a vida cotidiana.
Outra escala derivada da conformação em núcleos era a reversa das praças: os quintais, que se conectam e poderiam ser compartilhados entre as famílias em arranjos diversos. Atualmente, algumas famílias compartilham quintais em duplas – uma escala mais doméstica do que comum.
Na confluência das praças, a rua central conecta uma grande praça à quadra, ao anfiteatro e à creche, que também foi pensada para apoio de atividades políticas e culturais. Na entrada superior do terreno – primeiro contato urbano da comunidade com o entorno –, está o espaço destinado à Padaria (que, enquanto esta não se efetiva, funciona como espaço comunitário).
No limite do terreno com o bairro, há espaços para o comércio e locais de trabalho. A infraestrutura foi pensada para ser administrada coletivamente, com caixas d ́água coletivas e estação de tratamento de esgoto própria. No entanto, depois da ocupação, não houve amparo da Prefeitura (dona do terreno) para esta proposta, fazendo com que fossem instaladas caixas d’água individuais.
A discussão de propriedade coletiva teve importantes avanços em negociações com a Caixa Econômica Federal e com a Prefeitura de Jandira, embora não tenha conseguido ser efetivada por questões legais, políticas e de regulamentação do programa de financiamento.
No campo da produção do espaço construído, foram experimentadas duas cooperativas formadas por moradores que assumiram os trabalhos remunerados da obra. A primeira delas (chamada de “Treme-Treme”) foi formada por mutirantes que já realizavam serviços remunerados durante a semana na obra, contratados por um pequeno empreiteiro. Devido à precariedade desta relação e também do financiamento pouco atrativo, o empreiteiro atrasava constantemente os salários e não cumpria os prazos estabelecidos, tendo abandonado a obra depois de um ano.
Autogerindo os recursos, os principais interessados na finalização da obra e trabalhadores já internalizados, um grupo de futuros moradores formou uma cooperativa que foi incubada pela ITCP (Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Unicamp). Depois de mais um ano de experiência e muitas contradições internas, esta cooperativa foi dissolvida e formada uma segunda, ainda com apoio da ITCP, e que conseguiu ter alguns contratos externos à obra. Nas duas experiências foram discutidas a forma de remuneração mais horizontal, a diluição da hierarquia e a troca de habilidades profissionais – embora com muitas dificuldades de aplicação prática.
Durante a obra foi realizado um projeto audiovisual com apoio da Caixa Econômica Federal que organizou uma série de oficinas, encontros e entrevistas, além de extensiva captação e registro de imagens do processo, cujo resultado final foi a produção do documentário “Mutirão Comuna Urbana Dom Hélder Câmara”, em processo de finalização.
Atualmente, depois de três anos de ocupação das casas e nove anos do contrato inicial, a Prefeitura ainda não concluiu as obras de infraestrutura, tornando a habitabilidade do conjunto bastante precária. No entanto, a comunidade se fortaleceu e continua lutando para ter todo o conjunto pronto o mais rapidamente possível.
FICHA TÉCNICA DO PROJETO
Local:
- Jandira – SP
Linha do tempo:
- 2006 – Ocupação junto ao MST de edifício abandonado
- 2007 a 2008 – Projeto
- 2008 a 2012 – Construção
Agente organizador:
- Fraternidade do Povo da Rua; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)
Agente financiador:
- Operações Coletivas - Resolução 460 do FGTS, Secretaria de Habitação do Estado de São Paulo e Prefeitura do Município de Jandira
Atividades desenvolvidas pela USINA:
- Assessoria na discussão e elaboração dos projetos
- Apoio no encaminhamento dos processos de financiamento junto ao Governo Federal e à Caixa Econômica Federal
- Apoio na elaboração do plano de trabalho social
- Organização das atividades de canteiro e gestão da obra
- Acompanhamento e fiscalização da obra de construção em mutirão e por autogestão
- Acompanhamento da formação do núcleo audiovisual
- Documentação audiovisual da obra
- Acompanhamento e fomento das discussões sobre propriedade coletiva
Escopo do projeto:
- Projeto de arquitetura e urbanismo para implantação de 128 habitações (quatro tipologias), padaria comunitária, anfiteatro, quadra poliesportiva, creche e berçário
Equipe:
- Arquitetura e Urbanismo: Fernando César Negrini Minto, Isadora Guerreiro, Jade Percassi, José Eduardo Baravelli, Mário Luís Braga, Paula Constante, Pedro Fiori Arantes e Taís Jamra Tsukumo
- Trabalho Social: Jade Percassi
- Obra: Ana Carolina Carmona, Carolina Silva Oukawa, Fernando César Negrini Minto, Isadora Guerreiro, José Eduardo Baravelli, Leslie Loreto, Mário Luís Braga
- Audiovisual: Graziela Kunsch e Paula Constante
- Apoio Jurídico: Ricardo Baitz
Principais interlocutores:
- MST: João Campos, Érica, Marco, Célio
- Comunidade: Jane, Cláudio, Rejane, Laércio, Flamenguista, Padre João Carlos
Tipo de canteiro:
- Mutirão autogerido com mão-de-obra assalariada complementar/ cooperativas incubadas pela ITCP-Unicamp
Técnicas construtivas:
- Alvenaria de blocos cerâmicos autoportantes
Famílias: 128