USINA 25 anos - Reassentamento da Comunidade do Piquiá de Baixo

Este texto, escrito por Ícaro Vilaça, Kaya Lazarini e Paula Constante, integra uma série de artigos a respeito das principais experiências desenvolvidas pela assessoria técnica USINA CTAH, que completou 25 anos no dia 06 de junho de 2015. Em comemoração, estamos publicando uma série de artigos que contam, a partir da perspectiva de alguns projetos selecionados, a história do grupo.

O contraste é enorme. De um lado, a indústria de ferro gusa ligada ao projeto desenvolvimentista nacional e à inserção brasileira no mercado internacional de commodities. De outro, a comunidade e sua dinâmica local.

Moradora do Piquiá de Baixo mostrando os impactos da poluição em sua casa. Image © Marcelo Cruz

De um lado, uma ferrovia de escala nacional, construída para escoar a produção do Projeto Carajás ao porto de São Luís - e sobre ela o maior trem de carga do mundo com seus 4 quilômetros e 300 vagões. De outro lado, ao longo da ferrovia, pequenas comunidades. Resultado: acidentes mortais de pessoas e animais (numa média recente, são duas pessoas atropeladas e mortas pelo trem da Estrada de Ferro Carajás a cada três meses).

O Projeto Carajás, lançado no contexto da política desenvolvimentista da Ditadura Militar, trouxe para a região a Companhia Vale do Rio Doce – criada em 1942 durante a Era Vargas e privatizada sob protestos e denúncias escandalosas em 1997, durante o governo Fernando Henrique Cardoso – para extrair, industrializar e conduzir minérios, principalmente de ferro, para exportação, visando "promover o crescimento econômico" da região.

A empresa começou com um volume de 30 milhões de toneladas de minérios extraídos ao ano. Hoje chega a aproximadamente 100 milhões e pretende alcançar a meta de 230 milhões de toneladas ao ano até 2019. A alta qualidade do minério permite excepcional lucratividade: o custo de produção declarado pela empresa, entre a retirada da matéria prima, sua transformação básica e o transporte até o porto, é de US$20 a US$22/tonelada. Em tempos mais lucrativos, o preço da tonelada chegou a US$180/tonelada, e hoje varia entre US$80 e US$120.

Atualmente, uma das maiores consumidoras do ferro gusa – utilizado na construção civil – é a cidade de Xangai. A Vale costuma se orgulhar pelo fato de a capital chinesa ter sido erguida com minério brasileiro. Hoje, cerca de 98% do minério extraído e produzido é exportado. Ficam na região apenas 2% dos minérios – e, naturalmente, ficam também os desastres ambientais ligados ao seu processo de produção.

Fazem parte da cadeira produtiva do ferro gusa três matérias-primas fundamentais: o minério de ferro, a madeira para produção de carvão vegetal e a água para resfriamento dos altos fornos. Desde quando as indústrias se instalaram na região de Açailândia, na década de 80, a apropriação irresponsável desses bens naturais poluiu as águas e devastou a floresta nativa. Para dar continuidade à produção do carvão, foi necessário cultivar eucalipto – cuja produção, através de monocultura, causa danos ambientais graves, além de expulsar os pequenos produtores agrícolas da região.

A tecnologia adotada nas indústrias de produção do ferro gusa está completamente obsoleta: a quantidade de poeira tóxica liberada através desses sistemas poderia ser diminuída consideravelmente com adoção de novas soluções – já experimentadas em polos mais ricos, como os de Minas Gerais.

Vista das instalações das siderúrgicas vizinhas à comunidade. Image © USINA CTAH

No meio do caminho, à beira da ferrovia que liga os novecentos quilômetros entre as minas e o porto de São Luís do Maranhão, se encontra a Comunidade do Piquiá de Baixo. Foi ali, antes da existência linha de ferro – e da poeira do minério –, que Edvard Dantas Cardeal escolheu viver. Atual presidente da Associação dos Moradores da Comunidade do Piquiá de Baixo, Seu Edvard escreveu uma carta ao então Presidente Lula explicando a situação em que viviam as famílias do Piquiá e recebeu como retorno um direcionamento que apontava caminhos e órgãos públicos que deveriam ser procurados pela comunidade.

Os processos que viabilizaram a escolha do terreno, a opção por assessoria técnica própria e a reivindicação de participarem da elaboração do projeto do futuro bairro e das futuras casas são pistas que indicam um grupo que, apesar de desfavorecido, escolheu ser protagonista de seu futuro.

