No início de agosto o Centro Cultural São Paulo, em parceria com o Goethe Institut, promoveu a mostra de cinema "Arquitetura como autobiografia: Filmes de Heinz Emigholz", que exibiu 24 filmes, entre longas e curtas metragens, do cineasta alemão.
Trilhando um caminho entre cinema e arquitetura, grande parte da obra de Emigholz explora a relação entre construção e biografia, isto é, como o legado construído de arquitetos e engenheiros civis age como autobiografia destas mesmas figuras e como seus edifícios estão contextualizados em realidades bastante distintas.
Tivemos a oportunidade de entrevistar o cineasta, que esteve presente também em algumas sessões de debate no CCSP, e conhecer mais a fundo sua visão acerca dos pontos de contato entre estes dois campos que sua obra explora de maneira tão incisiva.
Leia, a seguir, a entrevista completa com Heinz Emigholz.
ArchDaily Brasil: Levando em consideração o título da exposição – Arquitetura como autobiografia -. Como você vê a relação entre esses termos, e como a arquitetura pode trabalhar como um significado, uma ferramenta para a autobiografia?
Heinz Emigholz: Para mim esta era uma espécie de título provocativo, pois geralmente as autobiografias são escritas e minha ideia era: bem, você pode construir sua autobiografia. O que você faz como arquiteto, quando tem os meios para fazê-lo – é desenvolver certo estilo durante sua vida, e o constrói. Então eu chamo esses filmes de “Arquitetura como Autobiografia” quando faço um catálogo cronológico das edificações de alguém. Dessa forma, a simples afirmação é que arquitetos não escrevem uma autobiografia, mas as constroem. Mas você tem que lê-las de qualquer forma. Você precisar ler a arquitetura e as fotografias.
AD: Como você seleciona os edifícios que pretende filmar?
HE: Isso é completamente subjetivo. Não há uma regra, conhecimento ou algo assim. Comecei a fazer uma lista no início da década de noventa, quando queria fazer um filme sobre design, arquitetura, escultura e escrita, e iria chama-lo de "Fotografia e Além" (Photography and Beyond). Eu gostaria de fazer um filme-ensaio e tinha uma lista de arquitetos que, na minha opinião, construíram espaços maravilhosos, como Adolf Loos, Rudolph Schindler, que são basicamente os membros fundadores da arquitetura ou engenharia civil moderna. Tenho muito interesse na conexão entre arquitetura e engenharia civil. Então havia essa lista, com Adolf Loos, Rudolph Schindler, Pier Luigi Nervi, August Perret, Bruce Goff, que foi uma decisão minha, ninguém me disse o que fazer. Havia também arquitetos que não eram tão famosos, mas eu considerava eles realmente a base de todo o movimento.
AD: O catálogo da exposição menciona o contexto. Gostaríamos de saber se, na sua opinião, é possível uma arquitetura sem contexto?
HE: Eu acho que não. Talvez isso soe um pouco contraditório, porque quando comecei a fazer a série eu mostrei alguns arquitetos, como uma lista de nomes, mas eu tentei em todos esses filmes evidenciar o contexto das arquiteturas. Eu não quero isolar um edifício, é claro que eu o faço, de certa maneira, mas agora foco mais em situações anônimas e filmo muito nas imediações, pois a fotografia de arquitetura comete este erro de isolar os edifícios e torná-los estrelas ou troféus. Não estou interessado nisso. Então, cada vez mais, vou às ruas e mostro os arredores dos edifícios, as cidades ao seu redor. Isso é o que você pode fazer quando você faz filmes. Mas eu sempre quero manter uma escala humana, então nunca filmo de um helicóptero ou algo assim, mas a partir de áreas que você pode alcançar como qualquer outra pessoa. Meu interesse, cada vez mais, está no contexto destes edifícios fantásticos. Mas por exemplo, "A Casa de Schindler", na primeira casa onde ele morava em Kings Road, West Hollywood, Los Angeles, era possível ver o Pacífico a partir dela na época da construção. Agora há prédios altos ao redor de toda ela, e é quase ridículo.
