Por Luis Espallargas
Vila Serra do Navio se estrutura segundo um núcleo linear e distendido que reúne e ordena todas as edificações e atividades de interesse coletivo, além de associar, com áreas verdes urbanizadas, dois afastados setores habitacionais. A concisão parece ter sido alcançada com remanejamento posterior, quando o setor esportivo faz a ligação dos dois grupos de moradia. Em oposição a essa espinha dorsal e estrutural acusada pelo gentil caminho para pedestres, há setores envolventes recortados ora por vias locais, ora por cul-de-sacs que concentram, segundo duas classes funcionais, as categorias residenciais e unifamiliares dos funcionários. O sistema viário, sempre externo, é o escudo, garante o afastamento da floresta e está complementado pela trilha interna de pedestres que cumpre a ligação retilínea e econômica entre setores.
O sistema viário ajustado às cotas da topografia torna-se irregular e paisagístico, mas nem por isso seu traçado imita a natureza, para naturalizar o assentamento, como é comum a nostálgicos urbanistas. No caso de Bratke não se restitui o desenho romântico da land, mas enfrenta-se o irrecusável: respondesse à natureza, sem o artifício de modificar o terreno com terraplenagem. Outra prova disso é que o sistema viário não define lotes ou alinhamentos para a construção de moradias, como se espera na cidade tradicional das pequenas propriedades. A construção das edificações e o traçado viário constituem duas decisões complementares, sem ser subordinadas. A orientação das moradias é constante e ótima e o ritmo entre elas é definido por regras de afastamento e frontalidade indiferentes às vias. Não é necessário insistir na independência formal entre a implantação da estrutura viária e os critérios de construção dos edifícios, tão característica da arquitetura moderna.
Uma perspectiva interna assinada pelo arquiteto ilustra o hotel e mostra generoso e confortável espaço transparente vedado por grandes e quadriláteras lâminas de vidro do tipo piso-teto. Forro horizontal e modulado e uma estrutura vertical composta por perfis de madeira sobre um piso de pedras regulares que completam o sistema construtivo. Dois homens sentados em poltronas estofadas de bom desenho conversam protegidos por esse plano diáfano apenas denunciado pelo contorno da esquadria. A solução moderna e universal adapta-se à floresta amazônica sem dar margem à dúvida. Se essa arquitetura encontra seus artifícios para melhor adaptar-se às condições climáticas tropicais, isso não quer dizer que, para isso, tenha que renunciar à experiência moderna consolidada. Bratke desenha na floresta sem ocupar-se com o folk, o vernáculo ou o regional, sem precisar inventar ou copiar uma arquitetura apta e especial para essas condições adversas, como se o moderno fosse demasiado fino ou delicado para enfrentar a condição rude. Como se o moderno fosse esnobe e refinado demais para essa gente e cultura embrutecidas.
Os diversos tipos de residência dedicados às categorias profissionais são executados em estrutura de madeira, único material abundante, segundo uma técnica de pórticos longitudinais, com nível variável, que ligam diretamente as terças à peça horizontal do pórtico e, assim, dispensa tesouras de telhado. Trata-se de uma técnica difundida para construir programas semelhantes em loteamentos de classe média na costa oeste americana, um tipo de solução que não passa despercebida ao admirador da arquitetura eficiente, ainda que americana, como, certamente, é o caso de Bratke. Para defender a solução climática adequada, todos os cronistas deste projeto urbano apressam-se em exibir a série de belos desenhos de Bratke dedicados às palafitas, aos ranchos caboclos, mas não fazem menção à solução do problema por intermédio da simples e competente aplicação da internacional arquitetura moderna, com beiral, ventilação cruzada e paredes rebaixadas entre os cômodos. É importante insistir que a construção da Vila Serra do Navio não é devedora de qualquer tipo de regionalismo em que se interpretam técnicas e materiais locais e convoca-se toda a sabedoria ancestral e acumulada para construir de maneira adequada e comprovada, no lugar. O arquiteto propõe e constrói em seu tempo, com o que conhece, e isso deve frustrar aqueles que esperam traços de brasilidade num desenho particular e justificado pela Amazônia.
Considerados os depoimentos, as casas de Bratke em Serra do Navio, além de inevitavelmente formalistas –caso seja aceito que a condição formal é consequência derradeira da arquitetura–, também parecem ser um sucesso do ponto de vista da adaptação e desempenho da arquitetura moderna nas condições da selva quente e úmida. É certo que a sobrevivência dessas construções por tantos anos é favorecida pela manutenção única, profissional e constante da empresa mineradora, mas, ao mesmo tempo, existe aí o mérito das decisões de projeto guiadas pelo escrúpulo do arquiteto com a durabilidade e com o uso preciso das técnicas e materiais, temas constantes de um reconhecido detalhamento que nunca perde de vista a necessária concisão formal. Pese o uso intensivo de madeira, há relatos feitos em 1992 sobre o notável estado de conservação da Vila quarenta e cinco anos depois da inauguração e elogios ao desenho dos ambientes internos e ao concomitante conforto obtido pela interpretação lúcida e paciente das condições climáticas enfrentadas, combinada com a experiência acumulada em projetos de arquitetura.
Luis Espallargas é arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (1977) e doutor em Arquitetura pela Universidade de São Paulo (2004). Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos (SAP-EESC-USP) desde 2007, e professor da Universidade São Judas Tadeu desde 2009.
Referência
Luis Espallargas, Caraíba e Serra do Navio: a construção da cidade brasileira, V colóquio: Arquitetura e Cidade, XV Simpósio Multidisciplinar da USJT: Ensino, Pesquisa, Extensão, São Paulo, 2009.
- Ano: 1956
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Fotografias:Nelson Kon