Diversos laudos técnicos, elaborados desde 2007, demonstram que a convivência entre indústrias e assentamentos humanos naquela localidade é inviável [1]. Neste contexto, a Associação dos Moradores da Comunidade do Piquiá de Baixo decidiu lutar coletivamente pelo reassentamento em uma nova área, livre da contaminação causada pela mineração.

A luta pelo reassentamento e pela autonomia na concepção do futuro bairro

O Piquiá de Baixo é mais um entre mais de cem grupos humanos, de diferentes etnias, costumes e tradições – habitantes de cidades ou camponeses, indígenas e quilombolas – afetados pela violenta implantação da indústria mineradora nas regiões norte e nordeste do país. Mas, diferentemente da maioria dos casos, a comunidade do Piquiá de Baixo tem conquistado vitórias expressivas.

Desde suas mobilizações iniciais, os moradores têm tido como parceiros a Rede Justiça nos Trilhos, a Paróquia São João Batista de Açailândia – Diocese de Imperatriz – e o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia Carmen Bascarán – esse último, indicado pela assessoria do presidente Lula em resposta à carta de Edvar. As violações do direito à moradia e à saúde também despertaram a atenção de organizações de defesa dos direitos humanos de outros estados no Brasil e mesmo no exterior. O caso do Piquiá de Baixo foi objeto de estudo recente da Federação Internacional de Direitos Humanos e da Justiça Global, em parceria com a Rede Justiça nos Trilhos, e resultou em um relatório publicado em maio de 2011 [2]. Há ainda um inquérito civil público instaurado pelas Promotorias de Justiça em Açailândia, que segue em andamento.

Em janeiro de 2012 a publicização do caso teve novo impulso por meio de uma edição da Revista Caros Amigos que trouxe uma matéria sobre o caso do Piquiá de Baixo com o título: "Pólo siderúrgico, o inferno de Pequiá: onde o povo respira fuligem de ferro". Em abril do mesmo ano, a questão foi levada ao conhecimento dos acionistas da Vale S.A. durante a Assembleia Geral Ordinária de 2012 na sede da empresa no Rio de Janeiro. No mesmo mês, o caso foi denunciado à Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada.

Em maio de 2012, o caso do Piquiá foi debatido no Ministério das Cidades com a Secretária Nacional de Habitação, Inês Magalhães. Logo depois, foi levado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU durante a avaliação do cumprimento das normas internacionais de direitos humanos assinadas – e ratificadas – pelo Estado Brasileiro.

A pressão dos moradores conquistou a esfera jurídica quando o Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado do Maranhão abriram uma mesa de negociações para viabilizar o reassentamento da comunidade. Dessa mesa participaram o Sindicato das Indústrias de Ferro Gusa do Maranhão (SIFEMA), a Vale S.A., a Prefeitura Municipal de Açailândia e o Governo do Estado do Maranhão, além da Associação de Moradores e a Rede Justiça nos Trilhos.

Manifestação dos moradores do Piquiá de Baixo em luta pelo terreno para o reassentamento. Image © Marcelo Cruz

Após muitas negociações e pressão, o Ministério Público celebrou um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) em maio de 2011, que determinava a desapropriação de terreno para o reassentamento da comunidade. O Município deveria desapropriar a parcela de terra, que seria escolhida a partir das exigências previamente estabelecidas pela comunidade, e o SIFEMA deveria cobrir os custos da desapropriação. Apesar de grande conquista, este seria apenas o primeiro passo de uma longa jornada para a efetivação da conquista da terra. O valor da desapropriação foi contestado pelo proprietário do terreno escolhido, e teve início uma sequência de episódios nefastos de corrupção envolvendo entes públicos e privados, devidamente identificados e auditados pelas autoridades. Apenas recentemente, em setembro de 2014, ou seja, após dois anos e quatro meses, foi dada a sentença final do juiz, e o processo de desapropriação foi concluído. A utilização de terras públicas ou desapropriadas pelo Estado para este fim – reassentar populações já residentes em áreas afetadas por grandes projetos, como nos casos ligados a grandes eventos (Copa do Mundo ou Olimpíadas) – comprova a necessidade da criação de uma política pública específica para os casos de reassentamento forçado no Brasil.

Em agosto de 2012 foi celebrado o segundo TAC entre o Ministério Público e o SIFEMA, com o objetivo de contratar os serviços necessários para a realização do projeto arquitetônico e urbanístico do Reassentamento do Piquiá de Baixo. Assim, a comunidade conquistou o direito de contratar assessoria técnica própria, além de realizar os estudos necessários no terreno do reassentamento para subsidiar o início do projeto, e também contratar uma equipe multidisciplinar para elaboração dos critérios para definição das famílias contempladas.