AD: Alguns de seus filmes, especialmente os de arquitetura, se colocam no limite entre experimentos documentais e filmes artísticos. Isso, de alguma forma, contribui para que o resultado seja autobiográfico. Você poderia falar um pouco mais sobre esse assunto?
HE: Eu sempre controlo a câmera e não faria filmes se não pudesse controla-la, pois considero a composição e construção da imagem meu trabalho principal. Claro que é um tipo especial de fotografia, que para mim é uma ferramenta muito importante. Eu realizei meus principais filmes e algumas pessoas os acharam estranhos. Eu chamo isso de fotografia e cinema no espaço. Quero registrá-las como casos documentais e o que eu não quero fazer é apenas manter o ângulo reto e a linha do horizonte alinhados. Só quero documentar o modo como olhamos para alguma coisa e isso pode ser um estilo especial que surge como uma intervenção artística, pois eu simplesmente não quero filmar da maneira convencional. Mas no começo isso foi um grande escândalo, digo, quando você faz algo com o qual as pessoas não estão acostumadas. Mas há uma razão pela qual eu faço isso e não é apenas por ser diferente. É porque é possível conectar mais detalhes de uma situação arquitetônica quando se explora um estilo de câmera livre, mais solto. Mas eu sou extremamente ligado à composição e construção. Isso é algo que vem dos ideais construtivistas da fotografia russa dos anos vinte.
AD: O catálogo da exposição pontua que seus filmes apresentam "passeios contemporâneos através de edifícios e outros espaços arquitetônicos". Isto implica a noção de movimento através dos espaços. Nesse sentido, como você vê a importância do movimento do corpo humano para a compreensão e apreensão da arquitetura?
HE: É muito importante. O que eu faço nos meus filmes é que às vezes você vê as pessoas, mas na maioria das vezes não, pois elas não estão lá. Eu não utilizo atores nesses espaços e raramente uso movimentos de câmera, pois quero manter a composição da imagem. Então eu as empilho, várias delas, de modo que em seu cérebro acontece uma espécie de movimento. Mas é um movimento muito construtivo, eu diria. É uma decisão contrastante fazer isso, sobrepor imagens e processá-las. Por exemplo, em um filme como de Schindler ou Goth há, talvez, 1.200 imagens, por isso é uma coisa complicada que acontece em sua mente quando elas se acumulam e você reflete sobre essa justaposição.
AD: Então o movimento está, na verdade, na montagem do filme?
HE: Sim, na montagem e, em seguida, no modo como você reflete sobre isso e como o ângulo da câmera acrescenta algo. Pois você sempre precisa pensar onde está e como isso se conecta com o restante.
AD: A realidade e o virtual são meios diferentes de conhecer um espaço. Ao filmar você pode desencadear algumas emoções através de uma perspectiva artística ou por meio de luzes e som. Entretanto, visitar o espaço é a maneira mais genuína de conhecê-lo. Como você enxerga essa dualidade entre espaços reais e espaços fílmicos?
HE: É uma pergunta complicada, pois eu nunca uso lentes grandes angulares ou olho de peixe, ou algo que distorça [a imagem], sempre utilizo lentes tradicionais. Mas é claro que a sensação da imagem cinematográfica é diferente do espaço real. Mas eu quero manter a escala entre cenas para que o espectador não entre num outro mundo, o que aconteceria com o uso de uma lente grande angular, tornando difícil retomar a relação novamente. Portanto, essa é a questão, e é claro que eu experimento isso com o som. Nós realizamos diversas gravações de som nos espaços que filmamos. Em todos os diferentes ângulos de câmeras registramos também os sons e investimos muito trabalho na sonoplastia. Sempre gravamos os sons dos espaços, o que se torna um dispositivo para unir as cenas. Eu nunca uso trilha sonora, a menos que haja música no local, mas eu não a utilizo como meio de obter ou produzir sentimentos... acho isso realmente horrível.
