Entre 4 de julho de 2014 e 8 de fevereiro deste ano o Museu de Arte Moderna e Contemporânea de Trento e Rovereto - MARt, prestou uma homenagem ao arquiteto português Álvaro Siza com a exposição Álvaro Siza. Dentro do ser humano. Apresentamos a seguir o texto integral de apresentação do curador da exibição, Roberto Cremascoli, ilustrada por fotografias de Fernando Guerra e vídeos dos projetos de São Bento, Chiado e Malagueira.
Álvaro Siza. Inside the human being descreve a prática de um arquitecto.
Fá-lo, percorrendo o seu itinerário metodológico construído sobre 1) experiências pessoais, sobre 2) curiosidade (alimentando-se de tudo aquilo que o circunda, porque como ele próprio afirma a paisagem é tudo aquilo que existe no campo visível), sobre 3) a realidade que encontra onde actua e sobre 4) processos de transformação que inevitavelmente são o resultado da acção sobre a própria realidade, desde o momento em que se pensa até o pôr em prática. É o método Álvaro Siza, que utiliza o homem para medir o homem.
Transformar o espaço do mesmo modo pelo qual nos transformamos a nós próprios: mediante fragmentos comparados com “os outros”. A natureza, como habitação do homem, e o homem, como criador da natureza, absorvem ambos tudo, aceitando ou rejeitando o que tinha uma forma transitória, porque tudo deixa neles a marca. Partindo de bocados isolados, procuramos o espaço que o sustenta. (Álvaro Siza, Premessa in Professione poetica, Electa, Milano 1986)
Transformação, método. Como num processo evolutivo.
Reconstrução é o processo de transformação, acto intrínseco da prática arquitectónica.
O que importa é dar continuidade, transformando, com bom senso: Álvaro Siza recolhe e continua aquilo que foi deixado, utiliza o encontrado, modifica-o e permite a quem vem depois uma contribuição, uma participação nas mudanças (inevitáveis, necessárias).
O seu objectivo é o de melhorar a qualidade dos espaços e, por consequência, as condições de vida de quem os utiliza.
Para Álvaro Siza torna-se assim fundamento imprescindível da arquitectura pôr-se ao serviço do homem, colocar o seu saber a favor de uma intervenção colectiva. O homem e a cidade.
Fá-lo, em 1974 e até 1976 com as brigadas SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), juntamente com os amigos /colegas Nuno Portas, Alexandre Alves Costa, Adalberto Dias, Eduardo Souto de Moura, Domingos Tavares, logo depois da revolução dos cravos que – sem derramar sangue, sem disparar um tiro– depôs a ditadura em Portugal, vigente á mais de quarenta anos. Os arquitectos ajudam a população a organizar-se a fim de participar na transformação dos quarteirões, construindo as suas próprias casas. As habitações sociais da Bouça e de São Victor no Porto são um magnífico exemplo de community empowerment, um momento irrepetível de democracia.
Fá-lo, desde 1977 no plano de expansão da cidade de Évora, no quarteirão da Quinta da Malagueira, numa área de 27 hectares na qual constrói 1200 fogos sociais, com a população envolvida nos processos de restruturação do território. As linhas de casas em dois pisos, dispostas em fila, apoiam-se numa infraestrutura que distribui água e energia eléctrica, como o aqueduto de uma antiga cidade romana. Transforma a paisagem como um artifício histórico. Novas praças, ruas e jardins dão cor ás casas-pátio e sucedem-se entre os lotes. Os espaços interiores e exteriores são tratados do mesmo modo, com qualidade, porque na arquitectura de Álvaro Siza não existem espaços secundários. As suas pessoas são sempre iguais, no mesmo plano: acredita numa sociedade sem classes e num mundo de indivíduos sem títulos -Doutor ou Senhor Doutor. Aprende cada coisa com quem quer que seja.
Fá-lo, em Berlim (1980-1990) nos projectos dos Block 121 em Kreuzberg e em L’Aja (1984-1993) na zona de Schilderswijk: projectos de habitação social, construídos para imigrantes. Na Holanda, são montados protótipos dos apartamentos em pavilhões improvisados para recolher dicas sobre o projecto e discutir as suas variantes com a população.
Álvaro Siza era chamado in situ, no norte da Europa, porque ouvia e compreendia os problemas da comunidade, dando respostas imediatas. Sabia falar com as pessoas, como disse Pierluigi Nicolin.
Fá-lo, em Lisboa no Chiado (1988) quando é chamado imediatamente depois do incêndio provocado por um curto-circuito nos grandes armazéns. Álvaro Siza chega a Lisboa, ainda há fumo, e um quarteirão inteiro destruído. Entre o cruzamento das ruas do Carmo/Nova e Almeida Garret retomará vida, alguns anos depois daquele desastre, um importante espaço cívico e histórico da capital. A extraordinária beleza da intervenção devolve á luz uma atmosfera de outros tempos. O sucesso da revitalização do quarteirão, também do ponto de vista turístico, deve-se á reinvenção dos espaços colectivos. Com a abertura de algumas frentes sobre as ruas são criados novos pátios de uso público, zonas comerciais, de descanso e contemplação.
Fá-lo, na prática quotidiana.
Durante as comemorações dos quarente anos do programa SAAL, no passado 10 de Maio de 2014, Álvaro Siza declarou que a partir dos anos setenta a Europa interessa-se pela experiência portuguesa. É um momento irrepetível, de instabilidade política e social: a primavera de Praga, a revolução estudantil de Paris, a queda das Ditaduras de Portugal e Espanha, os grupos terroristas da Irlanda do norte, os anos de chumbo em Itália.
Descreve ao público presente as ardentes reuniões noturnas, semanais, com as cooperativas de habitantes.
Diz: “sem conflito não há participação, há manipulação!”
“Participação não era ainda palavra maldita”.
9 de Junho de 2014
Roberto Cremascoli
O texto foi mantido em português de Portugal, assim como na versão original.