Os momentos de mobilização coletiva que construíram a caminhada da comunidade permanecem vivos na memória das famílias. Entre todas as mobilizações realizadas pela comunidade em todos estes anos, algumas foram muito marcantes, como a que ocorreu em dezembro de 2011, quando centenas de moradores saíram em marcha e bloquearam a BR-222 que liga Açailândia a São Luís. O bloqueio durou mais de 4 horas em um protesto prolongado com queima de pneus. Algum tempo depois os moradores do Piquiá de Baixo voltaram a protestar durante a visita da governadora Roseana Sarney a Açailândia, utilizando máscaras respiratórias descartáveis que evidenciavam simbolicamente sua situação. Outro protesto marcante foi o que forçou o pagamento da desapropriação por parte das Siderúrgicas, quando os moradores realizaram um verdadeiro esforço de cooperação e, divididos em turnos, fecharam durante 30 horas os portões de entrada e saída das indústrias.

Visita ao terreno destinado ao reassentamento. Image © USINA CTAH

O projeto para o novo bairro

O processo de projeto do novo bairro ocorreu com grande entusiasmo por parte das famílias do Piquiá – afinal, o próprio fato de poderem pensar o novo bairro e a nova casa junto com a equipe técnica era em si uma grande conquista. Para a assessoria técnica USINA, dois grandes desafios se colocaram em relação ao projeto: em primeiro lugar, os quase 2.400 km que separam São Paulo de Açailândia, vencidos por dois trechos de vôo até Imperatriz e um trecho de carro até o destino final. O outro desafio era o tempo exíguo para realização do projeto: os acordos com o Ministério Público haviam definido poucos meses entre o início das atividades de projeto com as famílias e a aprovação final nos órgãos financiadores.

Assim, a estratégia foi realizar o processo participativo de projeto em encontros restritos cujo aproveitamento era máximo: reuniões à noite, atividades durante o dia todo com divisão em grupos de trabalho. O processo de projeto participativo possibilitou um diálogo estreito entre a assessoria e as famílias – permitindo que estas se aproximassem do desenvolvimento técnico do projeto do futuro bairro, ao mesmo tempo em que permitiu à equipe da USINA compreender as particularidades da forma de morar desta região do país.

A proposta final do projeto de reassentamento estrutura o terreno de 38 hectares ao longo de um eixo que se configura como um calçadão arborizado e ininterrupto para pedestres e ciclistas, a partir do qual será possível acessar todos os equipamentos e espaços coletivos que serão implantados, assim como duas áreas verdes existentes que serão preservadas.

A integração com o bairro vizinho ao terreno do reassentamento, o Novo Horizonte, foi desde o início uma diretriz colocada enfaticamente pelos próprios moradores do Piquiá de Baixo, que buscavam compartilhar a futura infraestrutura e os equipamentos com os moradores ao lado. Assim, foram previstos nove equipamentos para servir os dois bairros: Associação de Moradores, Clube das Mães, Mercado, Centro Esportivo, Creche, Escola, Memorial das Lutas do Piquiá, Unidade Básica de Saúde - UBS, Centro de Referência em Assistência Social - CRAS e um Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos.

O arranjo dos lotes no desenho do reassentamento surgiu da observação do hábito dos próprios moradores do Piquiá: é no espaço público, em frente à casa – e preferencialmente sob uma frondosa árvore –, que eles se reúnem com os vizinhos para conversar no final do dia e nos finais de semana. Assim, os lotes estão organizados em pequenos núcleos, que são dispostos de forma a configurar uma pequena praça a cada conjunto de 26 casas. Nestas praças também será cumprida a função de tratamento das águas servidas das casas. Como não há rede de coleta e tratamento de efluentes na cidade de Açailândia, a solução considerada mais adequada foi o tratamento no local através de sistemas biológicos. O desenho do arranjo entre os lotes também guarda a ideia de incentivar o compartilhamento dos fundos de lote de diferentes casas entre integrantes da mesma família ou amigos, gerando espaços semipúblicos em comum.

Nesse sentido, o projeto desenvolvido junto à Comunidade do Piquiá de Baixo aponta para outra forma de construir cidades, buscando oferecer aos trabalhadores um ambiente onde os mais diversos aspectos da vida estejam integrados – contrapondo-se aos grandes conjuntos habitacionais isolados, sem serviços públicos ou infraestrutura urbana. Trata-se, naturalmente, de uma forma alternativa de produção do espaço habitado, em oposição às modalidades dominantes – privadas ou estatais –, que segregam os trabalhadores, sujeitando-os a condições precárias de moradia.