AD: Seria porque a presença de trilha sonora alteraria o espaço?
Sim, há uma escola de vídeos, que eu chamo de "Escola de Filmes de Arquitetura da BBC”, que sempre trabalha com música e há cenas das mãos do arquiteto fazendo croquis, entre outras coisas, e eu acho isso realmente uma besteira. Eu sempre produzo filmes para cinema. Quando você se senta na poltrona, você tem a ilusão de que você esta no espaço e pode experienciar os lugares com seu próprio corpo... e pode refletir sobre isso. Eu considero um aspecto muito importante que você tenha tempo para fazer isso funcionar, e que ninguém lhe diga para olhar para tal imagem que é realmente importante.
AD: Você acha que, pelo fato de seus filmes serem geralmente longas metragens, a duração do filme contribui para essa experiência imersiva?
HE: Eu acho que sim. Porque depois de um tempo que você se senta lá, pode decidir: eu realmente quero ver isso? Em caso negativo, você pode deixar a sala. Quando você decide ficar e realmente entrar no espaço, pode extrair algo dali. Porque a coisa toda começa a evoluir de modo a emergir em seu cérebro. Acho interessante que ao longo dos anos comecei a ter mais e mais público. Às vezes esses filmes, em Berlim por exemplo, são projetados em grandes cinemas aos domingos, ao longo de várias semanas, e é interessante que as pessoas queiram obter este tipo de experiência. Mas eu faço filmes curtos também, para determinados temas. Acabei de terminar um filme para um museu dinamarquês sobre a Villa Savoye, de Le Corbusier, em Poissy, e uma instalação do artista dinamarquês Asger Jorn. Então conectei estes dois temas que não tinham nada em comum e ficou muito interessante no filme, ele vai e volta entre estes dois. É um curta-metragem de 30 minutos, mas ele será projetado em looping em um museu, ininterruptamente.
AD: Em fotografias de edificações geralmente vemos a escala humana, que são as pessoas utilizando os espaços. Nos seus filmes, por outro lado, algumas cenas são feitas na ausência de pessoas. Você acredita que deste modo a arquitetura atinge outra escala ou status?
HE: Não, mas acho que o protagonista desses filmes são os edifícios. E se há uma pessoa eu nunca peço para ela sair do enquadramento, se elas estão lá, aparecerão no filme. Mas se elas não estão lá, então não haverá ninguém. Eu realmente gosto de focar nos edifícios, porque não deve haver um mediador e alguém que se levante e diga: olhe para isso. Não, a própria câmera sugere o olhar e por isso você é confrontado consigo mesmo, seu corpo é confrontado. Essa é a racionalidade por trás disso. Eu não acho que um visitante humano esteja lá por acaso. Ele ou ela está lá e representa talvez um não-espectador, mas seu corpo também pode, por vezes, obstruir uma parte do edifício. Realmente precisamos de uma pessoa para nos representar? Acho que nós podemos fazer relações mais diretas. Você não precisa de um mediador, na minha opinião. Mas às vezes é muito bom ter as pessoas, por exemplo, eu fiz um filme sobre August Perret, que construiu na França e na Argélia. E, então, você vê a diferença das ruas da França, que são vazias, e na Argélia, que estão cheias de pessoas, e percebe que a arquitetura neste contexto é totalmente diferente. É claro que eu não iria evitar isso. Como eu disse, eu não quero isolar as arquiteturas.
AD: Então é mesmo real, você nunca pede para alguém se retirar do edifício.
HE: Não, mas às vezes eu espero por um momento específico.
AD: Os enquadramentos escolhidos para capturar os edifícios e espaços são bastante diferentes daqueles das fotografias arquitetônicas comuns, mostrando ângulos oblíquos e linhas diagonais. Existe alguma razão específica para este tipo de escolha?
HE: Sim, porque a fotografia comum de arquitetura não tem muito espaço, eles têm talvez uma página de revista e então você vê sempre as mesmas três imagens do edifício nos catálogos e na internet. Nas revistas esses fotógrafos lutam contra o espaço limitado, então é por isso que quase sempre utilizam lentes grandes angulares, porque eles têm medo de que não haja espaço suficiente. E eu não tenho esse problema, pois tenho mais espaço, eu posso ir até o detalhe. Eu não me considero este tipo de fotógrafo de arquitetura. E há uma certa rixa entre nós: às vezes, esses fotógrafos vêm aos meus filmes e eles odeiam porque pensam que não se pode fazer algo assim. Eu acho que eles invejam o espaço que tenho.
AD: Podemos ver que alguns fotógrafos de arquitetura são muito formalistas, compondo imagens com as linhas sempre verticais e paralelas...
HE: Sim, eles usam a maior parte de seu tempo para atingir isso.
AD: Talvez porque eles estejam trabalhando para o arquiteto, e o arquiteto dirija eles, em determinados ângulos para a foto...
HE: Sim, mas às vezes encontro jovens arquitetos e, por exemplo, fiz uma longa série de filmes sobre edifícios de jovens arquitetos austríacos, e eles ficaram muito interessados em como eu iria enquadrar os edifícios e eles nunca me diziam que ângulo explorar ou de onde observar. Alguns arquitetos fazem isso, é ridículo, porque é tão ilógico, é um objeto tridimensional e há um milhão de maneiras de olhar para ele.
AD: Você trabalhou com vários edifícios modernos. A arquitetura moderna no Brasil teve um lugar muito proeminente no mundo. Como você vê o movimento moderno aqui? E qual construção, cidade ou contexto que você gostaria de filmar no Brasil?
HE: Eu estou estudando isso agora, então eu olho para edifícios e é claro que eu os chamaria de clássicos, como os de Lina Bo Bardi, Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha. Agora estou muito interessado em analisar isto, tanto quanto possível, mas o mais intrigante é que eu gosto dessa espécie de mistura do todo: o antigo e o novo, o ruim e o bom. Então, sim, eu faria um filme, mas não isolaria uma edificação. Diz alguns filmes sobre as obras do uruguaio Eladio Dieste, pois o considero um mestre incrível, então fiz esses filmes no Uruguai. Mas eu conhecia esses edifícios há muito tempo, só então decidi filmá-los. Eu quero conhecer o máximo que puder. Claro que eu sei sobre o chamado brutalismo e eu tenho interesse, mas eu não sou um especialista, sou apenas um amador nisso.
AD: Quais edifícios você visitou no Brasil, e em São Paulo, especificamente?
HE: Todos os dias fazemos passeio. Domingo nós caminhamos pelo centro antigo e eu gostei. Vocês poderiam me dizer o nome do arquiteto do projeto da Praça das Artes? É muito interessante.
AD: É o escritório Brasil Arquitetura, de Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, que trabalharam com Lina Bo Bardi.
HE: Sim, eu pude perceber isso lá.
AD: A última pergunta é sobre a produção atual de vídeos de arquitetura, e sua opinião sobre isso.
HE: Arquitetura é muito popular. Todos vivem numa casa e a amam ou odeiam, e por isso é surpreendente quanto tempo a arquitetura teve uma espécie de presença não considerada, que veio à discussão pública apenas nos últimos 10 ou 20 anos, o que é muito interessante. Todo mundo tem que lidar com ela de algum modo, e é por isso que ela é tão popular e existam cada vez mais produtos ligados a ela.
A entrevista com Heinz Emigholz foi realizada pelos editores Pedro Vada e Romullo Baratto no dia 4 de agosto, no pátio do Goethe Institut. O ArchDaily Brasil é grato a Luiz Rangel, que possibilitou a entrevista.