Implantação. Image © USINA CTAH
Quadra. Image © USINA CTAH
Tipologia 1. Image © USINA CTAH
Tipologia 2. Image © USINA CTAH
Tipologia 3. Image © USINA CTAH

Depois de um ano de espera para que o projeto fosse finalmente aprovado na Prefeitura de Açailândia, as famílias do Piquiá aguardam agora a aprovação do projeto junto à Caixa Econômica Federal, responsável pelo Programa Minha Casa, Minha Vida Entidades – por meio do qual serão realizadas as unidades habitacionais e parte da infraestrutura, que será complementada com aporte da Fundação Vale e do Sindicato das Indústrias de Ferro Gusa.

A luta, portanto, ainda está em andamento e seu desenrolar em aberto. As conquistas da comunidade têm sido expressivas, sobretudo diante da desproporção de escala entre a comunidade local e a indústria nacional/global. Talvez por isso mesmo. As reivindicações da Comunidade do Piquiá de Baixo transcenderam a luta local e se tornaram uma bandeira maior que expõe a outra face dos programas desenvolvimentistas. Ao mesmo tempo em que alcança níveis internacionais (como a ONU), essa luta se costura no chão da comunidade, nas relações humanas diretas, como tão bem expressa a carta que Seu Edvard escreveu ao seu neto Moisés: A beleza dessa luta é que a gente não cansa, e quando houver uma derrota, a gente reage com mais ânimo e convicção: é claro demais que a gente é vítima, há uma injustiça evidente! A lei não poderá se enganar: seremos ressarcidos! Às vezes também os avós se iludem e sonham que nem um jovem inexperiente... Afinal é a esperança que nos sustenta. Mas aprendi, Moisés, que a esperança é uma criança que precisa de duas irmãs mais velhas: a paciência e a sabedoria.

Perspectiva do estudo preliminar. Image © USINA CTAH

NOTAS

[1] Os laudos constataram que os índices de doenças de pele, respiratórias e de visão no povoado são muito superiores aos da média nacional. Causas de morte têm se repetido substancialmente em decorrência de enfermidades respiratórias graves, como câncer no pulmão ou em algum outro órgão do sistema respiratório. Já houve também mortes de crianças em contato com a escória incandescente.

[2] O relatório está disponível na íntegra no site dessas três organizações.

INDICAÇÕES DE LEITURA

The Amazon rail line – pig iron factories and rural radicals. Esta longa reportagem do Washington Post descreve as diversas violações sofridas por comunidades atingidas pelas operações da empresa Vale S.A. ao longo da Estrada de Ferro Carajás. Destaca-se o drama das mais de 300 famílias do Piquiá de Baixo, atingidas pela poluição do polo siderúrgico de Açailândia, Maranhão.

FICHA TÉCNICA DO PROJETO

Local:

  • Açailândia – MA

Linha do tempo:

  • 2009 – Primeiras conversas/ Negociação
  • 2012 – Início do projeto

Agente organizador:

  • Associação Comunitária dos Moradores do Piquiá, Justiça nos Trilhos e Paróquia Santa Luzia do Piquiá – Açailândia

Atividades desenvolvidas pela USINA:

  • Assessoria na discussão e elaboração dos projetos
  • Aprovação do projeto na Prefeitura de Açailândia (maio de 2013 a maio de 2014)
  • Aprovação do projeto da Caixa Econômica Federal (em andamento)

Escopo do projeto:

  • Projeto de arquitetura e urbanismo para a implantação de 320 unidades habitacionais em três tipologias; clube de mães e associação comunitária; mercado; centro esportivo; escola; creche e memorial de lutas do povo do Piquiá

Equipe:

  • Arquitetura e Urbanismo: Ana Carolina Carmona Ribeiro, Cecília Correa Lenzi, Gabriel Delduque, Kaya Lazarini e Wagner Germano.
  • Trabalho Social: Sandro Barbosa

Principais interlocutores:

  • Lideranças: Edvard Dantas (Presidente da Associação de Moradores), Padre Dário e Irmão Antônio (Missionários Combonianos), Danilo Chammas (Justiça nos Trilhos), Antônio Filho e Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmen Bascarán de Açailândia.

Técnicas construtivas:

  • Alvenaria estrutural em blocos cerâmicos e cobertura em telhas cerâmicas sem laje

Famílias: 312

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "USINA 25 anos - Reassentamento da Comunidade do Piquiá de Baixo" 10 Jun 2015. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/768315/usina-25-anos-reassentamento-da-comunidade-do-piquia-de-baixo> ISSN 0719-8906

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